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A deusa das cinquenta mãos

 
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Therássia reinava como uma deusa em Karthen, cidade resplandecente banhada pelas límpidas águas trazidas pelos subterrâneos mais virgens, brotavam azáfamas em corredores mercantis que se homogeneizavam com as meditações e espiritualidades emanadas dos inúmeros templos que circundavam a sociedade intensa, ao lado da deusa o deus Arkhenuth, exímio poderoso e benevolente apaixonado do espírito, contaminara cada canto da cidade com as suas geodesias e harmonias de padrões, aos ecos dos tumultos de multidões queria que a ressonância da arquitectura respondesse em cânticos que atirassem para as mentes imagens de pássaros plumados de arco-íris em infinitesimais belezas de colorizações, aos jardins fazia erguer em direcção ao subterrâneo lagos de águas coloridas em formas de palmeiras, de serpentes, de incrustações leoninas, e aí se banhavam os Karthenianos, entoando as poesias do seu deus presente e dos seus deuses passados, congratulando os corpos com os prazeres infinitos das sexualidades, exponenciados pelas doces ebriações, mundo dos mundos, centro dos centros, orgulho dos orgulhos, felicidades dos extremos esvoaçando em cada rosto sorridente, a utopia das ideias o era em Karthen, e com grandiosidade a deusa Therássia fazia-se venerar e venerava do cimo da mais alta torre centrada no âmago da cidade, o relógio perfeito inspirado pelos raios de luminosidade do Sol, à sombra entoava o tempo em trepidantes alegres cantorias. Assim era uma vida. Assim eram todas as vidas.

Mas nas harmonias mais se notam as distorções, aos ouvidos se agrilhoavam os susurros da conspiração, Adonay, irmão do deus Arkhenuth, tocava os timbres da descincronização, não sendo um deus aspirava em sê-lo, não descoberto o caminho da natureza das evoluções, trilhava nas revoluções a potência da deificação, às torres mais altas dirigia a sua existência, não enfrentando a ira de nenhum deus quando estes inexistissem, quando a harmonia se tornasse um púlpito, a existência de potenciais desarmonias era esquecida, e então toda uma queda era possível, na inexistência de Arkhenuth, toda e qualquer existência deificada seria suprimida, os laços de sangue eram ainda a lei, e na ausência de progenitura a deificação de Adonay era a lei perante a lei, norma esquecida na harmonia, norma relembrada quando o tumulto ruidoso finalmente surgiu. Depois da muita ebriação nocturna de Arkhenuth chegara a garrafa envenenada, tempo suficiente para ser toda ingerida pelo deus presente de Karthen, no dia seguinte havia-se então tornado o deus passado, nas lágrimas se afogou o desespero, das trevas surgiu o novo deus em menos de uns momentos, entoando o poderio da nova figura deificada de Arkhenuth, o deus Adonay. Prostradas as mentes aos novos poderios assim permaneceram, nada se manteve ou se equilibrou, o poder de poder apenas existia, a decadência austerizava-se a cada momento que passava, e os cânticos não lembravam pássaros plumados, nem os jardins traziam imagens de belezas reptilianas, asfixia muitas vezes, outras desespero na infelicidade, monotonia que era apenas interrompida pela agrilhoante decadência, às trevas sobrevivia uma única chama, esquecida nas ansiedades de poderios, menosprezada pelas feminilidades pensadas fúteis e inconsequentes, num pequeno templo escondido das grandiosidades meditava Therássia, acompanhada pelas suas fiéis sacerdotisas, por elas beijada e acarinhada, na crepitação do seu fogo de revolta acrescentavam-lhe mais inflamabilidade, não exercendo sempre esses mesmos poderes sacerdotais de inflamação, as sacerdotisas de Therássia empenhavam-se em satisfazer os desejos daquela que havia sido a deusa de todos e agora era somente delas, não só os desejos da deusa, mas de todas, no pequeno lago dentro do templo esquecido se congeminava a vingança, se satisfaziam os desejos deificados da sexualidade de feminilidades orgiásticas, por vezes se entregavam todas a um leito de plumas brilhantes e coloridas relacionando ao extremo os seus espíritos mentais e corporais, na sexualidade divina advinham as forças, na meditação as respostas para a sequiosidade de vingança, e tudo assim se processou até ao dia em que a vingança foi conduzida.

A noite de festa foi montada nas catacumbas luxuosas do pequeno templo, apenas Therássia e as suas sacerdotisas conheciam tal paradeiro, entre labirintos de sinuosos corredores a sala surgia gigante e esplêndida, adornada com os mais belos tecidos e os mais requintados materiais preciosos, preciosismos em tudo o que lá existia, cadeiras torneadas em formas serpenteantes, sofás gigantescos para dezenas de seres em vermelhos luxuriosos ou furiosos, desenhos sumptuosos pelas quatro gigantes paredes mostrando e demonstrado a grandiosidade artística, iluminações feitas por centenas de enormes velas suportadas por belos castiçais pendentes do tecto, então convidados os cinquenta poderosos de Karthen, fiéis seguidores da divindade de Adonay, outrora seus parceiros de conspirações. O convite fora aceite sem hesitações, uma demonstração de submissão de Therássia e das suas sacerdotisas ao poder de Adonay, um jantar em honra do novo deus, excessivamente ebriado na divindade para recusar uma excelsa bajulação, um jantar de luxo, e uma orgia como nunca havia acontecido durante o seu poder, culpou a falocracia que instaurou, mas que a feminilidade nas suas hostes não existiria nunca com propósitos de poder, isso garantia a si próprio, a masculinidade poderosa não iria ser usurpada pelos seres inferiores, contaminadores da força com as suas fraquezas, contaminadores da luz com as suas meditações sombrias, não mais existiria nada que não fosse o seu império de força e luz. Cinquenta convidados sentados na grandiosa mesa, altivez para o deus Adonay com mordomias mais exacerbadas, e as sacerdotisas de Therássia serviam em servilismo absoluto as hostes, com Therássia sentada ao lado de Adonay, a anfitriã da noite, a dinamizadora das conversas absurdas com os convidados do poder, galanteava e seduzia, prometia novas refeições pela noite adentro, vangloriava a lascividade das suas sacerdotisas, clamava por uma posição social menos obscura, somente uma qualquer coisa que não equivalesse a ser o que era no momento, nada. As ebriações evoluíam enquanto o jantar terminava, alguns dos convidados suprimiam sobremesas e atiravam com as sacerdotisas de Therássia para os sofás, despindo-as avidamente, e mais avidamente ainda degustando os paladares dos corpos femininos em múltiplas penetrações em brutalidade. O cenário estava então perfeito, havia concluído Therássia, clamou por uns momentos de meditação que forneceriam tempo às sacerdotisas para preparem o que se avizinhava, falou em roupas lascivas, em frutas pousadas em corpos, e quando os convidados aquiesceram as sacerdotisas saíram pela única via de acesso ao exterior, todas elas, encerrando a porta à saída, continuando Therássia com os discursos mordomistas e submissos, esperando pela visão que lhe traria o maior prazer alguma vez por si concebido, ansiando desfrutar momento a momento, saboreando cada partícula do que estava para chegar. Das paredes esguicharam líquidos, molhando tudo o que se encontrava na sala, com excepção dos elevados castiçais com velas e tudo o que para cima deles existia, os convidados riram e dançaram enquanto sentiam as humidificações nos seus corpos, muitos deles colocaram o rosto na direcção dos esguichos, sentindo múltiplos prazeres com tais líquidos, alguns masturbavam-se em pequenas poças em cima dos sofás, lambendo as mãos, gorgolejando nos líquidos, o festim chegara à loucura plena, ao patamar máximo concebido por Therássia que pensou ter chegado o momento, levantou-se e dirigiu-se à porta, certificou-se que se encontrava trancada, então entoou um cântico incompreensível aos convidados que se silenciaram a ouvi-la, olhou directamente nos olhos de Adonay que permanecia no mesmo sítio desde o começo do jantar, e dançou jovialmente, finalizou retirando duas estranhas rochas do seu vestido negro, e antes de as colidir proferiu:
― Que comece a orgia do fogo!
E a faísca soltou a loucura das chamas…
Os gemidos despoletavam a ansiedade das labaredas, eram ondas que embatiam forozmente nos corpos, que os consumiam em iras e fúrias, eram hinos de crepitações de carnes e perfumes de tórridos seres deambulantes em pânico, alguns tombavam mais repentinamente que outros, e prostravam-se em lindas ondas laranjas e vermelhas, gritos dissolviam-se nos bramidos do fogo, fugas impossíveis originavam movimentos circulares de luminosidades brilhantes, e a orgia continuou divinamente a sê-la…

* * *

As sacerdotisas de Therássia prosseguiram os caminhos que haviam decidido juntamente com a sua eterna deusa, já dentro do templo fecharam a porta que se abria e fechava aos labirintos das profundezas, alçapão que jazia no preciso centro do templo que iria ser encoberto em breve, então nada restando das profundezas que ousassem ascender às superfícies, apenas as memórias e nada mais. Encoberta por um enorme pano estava a peça final, descobriram-na, era a enorme estátua feita pelas sacerdotisas durante as longas noites, altura em que ninguém avaliaria acções, era a deusa das cinquenta mãos, sentada meditativamente, com o belo rosto de Therássia, em cada uma das mãos segurando uma rocha ardente, cinquenta rochas, cinquenta mãos, cinquenta braços. Arrastaram a enorme estátua com extremo esforço para o centro do templo, as forças não atenuavam no meio dos imensos suores, a fatiga fora deixada de parte para futuros onde ela pudesse ser satisfeito com o descanso meditativo, e já com a estátua colocada no meio do templo as sacerdotisas afastaram-se ligeiramente, em círculo perfeito entoaram cânticos em susurros. Finalizado o ritual cada uma pegou na pequena mochila que haviam feito previamente, algumas roupas e relíquias, pouco mais, accionaram o dispositivo de explosão, ligado a todas as paredes do templo, e partiram, para o exterior de Karthen, possivelmente em direcção ao sítio mais afastado daquela cidade, rumo a uma qualquer coisa, a um qualquer lugar, a um qualquer destino onde pudessem colocar na memória dos seres a deusa das cinquenta mãos, e pudessem exercer os rituais que a idolatrassem para todas as eternidades, Therássia seria esquecida no nome, nunca no espírito, e a odisseia das sacerdotisas da deusa das cinquenta mãos começara…
Já fora da cidade ouviram a explosão, todas as paredes do templo tinham colapsado, deixando naquele sítio, finalmente, apenas a figura grandiosa da deusa das cinquenta mãos…

* * *

A ruidosa explosão acordara toda a cidade de Karthen, os seres saíram para as ruas gritando e gesticulando, o pânico instalou-se quando se começou a propagar a informação de que o deus Adonay havia desaparecido, que nenhum poderoso iria surgir para socorrer a população em alvoroço, rumores corriam de que um enorme demónio de vários braços percorria a cidade envolta nas trevas da noite, pânicos que asseveravam pânicos, violências surgiam naturalmente nas escuridões profundas, pilhagens e destruições furiosas, ondas de seres em fúria e pânico embatiam umas nas outras, exponenciando a desordem, o tumulto, violações feitas no meio das ruas que começavam a arder, origens de chamas nos próprios pânicos, os deuses não tinham socorrido ninguém, nem iriam socorrer, muitos gritavam que o deus Adonay tinha morrido, e então mais chamas, mais violências. Mulheres violadas corriam nuas pelas ruas em círculos, passando uma e outra vez pelo mesmo sítio, muitas sendo violadas novamente, outros descerniam as fronteiras da cidade e fugiam desesperadamente do demónio das múltiplas mãos, diziam que tal ser havia incendiado meia cidade com as suas rochas ardentes, alguns eram linchados nos antigos jardins, diziam tratarem-se de demónios do fogo enviados pelo demónio das múltiplas mãos, outros prostravam-se no chão pedindo clemência a Adonay, alguns desses eram atropelados por ondas de população propulsionadas a pânicos, e assim foi até deixar de ser…

* * *

O Sol nasceu como sempre costumava nascer, calmo e radioso, imponente e insensível, iluminando os restos de Karthen, sem vida alguma, os vivos haviam fugido, os mortos forneciam mais morte aos seus sepulcros, muitas chamas teimariam ainda em arder, em reduzir tudo o que conseguissem a cinza, alguns corpos assim foram transformados, outros ainda esguichavam sangue para múltiplas direcções, até incontornável extenuação, alguns corpos nus esqueciam-se de membros aqui e ali, uma e outra cabeça dormiam eternamente onde foram colocadas de forma aleatória, uma mulher nua jazia espetada num ferro vertical tendo entre as suas pernas um também nu homem que se havia esvaído em sangue durante a violação, ainda permanecia em penetração, num jardim empilhavam-se incontáveis corpos, seriam os demónios linchados por uma das ondas de população em pânico, um braço segurava-se a um puxador de uma porta, já sem o corpo, esse estava a boiar num dos lagos agora vermelhos e viscosos, de todo o apocalipse apenas a deusa das cinquenta mãos permanecia meditativa e tranquila, bela e grandiosa, divina e harmoniosa, a luminosidade do Sol acentuou-lhe o sorriso na expressão, o extremo prazer da eternidade da existência enquanto que tudo à volta deixara de o ser…
 
Autor
Bruno Miguel Resende
 
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