Prosas Poéticas : 

Inverno

 
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Inverno
 
Faz um frio de rachar, neva como se naquele dia o céu tivesse desistido subitamente de segurar os nevões destinados a todo o Inverno, as casas, as ruas, o chão, as poças que aqui não são poças, são placas de gelo, as pontes, os carros, as próprias pessoas e alguns animais apanhados desprevenidos na intempérie, as árvores, os sinais luminosos e não luminosos, parece que tudo caiu num caldeirão de cal, parece que tudo se rebolou a seguir numa cama de penas e plumas, a neve aqui tem a fofice de quarenta centímetros de altura, e chega a metro e meio nas esquinas para onde os limpa-neves empurraram o excesso de massa branca, é neste mar lácteo de gelo e frio e tiritar de dentes, bafos quentes em cada boca, numa floresta de gorros, cachecóis, casacos e sobretudos, kispos, luvas, ceroulas, camisas interiores de flanela, é neste emaranhado de pessoas de queixo ao peito e mãos nos colarinhos que se move uma sombra esbranquiçada como todas as outras, atravessa imprudentemente a correr uma rua, o sinal estava verde para os carros, teve que ser, e entra num furgão bege onde a esperava um homem maduro, é uma carrinha de trabalho, na bagageira, que corresponde a toda a viatura com excepção da cabine frontal onde se podem sentar três pessoas, apenas duas o fazem hoje, na bagageira empilharam-se manhã cedo mantas e cobertores e xailes e edredões e colchas e agora estes dois vão correr a cidade e parar onde virem pessoas na rua, verão muitas, obviamente, mas apenas algumas terão o ar de quem acordou já na rua e nela irá adormecer novamente, distribuem todo o material de agasalho e protecção que haviam trazido, muitos sorrisos nascem quando os entregam, outras vezes só um encolher de ombros ou uma palavra rezingona de quem acha que para tapar sóis com peneiras não valia a pena andar ali na carrinha tresloucadamente a varrer a cidade, mas esse é o trabalho desta mulher, quando a vimos pela primeira vez estava numa paragem a pensar no que iria fazer para o jantar, seria para ela e para o seu companheiro da altura, durou pouco, tanto o jantar como a relação com o companheiro da altura, esta mulher vivia para aquecer as costas dos outros no frio do Inverno, para preencher as suas barrigas com sopas e carcaças, para amaciar os seus corações com palavras de consolo e esperança, mas para ela parecia que o Inverno durava sempre e não havia mantas para o frio da sua solidão, o estômago da alma roncava e grunhia vazio como sempre o estivera nos quase trinta e dois Outonos que o seu corpo suportara, no seu coração existiam apenas monólogos de consolo, de carinho, eram palavras unilaterais, unidireccionais, iam sempre de si para si mesma, sempre, não sabia por que estaria ela destinada à mesma desilusão que parecia querer afugentar daqueles que viviam abandonados nas concorridas ruas da cidade.


Não precisas de responder às tuas questões. Precisas é de questionar as tuas respostas.

 
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Andraz
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