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Retalhos de uma vida (retalhoXI, vida ceifada)

 

A irmã esteve quase sempre calada como que adivinhando o turbilhão de pensamentos dele, serviu-lhe uma sopa quente, pão cozido em casa e um queijo que ela mesma fazia acompanhado por um vinho tinto bebido em malga.
- Se não sais de casa, como é que consegues ter estas coisas aqui? Perguntou o Jorge.
- O velho António jardineiro traz-me tudo o que preciso, como sabes sempre nos entendemos bem. Jorge compreendeu então porque pensavam as pessoas que ela não tinha nada em casa. O velho António era mudo e não passava confiança a ninguém. Vivia numa pequena arrecadação no fundo do quintal da casa. O velho era o homem de confiança do seu pai e dedicava-lhe uma devoção e fidelidade quase canina, fidelidade essa que se estendia a todos os elementos da família.
- Pensava que o velho tinha morrido, sempre o conheci velho desde que me lembro, que idade terá? Ele ria-se sempre que eu lhe perguntava isso e nunca me respondeu. Porque não cuidas do jardim?
- Ainda não foste á parte de trás da casa, o quintal sempre foi cultivado. O Jardim deixei-o ficar assim para afugentar curiosos que tentavam espreitar cá para dentro, e como vês a casa por dentro também está limpa a e arrumada. Bem, vou-te preparar o quarto.
Jorge deitou-se na cama feita de lavado, deleitando-se com a suavidade dos lençóis, os cheiros da infância e juventude que o invadiam. Fechou os olhos embalado por essas recordações, olhou a janela, a figueira cujos ramos lhe serviam de escada para fugidas sub-reptícias, iluminada pelo luar e lhe projectava sombras chinesas na parede do quarto, quase sentia o cheiro da salva, do rosmaninho…e do tabaco do pai, esse ali, presente de novo! Tentou conciliar o sono, afugentar as memórias que o assaltavam agora.
Chegara a casa depois da hora de jantar, franqueara o portão e como sempre fazia foi soltar o piloto para fazer as rondas nocturnas á casa. O cão estava agitado, correu para a janela do escritório do pai, Jorge foi-lhe no encalço, o cão especou-se na janela a ladrar furiosamente, mas era alta e Jorge não conseguia espreitar, entrou em casa a correr…ao entrar sentiu uma pancada na cabeça que o derrubou por terra e ficou ali numa semi-inconsciência que não o deixava mexer mas conseguia ouvir… Entreabriu os olhos, viu ao nível do chão uma bota que os trabalhadores da construção civil usam, sentia a pressão forte da outra sobre o seu pescoço impelindo-o contra o chão impedindo-o de se mover. Pela porta do escritório entreaberta, ouvia a voz do pai.
- Não, por favor não, eu limitei-me a fazer o que a minha consciência mandava. Vocês não têm o direito de molestar a minha família. Vocês também são vítimas disso, pensem nas vossas famílias, foi também os vossos direitos que defendi. Subitamente vê o corpo do pai na frincha da porta, projectado violentamente contra a estante dos livros, uma mão segura-o pelos colarinhos, aparece uma segunda mão à altura do abdómen do pai, esta porém com uma navalha longa e fina de dois gumes
- Não! Gritou Jorge mas a pressão da bota nesse instante matou o grito e ficou de olhos arregalados a ver a faca a entrar lentamente, rompendo o colete do fato, atravessando o tecido da camisa, de repente vê-se o sangue espirrar inundando a mão que segurava a navalha. Tomado de instinto felino o agressor retira a navalha de repente e espeta-a de novo desta feita com uma violência inusitada demonstrativa de força e poder. Vê o sangue afluir á boca do pai em golfadas que lhe escorrem do queixo abaixo. A outra mão continuava a segurá-lo pelos colarinhos não o deixando cair, como se o agressor fizesse questão de ver a vida desaparecer dos olhos dele, como se lhe quisesse sentir o cheiro adocicado da morte directamente do hálito… Largou-o e ficou a ver o pai escorregar lentamente pela estante até se imobilizar no chão já sem vida.
Sentiu um pontapé violento na cara, outro nos rins quando se dobrou de dor.
- Também gostava de tratar deste filho da puta. Ouviu numa voz rouca, abafada pelo álcool e por capuz passa-montanhas.
- Não! O patrão disse para não fazermos mal a mais ninguém, vamos mas é embora.
Sentiu outro pontapé violento no rosto que lhe partiu o maxilar. Os dois homens afastaram-se, até á porta de entrada. Tentou olhá-los, estes ainda se viraram para trás.
- Não perdes pela demora meu cabrão. Dissera o algoz que o segurara, olhos castanhos e uma melena que lhe saia da máscara, preta e profusa, fungou em jeito de tique e desapareceram os dois no silêncio da noite…

 
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jaber
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Enviado por Tópico
Vera Sousa Silva
Publicado: 24/03/2009 11:14  Atualizado: 24/03/2009 11:14
Membro de honra
Usuário desde: 04/10/2006
Localidade: Amadora
Mensagens: 4098
 Re: Retalhos de uma vida (retalhoXI, vida ceifada)
Excelente capítulo, com a descrição do assassinato e mais umas pistas para o leitor perceber a que vem o Jorge e o porquê da irmã continuar por lá...
Gostei e espero por mais.


Enviado por Tópico
Antónia Ruivo
Publicado: 24/03/2009 13:31  Atualizado: 24/03/2009 13:31
Membro de honra
Usuário desde: 08/12/2008
Localidade: Vila Viçosa
Mensagens: 3855
 Re: Retalhos de uma vida (retalhoXI, vida ceifada)
Adorei espero pelos próximos, beijinhos

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 24/03/2009 15:44  Atualizado: 24/03/2009 15:44
 Re: Retalhos de uma vida (retalhoXI, vida ceifada)
Venha daí o resto. Estou a gostar do mistério!
Abraço

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 24/03/2009 15:46  Atualizado: 24/03/2009 15:46
 Re: Retalhos de uma vida (retalhoXI, vida ceifada)
Retalho IX? Perdi os outros. Vou revirar tua escrivaninha.Gostei da narrativa cruenta do assassinato, mistura de velho oeste com terror,Já estou ligada no conto como numa novela.
Bjins, Betha.

Enviado por Tópico
flavio silver
Publicado: 24/03/2009 20:34  Atualizado: 24/03/2009 20:34
Colaborador
Usuário desde: 24/09/2007
Localidade: barcelos
Mensagens: 1001
 Re: Retalhos de uma vida (retalhoXI, vida ceifada)
bviva jaber!
vou ter de ler estes retalhos do inicio.
aparece na sexta-feira para o jantar do ás artes, em barcelos. 20:30
vale?
abraço