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Retalhos de uma vida (RetalhoII: Morte numa tarde de Verão)

 

Ouvem-se as sirenes das fábricas a anunciar a fim de um turno e o princípio de outro, 2 horas menos 5 minutos de uma tarde de verão, mas que podia ser de inverno. Odete arruma a bata dentro da bolsa onde cabe também a marmita agora vazia. A massa humana cruza-se nos corredores da fábrica, uns a sair outros a entrar. A azáfama em volta dos cartões de ponto num matraquear constante… E é bom que não avarie ou os cartões terão que ser assinados uma a um pelo chefe de turno que nestas alturas parece que faz de propósito para demorar - “primeiro os que vão iniciar o turno”, grita ele – “mas Sr. Faria, eu tenho a carreira para apanhar”, dizem algumas mulheres no afã de saírem. “Paciência” – grita o Faria. Mas naquele dia não… O relógio funcionou, sempre naquele matraquear monótono como a lançadeira do tear. Finalmente cá fora Odete enceta a marcha para casa, juntamente com a mole humana que desce a Alameda das Tílias, todas com farrapos de algodão preso aos cabelos e á roupa que lhes denunciam a condição. Todas têm ainda uma longa tarde pela frente, acelerando assim a marcha, pela estrada de paralelo irregular e escorregadio, atravessam a ponte, e cortam caminho por umas escadas íngremes que quase lhes tira a respiração. No fim das escadas têm ainda o resto da subida para encetar até desembocarem no largo da feira…o suor escorre-lhes em profusão pela testa, pelo colo dos seios dando ao decote um ar quase lúbrico não fossem as feições fechadas e esforçadas das mulheres que limam as arestas aos paralelos da estrada. Ao lado de Odete caminhava ofegante a Amélia, sempre divertida e bonacheirona nos bancos de escola, mas a vida tornou-a amarga e de mau trato. A vida, esta maldita vida…
Em frente ao largo da feira caminhavam pela berma da estrada rentes ao muro da fábrica de desperdícios, as duas conversando cada uma com seus botões que o caminho até casa ainda era longo. O carro surgiu do nada na curva apertada em frente á fábrica, perdeu a direcção, não consegue desfazer a curva, Odete estacou o olhar no carro num misto de terror e fascínio, secundada pela Amélia dois ou três metros atrás. Odete ouviu o estrondo do carro contra o muro, ainda conseguiu vislumbrar o esgar de dor da Amélia, mas só o som dos vidros e chapa estilhaçada se ouvia ainda. O mulherio acorreu em debandada ao local, fazendo roda em volta da Amélia. Odete ouvia os comentários – “morreu, ai minha nossa senhora…”, “ficou como um passarinho”, “o que vai ser dos filhinhos dela?”. Os comentários deram lugar ao pranto das carpideiras alto e sonante como convém nestes momentos… Odete chorou baixinho, deixando uma lágrima teimosa escorregar pelo rosto trigueiro. Não lamentava o azar da amiga, lamentava a sua sorte, ali ao pé, tão perto e foi na Amélia que o carro bateu. Era dia da Amélia morrer, e quando, mas quando seria o dia da Odete?
A Amélia morreu assim numa tarde de verão mas que podia ser de inverno.
 
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jaber
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 29/12/2008 14:15  Atualizado: 29/12/2008 14:15
 Re: Morte numa tarde de Verão
Gostei muito desta prosa José Alberto. Não há muita gente a escrever a desdita, o sombrio horizonte da vida dos operários.
Muito intensa a descrição do quotidiano da fábrica e da vida que se lhe agarra como algodão,mesmo que a morte ingrata espere na primeira curva.
Gostei de te ler nesta tarde de inverno.
Parabéns pelo texto.


Enviado por Tópico
Vera Sousa Silva
Publicado: 29/12/2008 17:59  Atualizado: 29/12/2008 17:59
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Usuário desde: 04/10/2006
Localidade: Amadora
Mensagens: 4098
 Re: Morte numa tarde de Verão
Adorei a prosa. Uma descrição muito bem feita, de forma simples, mas que o leitor sente.
O final trágico de Amélia e a pergunta que fica de Odete, que pelos vistos anseia a morte...
Muito bom Jaber!

Beijo


Enviado por Tópico
mim
Publicado: 30/12/2008 01:18  Atualizado: 30/12/2008 01:18
Colaborador
Usuário desde: 14/08/2008
Localidade:
Mensagens: 2857
 Re: Morte numa tarde de Verão
Texto com grande significado,
e ela não escolhe o verão ou inverno aparece quando tem uma vaga.

Beijos doces em ti

Feliz 2009


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 05/01/2009 15:47  Atualizado: 05/01/2009 15:47
 Re: Morte numa tarde de Verão
E eu aqui,já há algum tempo...
E somente hoje tive o prazer de ler tua prosa
que, com certeza, é poética.

Terei que parar de ler-te (ao menos por hoje), pois senão terei que passar o dia em tuas páginas, a tecer elogios desnecessários, pois, tenho certeza, sabes da maestria e magia de teus textos.

Um abraço.

Lustato.