Crónicas : 

ADEUS VELHO AMIGO E COMPANHEIRO

 
ADEUS VELHO AMIGO E COMPANHEIRO
(Ivone Carvalho)

Abandonei um amigo que me acompanhava diuturnamente há quase cinqüenta anos. Decidi substituí-lo por outro que posso dispensar durante muitas horas do dia, principalmente nos passeios, nas festas, nos jantares, no cinema, no teatro, durante os afazeres domésticos, enfim, um amigo que não se importa quando o deixo em casa, no escritório, no carro ou até na bolsa.

Há quase trinta anos eu tentava me afastar dele, mas não conseguia autorização para tanto. Durante alguns anos cheguei a substituí-lo por outro, muito menor, que me servia como ele, mas que, pelo excesso de uso, acabou me prejudicando, me forçando a voltar à união com o meu antigo companheiro.

Ressalto que desde que o abandonei, acabaram as minhas dores de cabeça. Eu precisava mantê-lo junto a mim para não senti-las, mas acho que ele também não me suportava mais!

Minha espera de tantos anos teve fim em poucos minutos. Ao tirá-lo, disse-lhe um sonoro adeus e, confesso, ele não me deixou saudades.

E já no dia seguinte eu tinha outro em seu lugar, bem leve, prático e que, por não tê-lo comigo o tempo todo, já me dou ao luxo de fazer como tantas pessoas que eu conheço fazem: não me lembrar onde o deixei! Eu que sempre dizia que feliz era quem podia dizer que não sabia onde largara esse companheiro, porque eu, cega assumida, não tinha como esquecê-lo em lugar algum.

Sem ele, minha aparência mudou. Para ser sincera, ainda não me acostumei com esta nova imagem e às vezes me pergunto se sou eu mesma quando olho no espelho.

Dentro de poucos dias voltarei a me maquiar e, doravante, não mais esconderei minha produção atrás das lentes.

E, creiam, jamais vou esquecer a deliciosa sensação que senti quando olhei a rua e vi o quanto minha cidade é bonita, o quanto são vivas as cores das árvores, das paredes, do asfalto, das pessoas. Sempre vi tudo isso com um tom fosco, apagado, como se houvesse uma membrana acinzentada recobrindo tudo.

Agora posso escolher livremente os meus óculos de sol e para leitura. E como são muito mais baratos do que aqueles cheios de graus para um monte de “defeitos” que necessitavam deles para serem corrigidos! Ou melhor, que hoje eu sei que eram parcialmente corrigidos.

Sempre temi perder a visão. Os graus que me acompanhavam não tinham jeito de estacionar. Mas nunca imaginei que um dia eu pudesse ver muito mais do que eu via, embora, como nada é perfeito nesta vida, hoje, sem óculos, eu não enxergo o que eu enxergava sem eles, mas aqui me refiro ao espaço de um palmo na frente do nariz. Daí para frente eu vejo tudo! Tudo mesmo! Até as placas de trânsito que eu mal via, as janelas dos prédios, as placas com nomes de ruas!

Há pessoas que vêem, mas não enxergam. Para enxergar precisamos apenas do coração e da inteligência e, por isso, todo deficiente visual tem o poder de enxergar sem ver. E hoje, graças a essa pequena e tão grande cirurgia eu posso, enfim, ver e enxergar!

SP, 11/02/2009

 
Autor
IVONE CARVALHO
 
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