Contos : 

O MUNDO EM MEU CINTURÃO

 

Serginho foi despertado pouco antes das sete da manhã. Enquanto ele fazia a primeira higiene corporal do dia, sua mãe preparava o café-da-manhã. Teria que mandá-lo bem alimentado para a escola.
O menino sentou-se espalhafatosamente à mesa e mal deu atenção à refeição. Demonstrava muito mais atenção à tevê que transmitia as notícias matinais. O locutor anunciou: "Mais um homem-bomba estoura num mercado em Telaviv. Até o momento o saldo de mortos é de mais de uma centena de pessoas..."
O garoto ainda não acabara a refeição quando a perua buzina no portão. A mãe agasalha a mochila com o material escolar e o conduz ao veículo. Ela acena sorridente para o filho. Ele apenas faz um leve meneio com a cabeça pouco erguida. Não emite sequer um pequeno sorriso. A mãe fica a espreitar até o veículo escolar sumir na esquina.
À noite Serginho deixa transparecer sua preo- cupação. A mãe percebe uma anormalidade no comportamento do garoto. Naquele dia ele sequer efetuou as tarefas escolares. Está ansioso para assistir ao telejornal noturno. Senta-se no sofá frente à tevê ao lado do pai e como uma pessoa a dulta atenta para cada detalhe do noticiário. Ansioso ele aguarda as notícias do Oriente Médio. "Um jovem muçulmano de apenas dezessete anos tinha uma considertável quantidade de explosivos presos ao cinturão". O correspondente internacional faz a narrativa de toda a notícia trágica. Nos últmos meses se tornaram constantes os episódios sangrentos culminados pelo embate entre israelenses e palestinos. Quase todos os dias os jornais transmitem notícias fatídicas do conturbado subcontinente. No entanto, quase imperceptivelmente o garoto Serginho comove-se com aquelas notícias. Com uma ansiedade fora do comum mal ele vê passar as horas para poder, como um bom telespectador, ver e ouvir os fatos horripilantes.
No final da semana seguinte vai ao shoping com os pais. É véspera de seu aniversário. Os pais não querem lhe fazer nenhuma suspresa e perguntam qual o presente que ele deseja ganhar. "Eu quero um cinturão". Estupefatos, pai e mãe, tentam convencê-lo a aceitar um presente mais adequado. O menino não se dá por vencido. Insiste em querer um cinturão largo e de fivela grande. Contariados os pais se dirigem a uma loja do ramo a fim de satisfazer o desejo do filho de oito anos de idade. Todo contente o menino sai da loja tentando prender o cinturão à cintura. Os pais se entreolham num misto de apreensão e perplexidade.
Alguns dias depois os pais percebem que os noticiarios do Oriente Médio estão interferindo no caráter do filho.Todas as manhãs o menino senta-se à mesa mais atento aos noticiários do que à refeição. À noite ele amarra o cinturaão de fivelas à cintura e com exagerado esmero senta-se no sofá, ao lado do pai, para assistir ao noticiário internacional.
As guerrs do Oriente Médio, entre judeus e muçulmanos é sempre o cardapio do dia. É, pois, esse episódio desagradável que prende sua atenção. Os pais já havim notado o seu entusiasmo e seu interesse pelos fatos. As noticias eram trágicas e envolviam nações tão remotas que eles jamais imaginaram despertar o interesse de uma criança daquela idade.
Sempre que os telejornais encerram as edições noturnas o garoto entra para seu quarto, e fecha a porta com cuidao. O pais passaram a espreitá-lo. Perceberam que ele não estava indo direto para a cama. Por muito tempo, antes de dormir, ele executava um ritual inusitado. Junta seus heróis de cera: Mandrake, Super-homem, Capitão Gancho e dezenas de outros que faziam parte de sua coleção, colocava-os perfilados como num desfile militar ou numa estratégia de guerra e passava a emitir vozes de comando.
"É só coisa de criança ", tentou tranquilizar o pai. "Mas esse comportamento é muito repetitivo", preocupou-se a mãe.
Na noite seguinte a história se repetiu. Jornal matinal e telejornal noturno prestigiados pelos olhares e ouvidos atentos de Serginho. O noticiário internacional sempre recheados de massacres na Faixa de Gaza, na Cisjordânia, nas Colinas de Golan, em Jerusalém, em Telaviv, em Bagdá. Naquela noite o menino deixou transparecer um enfurecimento mais acentuado. Ao fim do telejornal entrou para seu quarto, bateu a porta com um ruidoso sopetão e passou a fazer as arrumações em seus heróis de cera e plástico. Depois de posicionar os bonequinhos em ataque e defesa, pôs o cinturão de fivela na cintura, pendurou nele meia dúzia de frutos de pinho, que ele havia havia colhido no quintal durante o dia, e passou a andar de um lado para outro, perto dos soldadinhos e heróis. De uma só sacada com a raquete de pinguepongue espatifopu todos os homenzinhos. Fez uma manobra brusca com os frutos de pinho, e como se eles fossem granadas explodindo, atirou-as ao longo do quarto. Todas as vezes que isso fazia ele proclamava: "Eu sou poderoso". Em seguida ele caía de braços abertos simulando estar morto.
No dia seguinte após assistir, como de costume, ao telejornal, entrou para seu quarto e ocupou-se em armar a mesma cenas dos últimos dias. Naquelas noites os noticiários também davam conta de catástrofes naturaais na Ásia, injustiças sociais na América Latina, fome e epidemias na África. E assim, ao lado dos habituais soldadinhos, heróis e homenzinhos comuns o garoto posicionou animais da fauna planetária: leões, elefants, rinocerontes e leopardos como feras fabulosas: hidras, dragões, minotauros, pégasos, bestas etc. Mas para a suspresa dos expectadores, havia também, homenzinhos maltrapilhos, casebres, árvores raquíticas e ruínas de edifícios. Também havia um castelo enorme feito de encaixes de peças plásticas que ele imaginou representar o palácio do imperador.
As cenas tinham se repetido por várias noites. O ritual que poderia ser ou tinha aparência de uma simples diversão lúdica, poderia estar exercendo conotações de uma perigosa alegoria. Naquela noite Serginho arrancou o cinturão e junto com os frutos de pinheiro e com fúria atirou-os pela janela do apartamento. Depois de olhar em volta de si e observar todos seus brinquedos, inclusive o televisor, videogame e ventilador feitos cacos, vociferou alto: "Os cinturões não são capazes de mudar nada no mundo".


JOEL DE SÁ
SP, 09/06/2009.

 
Autor
Joel Pereira de Sá
 
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Enviado por Tópico
Antónia Ruivo
Publicado: 10/06/2009 09:38  Atualizado: 10/06/2009 09:38
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 Re: O MUNDO EM MEU CINTURÃO
Meu amigo, parabéns por este conto, será que o mundo acorda a tempo por um fim a tudo isto, as televisões são um dos maiores meios de manipulação das vontades humanas,principalmente das crianças, e o pior os pais nem se apercebem do que se passa nas suas próprias casas de tão atarefados e alheios que andam, felizmente no seu conto o Sérginho viu que heróis não existem, que bom que era que o futuro da humanidade tivesse esse final feliz, beijinhos