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horas-extraordinárias

 
Mulher que não padeça de embelezamento craniano frontal são consideradas peças raras – Alguém disse.
A Mónica casou faz vinte meses e, o seu mais-que-tudo já anda na roliçe das fêmeas.
Chega a casa tarde, com dez copos a mais e, um cheiro a perfume que não adianta inventar frases à prosa porque ela está mais que vista e sabida.

Farta de ouvir explicações, de ser feita gato sapato, de não lhe poder dizer uma palavrinha sequer, que ele pega nervos, pois é ele quem investe na casa e lhe dá um modo de vida que as suas amigas tanto invejam.

- Vou à reunião da empresa e não sei a que horas venho – Disse o marido já com um pé fora da porta à sua esposa que estava no quarto a organizar o álbum das fotografias.

Bendita hora. A mulher ganhou coragem de ver para crer e decidiu seguir o marido. Meteu-se no seu JIPE todo-o-terreno, última prenda de anversário do marido, e lá foi ela, em busca da verdade.
O sacana mal sabia o que lhe esperava esta noite, enquanto conduzia o seu descapotável à maneira de quem pensa que vai chegar a algum lado.

Entrou nesta rua, saiu naquela, virou à esquerda, depois outra vez, parou o carro, desligou o carro, fechou a capota do carro, saiu de dentro dele com seu ar desportivo e, em passo magestoso, entrou numa vivenda geminada onde o único obstáculo que tinha era um portão pequeno que dava para avançar.

A lesada matrimonial, que o tinha seguido, esperou uns poucos minutos no interior da sua viatura e, após estar segura no que ia fazer, foi na direcção da casa, avançou o portão, chegou-se ao pé de uma janela, a modos de não se ouvir, por um espaço do cortinado conseguia ver com os seus dois olhos sofridos o que se passa lá dentro daquele escuro, em que apenas uma vela ilumina a sala, nomeadamente a área do sofá, onde agora está sentado o seu marido que, por realidade crua, viu o que viu: se não fosse uma minúscula cueca de fio-dental com estampa de tigre e um pequeno lenço sedoso em volta do pescoço, estaria em pelota.

A mulher ferveu com quanta tristeza tinha. Mas aguentou-se. Queria ver a cara da fulana, a filha da mãe, o que é que ela tinha que ela não tinha. Escutou um barulho de porta a abrir. Era a tal, a amante, caça-maridos, que saiu do quarto em trajes menores. Como era, como não era.

Assim que a mulher se aproximou da luz, foi a confirmação de muitos anos de mentiras.
Só com uma diferença: a mulher deveria andar na casa dos setenta. Mais velha que a sua avó. Com um cabelo tão eriçado que se as escovas tivessem alma rejeitariam passar os seus dentes naquele molho de fios cinzentos e brancos.
A pele pior que pele-de-galinha, rugas, varizes, boca descaida. Meus Deus que impressão!
Aquilo não seria amor, aquilo seria consertar canalizações!

Pensou em anular aquela cena disparatosa, mas, ao olhar o seu JIPE, a sua vidinha de madamme não sei das quantas, ao fim e ao cabo os seus rendimentos podiam estar ali, naquela velhaca tinhosa e cheia de massa...que mais dia menos dia, vai-se.

Em vez disso, regressou a casa, ao seu conforto de sedas. O marido deveria ter chegado pouco depois das duas da manhã. Entrou sorrateiro como costume, pôs-se na cama sem ligar a luz, sem fazer ruído.
Nem boa-noite. A mulher, decide manter a luz apagada e perguntou-lhe com qb de manhosice:
- Que tal a reunião, correu bem?

- Sim correu, conseguimos resolver muitos assuntos – Respondeu, sem conseguir esconder o tom de cansado de quem parecia ter mudado os quatro pneus do carro de uma acentada.

- Nesse caso deves estar cansado! Dorme que amanhã tens o tal encontro dos antigos jogadores do Braga, depois na quarta a tertúlia dos colecionadores de carteirinhas de açucar e depois o congresso do partido, não te esqueças.

Depois ela adormeceu, a pensar que, se tudo correr bem, poderá ter aquele vestido italiano e o colar de rubis que há muito lhe vem pedindo.
Mas para isso, é certo, terá de compreender o porquê de ele raras vezes pegar ao trabalho de manhã, e quando faz horas extras à noite, e a missão o chama, o gigolô, coitado, tem de dormir até ao meio-dia, obrigatoriamente. Chiiu, não façam barulho, que ele esta noite trabalhou muito.
 
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flavio silver
 
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Enviado por Tópico
Carolina
Publicado: 20/01/2009 19:09  Atualizado: 20/01/2009 19:09
Membro de honra
Usuário desde: 04/07/2007
Localidade: Porto
Mensagens: 3422
 Re: horas-extraordinárias
Está demais o teu conto, afinal ele era um prostituto de luxo...

Gostei de toda a trama, parabéns.

beijo

Enviado por Tópico
VónyFerreira
Publicado: 20/01/2009 19:21  Atualizado: 20/01/2009 19:21
Membro de honra
Usuário desde: 14/05/2008
Localidade: Leiria
Mensagens: 10301
 Re: horas-extraordinárias
Excelente, adorei toda a envolvência
da história.
Vóny Ferreira

Enviado por Tópico
Melody
Publicado: 20/01/2009 19:35  Atualizado: 20/01/2009 19:35
Muito Participativo
Usuário desde: 16/10/2008
Localidade: Brasil
Mensagens: 71
 Re: horas-extraordinárias
Que bela obra!
Um texto envolvente.

Abraço
George Melody

Enviado por Tópico
Maria Verde
Publicado: 20/01/2009 20:16  Atualizado: 20/01/2009 20:16
Colaborador
Usuário desde: 20/01/2008
Localidade: SP
Mensagens: 3489
 Re: horas-extraordinárias
de comunicação clara e ácida! brilhante!
beijo

Maria verde

Enviado por Tópico
Tânia Mara Camargo
Publicado: 20/01/2009 20:52  Atualizado: 20/01/2009 20:52
Colaborador
Usuário desde: 11/09/2007
Localidade:
Mensagens: 4246
 Re: horas-extraordinárias
Bom a minha trama é a seguinte, estou meio cega,
apelei pra cantar, você toca, então vê se dá pra
formar uma dupla aí, rsrsrsrsrs, beijos!

Enviado por Tópico
Pedra Filosofal
Publicado: 20/01/2009 21:30  Atualizado: 20/01/2009 21:31
Colaborador
Usuário desde: 17/09/2007
Localidade: Barreiro
Mensagens: 1273
 Re: horas-extraordinárias
Valha-me a Santa...

Enviado por Tópico
Batista
Publicado: 20/01/2009 21:53  Atualizado: 20/01/2009 21:53
Super Participativo
Usuário desde: 02/10/2007
Localidade: Setúbal
Mensagens: 147
 Re: horas-extraordinárias
Comida na mesa, só há reinação.

Muito bom esta estória.