Textos : 

Retalhos de uma vida (Retalho VII: Os pecados que não eram...)

 

A igreja era comprida, o interior pintado de branco debruado por várias capelas com oratórios e imagens de santos ao longo das paredes laterais altas e encimadas por granito nu, dando-lhe uma magnificência quase avassaladora. Perante o peso da obra a vontade que dá é vergar as costas numa genuflexão constante, não tanto pelo respeito que inspira antes pelo ar pesado que se respira. Odete está sentada num canto de um banco corrido esperando a sua vez para o confessionário, pernas fechadas que estreitam as mãos apertadas entre si, cabeça pendente olhando o vazio que medeia as suas pernas do banco seguinte. O silêncio é cortado só pela intermitência segredada de algumas beatas em reza surda de terço mil vezes percorrido por dedos ásperos como o olhar que deitam a quem entra e sai numa busca de culpa antecipada que se sinta no olhar de quem tem necessidade de se ajoelhar perante o abade para confessar o que lhe convenceram que era pecado em cantilenas e rezas mil vezes repetidas. Odete tinha um fascínio pelo silêncio que se respirava dentro da igreja embora naquele dia a estivesse a atormentar talvez o movimento por ser dia de “confesso”.
Chegou finalmente a sua vez, deslocou-se ao confessionário e verberou a cantilena costumeira enquanto se ajoelhava do lado de lá da rede:
- Pelo sinal da Santa Cruz (um murmúrio…) perdoai-me padre porque pequei – Nunca tinha percebido porque se pedia perdão ao padre e não a deus…
- Há quanto tempo não te confessas minha filha? – Pergunta-lhe o padre em ares de médico da caixa que quer é despachar a consulta.
- Há um mês Sr. Abade – responde-lhe Odete. E ao ser questionada pelos seus pecados Odete hesita, não sabe se será pecado e diz isso mesmo ao Padre.
- Porque não me contas minha filha e eu te direi? – Responde-lhe o Abade já mais interessado. Odete começa-lhe a contar o incidente com o mestre da tinturaria, a sua saída e a reacção do Artur. O Padre ia meneando a cabeça ora assentindo, ora em jeito de crítica enervando a Odete cada vez mais.
- Minha filha, deves-te lembrar que quando casaste prometeste respeito ao teu marido… - ciciou o padre por entre a rede.
- Sim Sr. Abade mas ele também me jurou respeito. E parece-me que bater não faz parte desse respeito e não foi a primeira vez que me fez isso. Eu já estou farta disso. O Padre meneou novamente a cabeça em reprovação:
- Ouve minha filha, tu deves-lhe obediência, tens que suportar essas provações como prova do teu amor ao teu homem e a Deus. Porque Deus lá sabe o que faz quando te envia essas oportunidades de demonstrares o teu amor ao Pai. Devias era sentir-te agradecida. Quanto a teres saído assim da fábrica, não o devias ter feito, o Sr. Almeida é um homem de bem e temente a Deus, concerteza enganaste-te em relação às suas reais intenções e precipitaste-te. Tens que tirar essas ideias da cabeça, talvez ires á fábrica, pedir perdão ao Sr. Almeida que ele decerto dá-te o emprego de volta, todos erramos na vida. Logo fala com o teu homem, acata o que ele te disser com respeito e sentido de dever, lembra-te que a Nossa Senhora sofreu muito mais ao ver o filho morrer na cruz e aceita essa tua cruz bem mais leve.
- Mas a Nossa Senhora não tinha um homem que lhe batesse – responde a incrédula Odete.
- Não sejas malcriada nem invoques o santo nome do Sr. em vão, faz o que te digo, agora vai, reza 15 “avé marias” e verás que te sentes melhor, vá. Odete rezou o acto de contrição e abalou do confessionário para fora, olhou as caras das beatas a olharem para ela a dissecarem o seu íntimo tentando adivinhar os “horríveis” pecados que confessou, sussurrando entre elas:
- Sempre disse que não era boa rês…
Odete saiu da igreja sem rezar a penitência… olhou os montes verdes debruados do amarelo das mimosas e chorou… não era um choro agudo, chorava com serenidade, chorava a sua condição, a da Amélia morta á poucos dias e de outras tantas que via a subir as encostas pelos caminhos de monte e cabras. A mudança de turno tinha sido à pouco tempo.
 
Autor
jaber
Autor
 
Texto
Data
Leituras
862
Favoritos
0
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
10 pontos
10
0
0
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.

Enviado por Tópico
Vera Sousa Silva
Publicado: 07/01/2009 16:22  Atualizado: 07/01/2009 16:22
Membro de honra
Usuário desde: 04/10/2006
Localidade: Amadora
Mensagens: 4098
 Re: Os pecados que não eram...
Confesso que estou cada vez mais curiosa...



Beijo


Enviado por Tópico
VónyFerreira
Publicado: 07/01/2009 17:37  Atualizado: 07/01/2009 17:37
Membro de honra
Usuário desde: 14/05/2008
Localidade: Leiria
Mensagens: 10301
 Re: Os pecados que não eram...
É tão bom ter a Vera sempre atenta ao que o nosso galã escreve, né, Jaber?
Gostei da história. Queres ajudar-me no romance que ando a escrever?
Bjs


Enviado por Tópico
António MR Martins
Publicado: 07/01/2009 18:00  Atualizado: 07/01/2009 18:00
Colaborador
Usuário desde: 22/09/2008
Localidade: Ansião
Mensagens: 5058
 Re: Os pecados que não eram...
Isto quando se muda de turno e se ouvem destas do padre da freguesia... são os desígnios da sofredora Odete.

Belíssima continuação do enredo que nos vai obrigando a estar atentos a novas postagens.

Abraço


Enviado por Tópico
mim
Publicado: 07/01/2009 18:16  Atualizado: 07/01/2009 18:17
Colaborador
Usuário desde: 14/08/2008
Localidade:
Mensagens: 2857
 Re: Os pecados que não eram...
Eu gosto mais de falar logo com Deus...

Fico à espera dos próximos capítulos???

Beijos doces


Enviado por Tópico
gil de olive
Publicado: 07/01/2009 20:35  Atualizado: 07/01/2009 20:35
Colaborador
Usuário desde: 03/11/2007
Localidade: Campos do Jordão SP BR
Mensagens: 4838
 Re: Retalhos de uma vida (Retalho VII: Os pecados que não...
Parabens pela postagem de mais um excelente trabalho!