Poemas : 

Histórias do cinema piolho

 
Gostava de fazer um filme... mas fico-me pelo gosto, pela tentativa de me imaginar a filmar a outra parte da vida, converter um homem sujo que cheira a merda de esgoto no mais cândido anjo que me leva pela mão a escutar o som das caixas de musica e a guardar debaixo da língua o sabor do vodka e do sangue pré menstrual. O meu medo, o meu terrível medo de tudo seria o suficiente para me libertar do sentimento de culpa, criaria personagens do mais fraco que a condição humana oferecesse e tu olhando os olhos deles, o andar deles, a língua que falam e o coração que lhes treme verias em mim o Deus que não sou, o cavaleiro invencível a cortar medos como quem corta cabeças. Quando posso vou ao cinema. Lembro-me do cinema piolho que ficava no bairro do bosque, lembro-me que o ecrã era um lençol velho e que num certo filme de aventuras as pulgas saltavam como as ondas do mar. Ficava tão embebido no filme que nem sentia as picadas perfurando-me a pele, no velho cinema lembro-me que ficava com o corpo preso á cadeira quando passavam aqueles filmes indianos e eu imaginava uma alma perfumada a tocar-me num modo de não me tocar. Naquela altura o cinema era só um pacto com a minha imaginação, a senhora que voava no chapéu de chuva era tão jovial e alegre como a moça que vendia algodão e mostrava as meias de seda aos olhares gulosos dos pequenos pedreiros que se roçavam nas cadeiras fantasiando coisas que não estavam no filme. A primeira vez que a paixão me entrou na vida como rebuçados entrando no bolso tinha eu 17 anos, eu não costumava falar com os meus pais, a minha vida era muito secreta, escrevia poesia em folhas de papel pardo que roubava na mercearia e encontrava-me ás escondidas á porta do tal cinema piolho com o caderno dos poemas debaixo do braço e ela depois achava-me um chato, eu que tinha medo de a magoar com o prazer escondido dos meus desejos e ficava semanas a remoer porque carga de água não a tinha beijado. Na próxima vez o argumento ia mudar, as minhas mãos no seu corpo, mesmo que corresse o risco de levar um estalo, parecido ao gongo que certo homem semi nu toca antes de começar o filme. Anos mais tarde num outro cinema da cidade fui com o meu pai ver o que dizia ele ser um filme pornográfico, o senhor chamava-se Pasolini, o meu pai era um homem severamente católico e só os primeiros anos da revolução fizeram cair uma certa rigidez de comportamento, aquele filme eram as mil e uma noites, umas mil e uma noites onde me imaginava num tapete com as freiras do colégio da cruz da areia, eu a fazer sexo com elas, a esfregar-me no corpo delas como batatas na gordura do óleo. Costumava refugiar-me no cinema quando fazia gazeta ás aulas, sabia muito mais sobre a vida dos actores e dos realizadores do que a matemática e as formulas químicas e aqueles nomes todos das ciências naturais que tinha de decorar. O corpo da Sofia loren era a melhor das ciências naturais. O cinema era aquela parte visionária da minha poesia, usava um sobretudo cheio de remendos, nos bolsos guardava caixas de medicamentos, na escola trocava cromos de futebol e diferentes marcas de drunfaria. Certa noite fiquei escondido na sala de projecção, passei a noite a dormir, eu e o projeccionista que tinha trabalhado num circo italiano, contava que tinha conhecido felini, que tinha doze mulheres e que já fora forte como Hércules. Havia tardes, principalmente as de inverno em que só havia eu e meia dúzia de gatos pingados, havia um tipo que cheirava ao chulé e quando o homem da lanterna o quis expulsar jurava a pé juntos que era o Charlot a causa daquele cheiro e o pessoal assobiava comentando que também era o Charlot que se punha aos peidos por causa de comer os atacadores. O meu pai trabalhava numa fábrica onde se fabricavam peças para o interior dos comboios, por a tal fábrica ter fechado fui viver com a minha avó para uma zona muito perto da Espanha, fiquei um ano sem escola e lembro-me de passar por lá um homem com uma caixa de musica e uma máquina de filmar, nesses dias a igreja do lugar ficava vazia e houve até um certo domingo de Páscoa em que não houve a paixão de Cristo, mas a paixão de gina, conto ainda que levei uma tareia da minha avó, uma mulher que tinha lutado contra os mouros ainda Deus não tinha ideia de filmar o mundo. O cinema não seria a minha vocação embora me imaginasse a filmar as nuvens, a filmar o teu corpo como uma pintura de Miguel Ângelo, filmaria os meus eus carregados de solidão, estava chateado da minha poesia, resolvi inscrever-me num grupo de teatro, tudo era do pior, o encenador que naquele tempo era chamado de ensaiador era cheio de tiques, era um anjo loiro a dar ao rabo e a escrever piadas mais mal cheirosas que o cu. O divertido daquilo tudo foi a minha primeira experiência como saltimbanco, se conseguisse estar a fazer o pior cinema já ficaria contente, mas sabia de muitos filmes que tinham sido peças de teatro e muitos livros que eram costurados de vida. Por alguns momentos podia escapar á autoridade paterna e não teria de ouvir a minha mãe sobre a apresentação dos meus cadernos repletos de recortes poéticos, eróticos e hereges. O cheiro do velho cinema, a recordação do velho televisor a válvulas que não se aguentava nas canetas e o meu pai a dar murros na mesa por não conseguir ver o futebol parecia eu um personagem órfão num filme de pobrezas e gargalhadas, eu magro e esguio como um desenho animado. Foram muitas recordações do cinema que consolaram a minha fome de pão. A fome de Charlot era a minha fome, a lágrima de busten Keaton, era a minha lágrima. Agora sinto que o cinema não me envergonha da minha solidão. Vejo o cão sarnento e escuto o martelar da chuva e parece que aquela serenata se renova passados estes anos. O cinema essa alma que existe em todos os olhos, ajudou-me na construção de uma certa e protectora mentira que me salvou o ego e o orgulho. Lembro-me de ser o cinema a máquina de apagar medos, cada murro que o Trinitá dava no bandido era eu a imaginar-me a bater no velho professor que dormia com a cabeça sobre a secretária e por cima daquela cabeça de porco, um Cristo nu a chorar e a verter sangue. Abençoado Trinitá que te vingas por mim, acho que terei poupado muito dinheiro em psicanalistas e psiquiatras, mas verdade verdadinha o Trinitá deixou mal a minha reputação de intelectual. Os músculos e a força desse herói na verdade não me ajudaram a esquecer as humilhações da escola, da família, do mundo social. Tentei escapar pela porta do riso, procurei na filosofia e mais tarde num certo tipo de cinema compreender como era possível filmar a poesia, como o cinema é um jogo, morre-se quando se perde, ganha-se quando se renasce. Gostava de morrer na escuridão de uma sala de cinema, certa noite sonhei que o Marlon brando estava a puxar-me e me mostrava o lodo que havia nas almas e eu gritava-lhe que tinha um medo pavoroso de um certo tio que se lambuzava desde os olhos aos pés, parecia um mafioso, um homem que desejava poder apagar da memória. Os cinemas deviam ser como as igrejas, a gente podia lá ir rezar, quando fugi certa vez da tropa refugiava-me numa igreja, era uma igreja velha, os cabelos do Cristo estavam a cair, tinha tomado uns comprimidos, via o Cristo e a virgem com as caras desfiguradas, pareciam leprosos, perguntavam-me o que fazia ali e eu perguntava se havia vinho, se eles gostavam de cinema, se as cadeiras de madeira do cinema império tinham sido feitas por José o carpinteiro?! Dormi por lá algumas vezes, outras ia a um velho cinema abandonado olhar uma cadela que tinha tido cachorritos e eu imaginava que eu era o vagabundo e ela a dama, um dia encontrei-a morta a ela e aos cachorros, tinha havido uma briga de traficantes de heroína, nessa noite chorei tanto que senti vontade de cortar os pulsos, senti vontade de correr todas as salas de cinema, de suplicar que me deixassem entrar num qualquer filme, que o velho hitch me deixa-se entrar na casa abandonada e eu pudesse morrer em paz. Estou aqui perdido nestes pensamentos, a imagem dos cães ensanguentados, da chuva torrencial, dos olhos dela que se cruzam com os meus como o relâmpago se cruza com o céu. Foi breve o romance e longa a solidão e para meu consolo ficou a recordação de a possuir, de a ter nas minhas aventuras e fantasias, de ser um vagabundo de cinemas, de tendas de circo, ficou-me o consolo de a inventar sempre que as luzes se acendiam, o poderoso cinema acendeu dentro do meu corpo essa força, esses movimentos, essas imagens, canções e palavras flutuando como água no olhar dos personagens, neles estava a minha coragem a minha cobardia. Sinto-me um D Quixote, sinto-me um velho mineiro buscando ouro, mas sou um pobre preto oriundo de uma família de escravos que nasceu com o dom para a improvisação e que dança tão rápido como uma locomotiva ou como as multidões correndo velozes graças á velocidade da máquina de projectar. Acreditava que a sala escura do velho cinema seria a minha casa, o filme esse não teria intervalo ou apenas um que fosse para te ir buscar. Por segundos sairia da sala e correria rumo a um futuro onde estarias com esses teus olhos pretos, dava-te as mãos e entrava contigo sorrateiramente ao som dos dias da rádio. Depois sentávamo-nos á mesa como uma família judia e o nosso avô tocaria violino ou fugiríamos do velho Alcapone tão assustados como num primeiro amor em que nos sentimos entre o abismo e o paraíso. Tenho frio, visto a gabardina e penso naquela história que aconteceu em Lisboa do homem que matava prostitutas, uma delas foi morta naquele cinema onde uma vez dormi, Lisboa tem um silencio, as águas do rio dormem e respiram como os homens, há na verdade uma pausa na narrativa que faz mover qualquer coração, qualquer pensamento. Alguém desce umas escadas, uma sombra de suspense suspensa nos olhos... há um silêncio, certamente não é dos inocentes.
Lobo



 
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poetavoador
 
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Enviado por Tópico
Nanda
Publicado: 28/05/2009 11:26  Atualizado: 28/05/2009 11:26
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 Re: Histórias do cinema piolho
Lobo,
O cinema sempre povoou o imaginário de muitas pessoas e preencheu o vazio da solidão.
Bj
Nanda