Contos -> Humor : 

Conversa furada

 
Tags:  ignorância    dislexia  
 
Conversa furada
 
Engrácia excomungava a desdita, embora soubesse que as três filhas não tinham como se sentir culpadas. Bertília, Donzília e Generosa eram o quadro vivo da falta de massa cinzenta do seu, graças a Deus, já falecido pai. Dominguinhos, como era conhecido na aldeia, era mais burro que o jumento Pileca e mais casmurro que a mula velha Dentinha, ambos seus únicos amigos e confidentes, já que Dominguinhos zurrava, por entre dentes, os poucos vocábulos que conseguia vociferar.
Engrácia, até hoje, desconhecia porque havia embarcado naquele matrimónio, o facto é que a sua cruz não acabara com a morte de Dominguinhos, pois o finado deixara em herança 3 pedras por lapidar.
Bertília, com ar desalinhado, vivia escondida pelos quatro cantos da casa e agarrada ao borralho onde preparava café, cujo aroma a cevada, a remetia para a fantasia da Gata Borralheira e a fazia sonhar, embora ela dormisse sempre de olhos abertos. O seu vocabulário limitava-se rudimentarmente a meia dúzia de palavras com as consoantes trocadas.
Donzília, de formas arredondadas e ar afogueado, vivia agarrada à vassoura, e em movimentos repetitivos espalhava o lixo que acabara de recolher com a pá ferrugenta, condição a que ela atribuía a culpa de não ver concluída a tarefa a que se propusera, exterminar o lixo das suas miseráveis vidas. Expressava-se com uma dislexia quase tortuosa o que a obrigava a evitar falar com estranhos.
Generosa, a quem a mãe assim baptizou por acreditar que esta filha seria talhada à sua imagem, nasceu muito franzina e ao longo dos anos foi-se revelando de saúde muito frágil, destruindo as ilusões de Engrácia de este último rebento ser o mais são e escorreito. A beleza também não assentou nela e a timidez impediram-na de se relacionar, por complexo e fraqueza. Mesmo em família era quase a sacho que se lhe arrancava alguma palavra.
Não podendo contar com as filhas para a ajudarem nas compras, Engrácia avisou que iria à cidade e recomendou, como era seu uso, que não abrissem a porta a ninguém e que não falassem com estranhos na sua ausência.
Um vendedor ambulante que passava por ali, conhecedor da história destas tristes irmãs, proibidas de falar com desconhecidos, fez uma aposta com um amigo da aldeia em como seria capaz de pôr as três irmãs a falar com ele.
Aproximou-se da casa e bateu à porta, recebendo em troca um silêncio mordaz, as irmãs estavam assustadas e não ousavam sequer falar umas com as outras. O vendedor começou a gritar que estava a morrer à sede e de pronto a porta abriu-se e surgiram, em fila, as 3 jovens com olhar esbugalhado.
O vendedor repetiu que tinha sede porque achava que tinha febre e que se não lhe dessem de beber que não aguentava até à cidade. As irmãs entreolharam-se com cumplicidade e Bertília foi à cozinha e trouxe um púcaro com água fresca da enfusa. O Vendedor agradeceu e bebeu a água, deixando de seguida cair o púcaro que se fez em cacos de barro.

Bertília gritou de imediato: “ Ai que lá se tebou o putaínho!”
Donzília retorquiu: “Tebou-se não se tebasse!”
E Generosa na convicta eloquência do seu discurso acrescentou: “A mãe disse que não fanasse, bem fiz eu que não fanei!”
O vendedor saciado da sede e da curiosidade lá se desculpou e partiu para a cidade.
A aposta estava ganha.





Maria Fernanda Reis Esteves
49 anos
Natural: Setúbal
email: nandaesteves@sapo.pt
Open in new window
 
Autor
Nanda
Autor
 
Texto
Data
Leituras
1872
Favoritos
1
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
23 pontos
15
0
1
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.

Enviado por Tópico
gil de olive
Publicado: 21/05/2009 19:35  Atualizado: 21/05/2009 19:35
Colaborador
Usuário desde: 03/11/2007
Localidade: Campos do Jordão SP BR
Mensagens: 4838
 Re: Conversa furada
Se tivesse mil textos desse tipo pra ler não ia sair daqui.Ficou bom demais!

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 21/05/2009 19:38  Atualizado: 21/05/2009 19:38
 Re: Conversa furada
Texto criativo e muito bom, Nanda!
Abraços.

Enviado por Tópico
jaber
Publicado: 21/05/2009 21:07  Atualizado: 21/05/2009 21:07
Membro de honra
Usuário desde: 24/07/2008
Localidade: Braga
Mensagens: 2780
 Re: Conversa furada
a minha irmã bertilia, vai gostar do putainho...rss eu gostei da generosa...quem mandou "fanar"? gostei de te ver neste registo...

beijo Nanda


Enviado por Tópico
António MR Martins
Publicado: 21/05/2009 23:02  Atualizado: 21/05/2009 23:02
Colaborador
Usuário desde: 22/09/2008
Localidade: Ansião
Mensagens: 5058
 Re: Conversa furada
Nanda,

Delicioso este seu conta.
Gostei imenso.

Beijinho

Enviado por Tópico
Antónia Ruivo
Publicado: 21/05/2009 23:11  Atualizado: 21/05/2009 23:11
Membro de honra
Usuário desde: 08/12/2008
Localidade: Vila Viçosa
Mensagens: 3855
 Re: Conversa furada
Para terminar o dia nada mau, gostei, beijinhos

Enviado por Tópico
Sterea
Publicado: 22/05/2009 09:17  Atualizado: 22/05/2009 09:17
Membro de honra
Usuário desde: 20/05/2008
Localidade: Porto
Mensagens: 2999
 Re: Conversa furada
Nanda!!! E eu a pensar que este "A mãe disse que não fanasse, bem fiz eu que não fanei", era só uma historieta-de-trazer-pela-aldeia-da-minha-mãe!! kkkkk.... Juro, deu-me imenso prazer ler isto! É que essa expressão é-me familiar desde pequenina, quando vivia na minha aldeia e rodopiava as saias da minha mãe! (mmmmm, acho que vou aprofundar a versão dela, pelo que me lembro era uma versão diferente, fruto podado na terrinha...). Mas adorei! E a sua maneira de a registar em palavras, meu Deus, está impecável!
Beijinhos outra vez!

Enviado por Tópico
Sterea
Publicado: 22/05/2009 10:36  Atualizado: 22/05/2009 10:36
Membro de honra
Usuário desde: 20/05/2008
Localidade: Porto
Mensagens: 2999
 Re: Conversa furada
Já me lembrei!... a "minha" versão era mais: "Fazia-se caldo de favas, mas a ordem era não falar, para não acordar a gula de quem batesse à porta... ...e os piquenos, deixados sozinhos a vigiar as favas saltitantes: «...tira o teto...»...«mete a toné...»...«ai, a mãe disse que num fanasse!»...«bem fiz eu, que num fanei!...»

kkkkkkkkkk

Jinho!

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 22/05/2009 10:37  Atualizado: 22/05/2009 10:37
 Re: Conversa furada
Ai...ii
Nanda adorei...amei... gostei... e pena que a história acabou, estava deliciosa D+... 5 Estrelas
um jinho,
T!na

Enviado por Tópico
VónyFerreira
Publicado: 22/05/2009 20:15  Atualizado: 22/05/2009 20:15
Membro de honra
Usuário desde: 14/05/2008
Localidade: Leiria
Mensagens: 10301
 Re: Conversa furada
Nanda, gostei da tua prosa.
Deixaste-me agradavelmente surpreendida.
Continua a explorar esta vertente, valeu?
Muito bem!
Bj
Vóny Ferreira

Enviado por Tópico
FatinhaMussato
Publicado: 23/05/2009 15:22  Atualizado: 23/05/2009 15:22
Colaborador
Usuário desde: 17/11/2007
Localidade: Jales (SP / BR)
Mensagens: 2051
 Re: Conversa furada p/ Nanda
Nanda, apreciei muito o teu texto!
Muito divertido e cheio de figuras interessantes!
Pensava que eras muito boa poetisa, mas gostei muito de tua prosa... Também!

Beijinhos e carinhos!

Fatinha.

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 23/05/2009 16:12  Atualizado: 23/05/2009 16:12
 Re: Conversa furada
Não tinha ainda apreciado este teu lado ( dos contos) Nanda!
E só tenho q dizer que achei o máximo!
parabéns
bjs
Edilson

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 23/05/2009 21:24  Atualizado: 23/05/2009 21:24
 Re: Conversa furada
Adorei este texto Nanda! Muito bem escrito, cativa no primeiro instante. Gosto da tua poesia mas, neste registo estás magistral.

Beijo azul

Enviado por Tópico
Nanda
Publicado: 27/05/2009 10:34  Atualizado: 27/05/2009 10:34
Membro de honra
Usuário desde: 14/08/2007
Localidade: Setúbal
Mensagens: 11076
 Re: Conversa furada
Obrigada a todos quantos se divertiram com a minha conversa furada.
Beijos na alma
Nanda

Enviado por Tópico
Vania Lopez
Publicado: 11/06/2010 02:10  Atualizado: 11/06/2010 02:10
Membro de honra
Usuário desde: 25/01/2009
Localidade: Pouso Alegre - MG
Mensagens: 17925
 Re: Conversa furada
Querida, só te peço que não pare...beijo