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Las Satrapías: o Poema Enterrado Vivo

 
Paulo Monteiro

Estudioso da história, em mim cada vez mais se firma a convicção de que não existe história neutra. Todos nós estamos com ela comprometidos, na acepção mais radical da palavra. E radical sou, pois vou à raiz das coisas.
Revolta-me ouvir pessoas defenderem o retorno de um regime ditatorial. Fiz-me homem lutando pela liberdade. Sofri por ela e a amo imensamente.
Esse amor se aprofundou em 1975. Naquele ano, diversos companheiros que participavam da luta clandestina contra o autoritarismo foram presos. Dois deles me conheciam, sabiam até meu endereço. Foram barbaramente torturados, mas não me denunciaram aos verdugos. Não recordo mais seus nomes de guerra, como eram chamados os codinomes ou nomes falsos. Os nomes verdadeiros, que só vim descobrir tempos depois, eram Hilário Gonçalves Pinha e Ernesto Bernardi.
Ao saber que as prisões se espalhavam pelo Estado tratei de ocultar farto material “subversivo” que estava comigo. Jornais clandestinos, livros de autores proibidos e um poema. Exatamente, um poema! O último poema de Pablo Neruda, intitulado “Las satrapías”, escrito em 15 de setembro de 1973, poucos dias depois do golpe de estado que derrubou o governo de Salvador Allende, e instalou uma ditadura sanguinária no Chile.
Aqueles vinte e três versos do poeta do “Canto Geral” representavam o documento mais comprometedor, pois comprovavam que eu era um perigoso agente do comunismo internacional. Nas mãos dos carrascos, talvez se constituíssem na prova material de que eu fosse até mesmo um comedor de criancinhas. Para ser mais claro que eu – como se dizia dos comunistas – assasse criancinhas...
Ante a urgência de consumir com aqueles documentos, na impossibilidade de retirá-los de minha casa, na Vila Jerônimo Coelho, enrolei-os com todo o cuidado em sacos plásticos, abri um buraco, acomodei-os ali e transformei o local num belo canteiro de alfaces. Em todo esse processo fui auxiliado por minha mãe, Leocrécia da Silva Monteiro, a única pessoa de minha família que conhecia minha dupla militância e o que deveria fazer caso eu tivesse problemas com os órgãos de repressão.
Nos dias seguintes reunimos o Comitê Municipal do Partido Comunista Brasileiro – PCB – e fui designado para ir a Porto Alegre, participar de um grupo organizado para lutar pela liberdade dos companheiros presos. Na capital, caminhando, à noite, pelas ruas, com um representante do Comitê Central do Partido, de que não devíamos mais nos reunir “paralelamente”. Eram ordens de Moscou. Isso mesmo: “ordens de Moscou”.
Mandei todos eles às favas e a todos os outros lugares possíveis e imagináveis. Retornei para Passo Fundo e dissolvemos o Comitê Municipal e umas cinco ou seis células que nos davam sustentação. Para nós, leitores e estudiosos de Marx, Engels e Lênin, uma “ordem de Moscou” para que deixássemos nossos camaradas entregues às garras de torturadores era demais. Significava a negação do marxismo, a indignidade, no sentido mais lato da palavra. Nunca mais quis saber de partidos comunistas.
Ânimos serenados e alfaces comidas, sabendo que os companheiros que poderiam delatar-me, se comportaram com dignidade exemplar, desenterrei as publicações. Para minha tristeza, a umidade transformou o material impresso numa pasta ilegível. Salvei apenas uma velha edição de “Um Passo Adiante Dois Passos Atrás”, coincidentemente a denúncia de um partido que se transformara naquilo em que o PCB já era.
A tristeza maior, porém, foi a perda definitiva daquela edição clandestina de “Las satrapías”.
Algum tempo depois, sob pseudônimo, escrevi um artigo para um jornal do Partido Comunista Brasileiro prevendo que os comunistas brasileiros acabariam no que acabaram, até envolvidos em mensalões e mensalinhos.
Passados trinta e três anos, o poema está acessível a qualquer leitor, na internet. Alguns daqueles versos, ainda agora, mais de três décadas depois, continuam vivos na minha memória.
Hoje, numa homenagem a Hilário Gonçalves Pinha e Ernesto Bernardi, revelo essa história. Ambos se portaram, diante da prisão e da tortura, com altivez e dignidade estoicamente heróicas. E é em homenagem à memória de Hilário e Ernesto que faço e dedico-lhes esta tradução para o português o poema de Pablo Neruda.
As Satrapias

Pablo Neruda

Nixon, Frei e Pinochet,
até hoje, até este amargo
mês de setembro
do ano de 1973,
com Bordaberry, Garrastazu
e Banzer, hienas vorazes
de nossa história, roedores
das bandeiras conquistadas
com tanto sangue e tanto fogo,
atolados em suas riquezas,
depredadores infernais,
sátrapas mil vezes vendidos
e vendedores, atiçados
pelos lobos de Nova York,
máquinas famintas de dores
manchadas no sacrifício
de seus povos martirizados,
prostituídos mercadores
do pão e do ar americano,
imundos, carrascos, manada
de prostibulários caciques,
sem outra lei que a tortura
e a fome continuada do povo.


poeta brasileiro da geração do mimeógrafo pertence a diversas entidades culturais do brasil e do exterior estudioso de história é autor de centenas de artigos e ensaios sobre temas culturais literários e históricos

 
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PAULOMONTEIRO
 
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 14/03/2009 04:24  Atualizado: 14/03/2009 04:24
 Re: Las Satrapías: o Poema Enterrado Vivo
Como é bom ler textos como o seu. Adoro história, a importância que voces tiveram e tem na luta contra o autoritarismo, a falsa democracia, a cegueira do povo. bjus, amei


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 14/03/2009 10:14  Atualizado: 14/03/2009 10:14
 Re: Las Satrapías: o Poema Enterrado Vivo
Tive um prazer imenso em ler este seu texto. Interrogo-me sobre a situação actual. Será que a liberdade e a dignidade humana não estão ameaçadas e a requerer acções firmes? Que democracia é esta?
Abraço