Crónicas : 

UMA VEZ UMA NASSA

 

ERA UMA VEZ UMA NASSA


Já não me recordo de vestígios da sua fisionomia, pois vão lá já muitos anos. Sei que era o Zé, nosso criado (naquele tempo ainda havia criados). Tenho nos meus imprecisos registos a ideia de que seria ao tempo homem dos seus vinte e tal anos e a roupa que lhe enxergo a esta distância se não é preta é de um escuro próximo. Calçava uns socos que arrastava à custa de uma força que só um homem de vida dura podia carregar. Um dia de manhã a Emília dá a notícia de que durante a noite um rato terá dado uma ferrada no nariz do Zé. Este foi um evento patético, embora não grave, mas o que mais me importa recordar é o gesto que ele um dia teve para comigo e que ficou a tinir no relógio das coisas onde mora gratidão. É que um dia - recordo que estava uma linda manhã de primavera – o Zé aparece em nossa casa com uma nassa, isto é uma gaiola de caçar pardais, feita de varas de vime. Foi uma dádiva preciosa que logo fui pôr num sítio que me pareceu estratégico.
Nos primeiros dois dias fui lá uma infinidade de vezes, mas nada. Até que ao terceiro dia de manhã, vejo esvoaçar num alvoroço um pardal dentro da nassa. Com mil cuidados o tirei da prisão, não sei ainda com que intuitos. O problema colocou-se-me com alguma seriedade quando o senti em ânsias dentro das minhas frágeis mãos. Interroguei-me sobre o que fazer, mas antes de ouvir de mim a resposta, alguma voz me aconselhou a facilitar-lhe a vida. Instintivamente fui afastando os dedos, até que o pardalinho com bom sentido de oportunidade, se me esgueira das mãos. Eu acho que respirei fundo e fui atravessado pelo extravagante sentir de que não era cruel nos meus instintos ao dar esta chance ao pardalito. Acho que nessa manhã ficou cumprida a missão da nassa que, de qualquer modo, ficou no mundo das minhas pequenas grandes recordações. Obrigado Zé pela tua lembrança e pelas horas que ela te custou. Que é feito de ti?


P.S. Ao fim da tarde deste mesmo dia, regressado da escola e de certo ainda sob a euforia do episódio da manhã com o pardal que viera à vida com bons augúrios, não me contive a realizar outro projecto que me andava na cabeça. Agarrei num caroço de cereja, fiz um pequeno buraco de um furco junto de uma cerejeira do nosso quintal e ai enterrei o caroço, na expectativa das boas graças da cerejeira mãe. Não sei o que o tempo fez passar pela minha cabeça acerca desta experiência. Hoje, decorridos mais de cinquenta anos, apetece-me ir à Lomba ver se a semente daquela cerejeira vingou. Esse foi um dia grande da minha vida…

Antonius

 
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luciusantonius
 
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