Crónicas : 

«TEXTOS DE SEGUNDA» II

 
«TEXTOS DE SEGUNDA» II
 
O ACTOR

Cansei-me.
Desliguei o leitor de CD’s, fechei o livro, e rodei do sofá para o chão. Cheguei à janela, afastei as cortinas. Chovia a “potes”.

Fui comer. Voltei à janela. Já não chovia. A noite estava escura, o ar, fresco da chuva, cheirava a terra molhada; a cidade lavada. Vesti a gabardine e saí.

Cá fora, a cidade viva acolheu-me. No meio dos seus ruídos habituais, nas luzes do passeio. Percorri algumas casas e vi um bar um pouco retirado. Era um destes bares que não dá “muitos nas vistas”, sossegado e ao mesmo tempo, barulhento.

Com alguns empurrões, consegui passar e chegar ao balcão. Pousei o cabo do guarda-chuva na borda do balcão e sentei-me. O bar estava quente e o fumo bailava no ar iluminado. Senti o cheiro a vinho, a álcool. Ouvi as gargalhadas impiedosas de duas mulheres e dois homens que se acompanhavam. Deviam ser novos e contavam anedotas. Eram pessoas vulgares que se costumam encontrar nas pastelarias da cidade, quando vão tomar a sua “bica” após o jantar. Estes foram os que mais me atraíram a atenção. Não, esperem... ali um sujeito ao fundo do balcão, a beber cerveja...

- Desculpe, que deseja? – perguntou-me o empregado.

- Ah! Sim... um whisky, por favor.
Trouxe-me um cálice, encheu-o até ao meio e foi-se embora.

Bebia-o lentamente. O tal sujeito, desagradável, de olhos extraordinariamente brilhantes, olhou para mim, primeiro indiferentemente, abriu a boca, entortou-a, teve um gesto arrogante e voltou o rosto.

Estava mal vestido, tinha um casaco forte, gasto e sapatos demasiado velhos para quem vivesse bem.

Olhou-me de novo. Agora com interesse. Desviei a cara, não me interessava a sua companhia. Ele rodou o banco, desceu lentamente, meteu uma das mãos nos bolsos e veio com “ares de grande senhor” para o pé do meu banco.

O empregado viu-o e disse-me:
- Não lhe ligue... é doido “varrido” e “chato”.
Não lhe respondi.

Entretanto, ele examinava-me por trás e fingi não perceber. Sentou-se ao meu lado.

- É novo aqui?!... – disse-me
Respondo com um aceno.
- Hum!...
- Porque veio? Gosta desta gente?...
- Não os conheço – cortei bruscamente.
Eu devia ter um ar extremamente antipático. Mas, ele não desistiu.

-Ouça, - disse-me em voz baixa, levantando-a logo a seguir – devia ter ficado lá donde saiu, isto aqui não vale nada. Vá-se por mim... Está a ver aqueles “parvos” ali ao canto? Todos reparam neles... levam o dia a contar anedotas que conhecem já de “cor e salteado”...Vá-se embora. Todos lhe devem querer dizer, também, que não “ligue”, que sou doido...

Tinha os olhos raiados de sangue. Devia estar bêbado. Havia qualquer coisa nos seus olhos que me fez pensar. Era um homem demasiado teatral, havia nos seus gestos e segurança premeditada, simplicidade sofisticada do actor. Cada palavra sua, cada gesto, eram representações. Aquele homem não devia falar, devia fazer discursos.

Estudando-me persistentemente, disse-me:
- Você faz lembrar-me de alguém que conheço há muito, mas não sei quem é... Devia ter estado com esse alguém, até talvez num dia como este em que a chuva caía de mansinho... mas, esse alguém decerto partiu... como todos... vão-se embora na noite escura, ao som da chuva... nem olham para ver como fico.

Encolheu miseravelmente os ombros, alargou demasiado os braços e calou-se.

Eram três da manhã. Tinha agarrado uma “piela” com o ilustre desconhecido. Tinha os olhos muito abertos, os cotovelos fincados na mesa da cozinha e as mãos fechadas a segurarem-me os queixos pendentes. Ele tinha um dedo no ar, o indicador, em frente ao meu nariz, abanava a cabeça e balançava o dedo perante os meus olhos. Ria às gargalhadas, deixava a cabeça cair-lhe e quis levantar-se. O banco arrastou-se por uns momentos e cai com um estrondo. Olhou para mim com um ar empobrecido, parou de rir e fez: redondo no chão. Tonto, apanhei-o e arrastei-o para a sala.

Deixei-o dormir ali mesmo. Cobri-o com uma manta, olhei-o por uns instantes e fui aos “ziguezagues” para o meu quarto.

No dia seguinte acordei com uma terrível dor de cabeça. Dirigi-me aos tropeções para a casa de banho. Vi escrito no espelho, a espuma de barba; “Desculpe-me, obrigado. Não condene a miséria!”

Comecei a encontrá-lo todos os dias à noite. Fazíamos digressões nocturnas, íamos ao teatro. Quando percorríamos os corredores dos bastidores, que ele tão bem conhecia, saltavam-nos ao caminho actores que nos cumprimentavam; punham-lhe a mão no ombro e quando ele se voltava, davam-lhe grandes abraços. Quase toda a gente o conhecia.

E via-lhe os olhos subitamente tristes, angustiados. Ele não se esforçava por esconder a tristeza: era uma tristeza teatral. De vez em quando, acenava a cabeça para alguns dos seus amigos e dizia:
- Não devia ter deixado...

Inesperadamente, saía porta fora, certamente a chorar, deixando-me só. Quando saía via-o pelo canto do olho encostado a uma parede mal iluminada, mão nos bolsos, pé alçado e encostado à parede, cenho franzido e lábios esticados. Nessas ocasiões estacava, por momentos, e resolvia deixa-lo só. Estugava o passo e não voltava a olhar para trás.

O seu humor era variável. Tanto estava obstinadamente calado e sério, como ria sem saber porquê.

De certa vez, passei dois dias sem o ver. Ao terceiro perguntei ao “barmen”:
- Sabe o que é feito do actor?... Não o tenho visto.

- Ainda não sabia que ele tinha morrido? Foi anteontem. A esta hora já deve estar enterrado...foi melhor para ele...

Nem o ouvia. As minhas mãos crisparam-se à roda do corpo, cerrei os dentes. Queria chorar e não conseguia. E parti a correr pelas ruas. Por fim, cansei-me. Continuei a andar na noite, pelas ruas iluminadas. E vi desfilar as imagens. Estava vazio e, no entanto, tantas recordações. Não sentia nada, e apenas via as ruas iluminadas, as montras, os jardins.

Acabei por me cansar, de madrugada tive um sonho esquecido.

Percorro as ruas à noite, os bares escondidos, à espera de encontrar um actor “louco e chato”. De saborear mentira inocente transformada em verdade ideal. E há anos que nada disso acontece. É verdade que há sujeitos ao fundo do balcão, mal vestidos, a beber cerveja... mas nenhum que venha e pergunte se sou novo aqui... As pessoas continuam a rir como dantes, todos os dias vejo as mesmas caras, e se me perguntarem se gosto desta gente digo-te que não as conheço ainda... e olho-os na esperança que venha algum deles e que lhe possa dizer, como a raposa de “ O principezinho”:
- Por favor cativa-me.

Acordei, tinha parado de chover, lá fora ouviam-se as gotas mais tímidas ainda a cair dos telhados, fazendo um tic-tac na soleira do chão, como quem diz o tempo da vida continua, por segundos parei o tempo e pensei: - mais um dia irá começar e neste dia eu irei pisar, outra vez, o palco, mesmo conscientemente, por instinto, sempre na esperança de não perder o guião... Vivemos a loucura de cada representação, repetimos cenas batidas, reinventamos argumentos, escolhemos a personagem de cada dia, actores solitários, num palco povoado, ou não, mas onde nos sentimos e fazemos actores principais, mesmo que tantas vezes por opção, ou imposição desempenhemos papéis secundários...



Jorge Oliveira

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Enviado por Tópico
flavio silver
Publicado: 02/02/2009 11:30  Atualizado: 02/02/2009 11:30
Colaborador
Usuário desde: 24/09/2007
Localidade: barcelos
Mensagens: 1001
 Re: «TEXTOS DE SEGUNDA» II
concordo em absoluto.
um abraço para a tua crónica.
e outro para ti

Enviado por Tópico
cleo
Publicado: 02/02/2009 12:38  Atualizado: 02/02/2009 12:38
Usuário desde: 02/03/2007
Localidade: Queluz
Mensagens: 3731
 Re: «TEXTOS DE SEGUNDA» II
quidam
Entrei de propósito para poder comentar este teu magnífico texto, em que nos descreves a vida tal e qual como ela se nos apresenta neste palco onde todos somos actores e ao mesmo tempo os nossos próprios expectadores...

Cinco estrelas para o teu trabalho!

Beijo

Enviado por Tópico
gil de olive
Publicado: 02/02/2009 16:43  Atualizado: 02/02/2009 16:43
Colaborador
Usuário desde: 03/11/2007
Localidade: Campos do Jordão SP BR
Mensagens: 4838
 Re: «TEXTOS DE SEGUNDA» II
Parabens pelo excelente texto!Lindamente escrito!

Enviado por Tópico
AnaCoelho
Publicado: 02/02/2009 18:37  Atualizado: 02/02/2009 18:37
Membro de honra
Usuário desde: 09/05/2008
Localidade: Carregado-Alenquer
Mensagens: 11252
 Re: «TEXTOS DE SEGUNDA» II
Uma crônica que prende a leitura do principio aio fim, um retrato da vida que todos temos ao observamos, adorei vai comigo.

Beijos

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 03/02/2009 02:49  Atualizado: 03/02/2009 02:49
 Re: «TEXTOS DE SEGUNDA» II
Tarde demais,

Me leve vento,

Sou folha,

É tempo lento...

bjs


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Enviado por Tópico
saozinha
Publicado: 06/02/2009 15:55  Atualizado: 06/02/2009 15:55
Colaborador
Usuário desde: 09/08/2008
Localidade:
Mensagens: 1604
 Re: «TEXTOS DE SEGUNDA» II
Acordei, tinha parado de chover, lá fora ouviam-se as gotas mais tímidas ainda a cair dos telhados, fazendo um tic-tac na soleira do chão, como quem diz o tempo da vida continua, por segundos parei o tempo e pensei: - mais um dia irá começar e neste dia eu irei pisar, outra vez, o palco, mesmo conscientemente, por instinto, sempre na esperança de não perder o guião... Vivemos a loucura de cada representação, repetimos cenas batidas, reinventamos argumentos, escolhemos a personagem de cada dia, actores solitários, num palco povoado, ou não, mas onde nos sentimos e fazemos actores principais, mesmo que tantas vezes por opção, ou imposição desempenhemos papéis secundários...

Exelente,exelente,exelente.
A vida tal qual ela é!!¨

Beijo