Prosas Poéticas : 

O corpo do peso da alma

 
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O corpo do peso da alma
 
 
...é jornalista, gosta das letras e das palavras, considera ter uma mente corpulenta, gosta de ler, tem lido muitos e bons livros, ela própria está a escrever um, indecisamente avançando, página a página, mas independentemente de tudo isto sabe que o seu corpo é a prioridade do seu ser, por muitos livros que tenha enfiado no cérebro, obras válidas, pensamentos bem construídos, ideais solidamente erguidos e elevadamente apresentados, por mais sonetos ou estrofes que tenha deglutido na sua vida, a prosa, a poesia e a proesia que mastiga com prazer, os bailados e os concertos de música erudita a que assiste, a sua mente disso se alimenta, mas isso não chega, ainda assim não pode suportar o julgamento negativo dos outros em relação ao corpo, o dedo que aponta, os dentes que se mostram num sorriso indiscreto, os homens que passam na rua e miram, descobrindo um ou dois pensamentos, o chefe que a tem inspeccionado discretamente todos os dias dos últimos trinta e sete meses, as colegas da redacção que gostam de comentar junto às latrinas, por tudo isto, por todo este medo, por todo este corpo que imagina ser ela, ou mesmo dela, da cabeça aos pés esta vergonha, pelosunhasmãosventrepescoçopunhosolhostestabraçosombrosrabodedos, mil ditadores formando uma só massa de carne sobre o espírito, como um sobrolho usurpador toldando a visão clara, por tudo isto a mãe jornalista se pinta como se pinta, ainda que moderadamente, todos os dias úteis antes de sair de casa, por isso põe os cremes que põe todas as noites, úteis ou inúteis, antes de dormir, por isso escolhe as roupas que escolhe, na véspera de todos os dias de trabalho, por isso frequenta como frequenta o cabeleireiro ao fundo da sua rua, por causa do corpo come como come iogurtes baixos em calorias, por ele desloca-se como se desloca todas os sábados de manhã ao ginásio do bairro ao lado, depois dos armazéns, por isso evita como evita comer demasiada carne, ver demasiada televisão, falar demasiadamente ao telemóvel, trabalhar em demasia em frente ao computador, sentar-se com as costas demasiadamente curvadas, por causa dele se penteia, pinta as unhas, dos pés, das mãos, compra calças justas ao corpo, blusas com decotes generosos, camisas com mangas cortadas, brincos discretos mas atraentes, óculos com armações de marca, bálsamos de fragrância adocicada, pulseiras coloridas, champôs amaciadores perfumados, sandálias minimalistas, colares de pedras grossas, sapatos de estilo moderno, por causa dele, do corpo, compra cuecas apertadas, soutiens de renda, rimel escuro, batom escarlate, blush corado, sombra clara e brilhantes luminosos para os olhos, olhos esses que deixam agora transparecer um brilho tão característico, um brilho aquoso, são as lágrimas que lhe sobem do coração até ao rosto deixando sair o que os pensamentos sufocam, Como é possível que eu faça tudo isto por causa do meu corpo, grita ela dentro de si mesma, ninguém no autocarro se apercebe, aperceber-se-ia a mulher no banco de trás se mirasse o reflexo no vidro da camioneta, este vê tudo, mas não pode estender as mãos até à mãe que chora, o vidro apenas estende a mão se até ele a estendem igualmente, é este o instinto básico dos espelhos e outros objectos reflectores, nunca agem por iniciativa própria, parecem os homens, mas esta mulher não lhe estende a mão, esta vai cruzada com a outra junto ao colo, estende apenas duas lágrimas que escorrem pelas faces, ela apaga-as com a manga do casaco, mas não foi a tempo, o vidro apanha-as e reflecte-as de volta a ela, agora é o vidro que chora com o aguaceiro que salpica as janelas do autocarro.


Não precisas de responder às tuas questões. Precisas é de questionar as tuas respostas.

 
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Andraz
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