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"...calvário..." (Excerto)

 
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"...calvário..." (Excerto)
 
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"...
Numa manhã fria de Fevereiro, dava entrada no IPO, para iniciar a primeira etapa de quimioterapia. Após efectuar os procedimentos normais de um internamento hospitalar, desloquei-me a uma sala, onde uma enfermeira me retirou sangue para proceder às análises necessárias.
Seguidamente, fui conduzido ao local onde iria passar os próximos dias. Quando entrei naquela enfermaria, deparei-me com um ambiente francamente desolador, via corpos enfraquecidos e rostos desanimados.
Dirigi-me para a cama que estava destinada a acolher o meu corpo, instalando-me ao lado da janela, podendo receber a luz emanada pelo sol. Era o sexto paciente daquela sala, o único que estava a iniciar todo aquele processo.
Depois de comodamente instalado, as enfermeiras vieram ligar aquele soro avermelhado directamente às veias da minha mão. Sentia uma sensação fria quando aquele soro penetrava o meu ser. O meu organismo era invadido por algo estranho e desconhecido, programado por uma máquina verde que comandava a velocidade e dose da infusão.
Ao meu lado estavam dois jovens como eu que já tinham passado por algumas etapas do tratamento. Estranhei bastante os seus pedidos para o almoço, quando a auxiliar veio trazer a ementa. Ficavam-se apenas por iogurtes e fruta, rejeitando os pratos à escolha.

Os dois primeiros dias decorriam com normalidade, sem grandes sobressaltos. Passava a maior parte do tempo deitado na minha cama, ouvindo música, observando o que se passava na enfermaria e recebendo a visita diária dos meus pais. Apenas era desligado da máquina, de manhã, para cuidar da minha higiene pessoal.
Pontualmente, as minhas veias começaram a ceder e tinha de ser picado novamente a fim de encontrar uma nova veia para poder receber aquela droga. As minhas mãos começavam a ficar doridas e enfraquecidas perante a violenta agressão do soro que as percorria.
Ao terceiro dia, surgiu um dos primeiros efeitos colaterais da quimioterapia. Quando chegou a hora do jantar, e tendo o tabuleiro com a comida à minha frente, senti-me indisposto. O cheiro da comida estava a provocar-me uma forte indisposição, chegando mesmo a ter enjoos. Percebi neste momento o porquê do sentido dos iogurtes e da fruta pedidos pelos meus colegas para as refeições.
Os dias que se seguiram foram muito complicados, quando se aproximava a hora das refeições era uma sensação terrível. Jamais havia sentido esta sensação de mal-estar provocada pela comida. Sentia o arrastar do tempo, as horas eram demasiado longas para que o meu corpo pudesse resistir. Os enjoos tornavam-se cada vez mais frequentes e intensos, o meu organismo rejeitava os alimentos. Eram quase sempre inúteis todos os esforços que operava para comer. Optava por alimentos mais frescos, sem cheiros fortes, mas mesmo assim era complicado conseguir alimentar-me.
As minhas forças diminuíam à medida que o tempo avançava, os meus membros sentiam dificuldade em responder aos movimentos necessários para me mover com as canadianas. O meu desejo, o meu único pensamento era que a dose programada terminasse o mais cedo possível, para aliviar um pouco aquele martírio. A cada dia que passava ficava mais impaciente, perguntava com frequência às enfermeiras quanto tempo ainda faltava e ficava sempre desiludido com a resposta obtida. Chegava a pedir-lhes para aumentarem a velocidade de infusão programada, para que pudesse regressar o quanto antes ao meu querido lar.
Aquele veneno continuava a percorrer as minhas veias e estava a destruir-me à medida que me ia consumindo. As minhas veias eram demasiado frágeis para resistir a tamanha agressão. As enfermeiras já dificilmente conseguiam encontrar uma veia nas minhas mãos para picar. As minhas mãos estavam bastante feridas, com vários hematomas.
Ao sétimo dia de internamento, chegava finalmente o fim do primeiro ciclo de quimioterapia. As últimas horas foram pesadas, o meu corpo estava de rastos, sentia reacções estranhas e fora do meu controlo no meu organismo. Quando reparei nas últimas gotas daquele líquido a correr pelo tubo em direcção às minhas veias senti um grande alívio.
..."
In Iluminado de Helder Magalhães (Corpos Editora - Julho de 2008)

http://www.corposeditora.com/site/mos ... ?idcoleccao=20&idobra=408
 
Autor
Moreno
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Enviado por Tópico
SofiaDuarte
Publicado: 09/04/2009 13:49  Atualizado: 09/04/2009 13:49
Da casa!
Usuário desde: 19/12/2008
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Mensagens: 338
 Re: "...calvário..." (Excerto)
Parece ser um livro deveras interessante... Quão dolorosa pode ser a cura, tão ou até por vezes maior que a propria doença...apenas os que passam por elas é que poderão dizer a resposta...

é um texto doloroso mas magnifico, real e cru.

abraço,
Sofia Duarte