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Na Cidade

 
Na Cidade

O coletivo iniciava mais uma viagem. Ela tentava ler um livro, mas os solavancos da estrada esburacada a alertaram do perigo que significava tal ato. Poderia ter um deslocamento da retina. Esse tipo de observação era típico da tia Dulce, nunca viu ninguém com tanto zelo com a saúde alheia.

Ela mesma, nem se preocupava, nem se incomodava, apenas agradecia por ter sua visão e poder contemplar o mundo e suas belezas. No entanto, havia momentos em que preferia enxergar apenas escuridão, momentos em que testemunhava coisas terríveis, resultado da ação do homem.

Outro dia, estava na sua viagem diária, quando o ônibus parou, para a entrada de um passageiro. Ela olhou pela janela, e viu, aquilo que era tão normal nas grandes cidades, nas pequenas, em todos os cantos. Era o rastro amargo da fome. Viu com os olhos tristes e impotentes, o “bicho” do Manuel Bandeira. Um homem de idade mediana, cabelo sujo, grande e desgrenhado, barba por fazer, roupas em farrapos que pareciam despedaçar a cada sopro do vento. Olhou com raiva de se mesma aquela criatura marginalizada abocanhando o lixo jogado num canto do poste. Um nó fez-se em sua garganta e quase chorou de revolta. Todos, na parada, nas lojas olhavam. Alguns mantinham indiferença, outros criticavam, alguns mantinham indiferença, outros criticavam, falavam mal do governo. Ninguém, porém fazia nada, todos covardes! Inclusive ela! Que não descia e tentava amenizar o horror daquela cena. Quantas pessoas em seu país não estariam naquele momento a mesma ação daquele homem sozinho e faminto.

O ônibus tomou partida e deixou para traz o homem remexendo nas sacolas. Mas, não ficou naquela parada o nó em sua garganta. Naquele dia queria não ter olhos para ver aquela triste verdade urbana. Ouvir o jornal, a TV, o rádio... Falar se torna corriqueiro, porém, ver, por um momento mostra como a realidade é cruel. E ela ainda reclamava porque não tinha algumas futilidades. Que egoísta, o pobre homem se conformava com o lixo e quanto a ela que tinha tudo o que precisava, ousava reclamar. Era perfeita, não era doente, aliás, sua saúde era de “ferro”, era inteligente, tinha acesso à escola, uma casa para lhe proteger da chuva, dos raios do sol. O que, o que mais queria? Tinha todos os motivos para ser feliz.

Selena voltou à realidade, parecia que quando pensava, a viagem demorava mais ainda. Agora que estava na metade do seu percurso. O ônibus parou e deu passagem à um rapaz, devia ter no máximo vinte e um anos, magro, pele moreno-clara, cabelos grandes e lisos presos por um elástico olhos castanhos e vazios. Olhava fixamente para a frente, na mão direita um tateador de cego. Era bonito, ele era cego, tão jovem! Não pareceria cego se não fosse o modo lento com que procurava o acento, o olhar furtivo e o tateador. Sentou-se perto dela. Ainda emocionada pela lembrança passada. Soluçou ao ver o jovem. Como ele conseguia viver na escuridão? Jovens gostam de aproveitar o mundo, e como ele fazia se o mundo lhe era ignoto? Outro soluço. Ah, como era sentimental, não era à toa que seu amigo , Mário sempre que a via dizia “não chore!”. Estava sempre sentindo um aperto no peito e o nó na garganta. Era muito sentimental, bastava algo minúsculo para ela irromper em lágrimas. O rapaz percebeu e virou em sua direção, seus olhos continuavam distantes e vazios. Não entendia porque aquele ataque logo ali. Todos iriam vê-la, pensariam que sofria de amor, ou brigara com os pais, oh, não! Por que tinha que lembrar disso logo agora? Seus queridos pais estavam tão longe e nunca mais os veria. Restava-lhe apenas tia Dulce, que era como uma irmã mais velha.
__ Moça, não sei por que chora,mas tome este lenço, é bom chorar, alivia as dores do coração.
__ Mas não cura a alma.__ As pessoas em volta já haviam notado. Alguns com semblantes pesarosos, outros apenas curiosos.
__ A alma, só Deus pode curar.__ A voz dele era tão serena, tão cheia de paz. Ele levantou-se e foi para a porta de saída, desceu com destreza, já saltava do ônibus, ouviu quando o motorista lhe indicou a direção a seguir e ele cruzou a rua assobiando.

Parecia tão desprotegido, andando sozinho, só ele e suas sombras. Por que ninguém o acompanhava e cuidava dele? Ela mesma quase sempre queria um colo, um ombro para se refugiar. Uma mão para guiar-lhe, como naquele momento. Queria apenas ter alguém para cuidar dela.

Todos precisavam, assim como o rapaz cego, o homem do lixo. Na cidade as pessoas não eram companheiras. Um gesto solidário esporadicamente, e só. Esse era o modo de vida urbano, o amor na cidade era egoísta. Pensava somente em si mesmo. Encostou-se no vidro do ônibus, que ironicamente, oferecia-lhe o “ombro” que estava precisando.

Era uma perspectiva negativa de se ver a vida. Quando chegava no trabalho, era a secretária de um otorrino, o médico não era o dono da clínica. Às vezes atendia pacientes vindos da rede pública, claro que ela o apoiava, mas sempre havia algum puxa-saco do chefão. No fim do mês, uma boa soma do salário dele era descontado. Mas, seu chefe era uma pessoa feliz, não reclamava sempre lhe dizia que não saía perdendo, pelo contrário, o agradecimento era o melhor pagamento. Ela percebia que o mundo estava cheio de pessoas de coração generoso. Então voltava a acreditar que as coisas não eram tão negras como ela pintava.

Saiu no horário, às quinze da tarde. Caminhou em direção ao supermercado que ficava próximo à clínica. Demorou um pouco na fila. Ninguém respeitava as normas, a fila para clientes com poucas compras era a mais cheia. Quando saiu era quase quatro da tarde. Tudo para comprar os biscoitos de aveia sem açúcar da tia Dulce e seu leite desnatado. Sentiu vontade de ver o mar, sentir o vento bater em seu rosto. Não tinha coragem de ir à praia sozinha, sempre corria o risco de ser assaltada. Era uma realidade, principalmente durante a semana, quando as praias não estavam tão cheias quanto no fim de semana. Então foi à Praça Gonçalves Dias. Ficou ali, na murada, a Praça Maria Aragão logo abaixo e o encontro dos rios Bacanga e Anil com o mar, e logo atrás o sol. Logo o céu se tingiria de vermelho e a noite se apresentaria. Adorava aquela vista. Lembrava-se das coisas boas que vivera. Era como um bálsamo para suas dúvidas.

Sentou-se num dos bancos e ficou só olhando para o horizonte, a mente vazia. Nem se deu conta que alguém se sentava ao seu lado. Quando percebeu que o tempo passou, levantou-se para ver o sol “mergulhar” na água. Então ouviu uma voz familiar.
__ Oi moça, já vai?
Ele olhou para o estranho, e lembrou-se, era o rapaz cego. A cidade não parecia ser um mistério para ele, como ela pensou inicialmente.
__ Oi. Eu só vou ver o pôr-do-sol.
Ele sorriu e concordou.
__ Então vá logo, pela sua voz, Deus já começou a curar sua alma.
Ele se lembrava dela!
__ Como pode saber quem sou?
__ Pelo seu cheiro.
__ O perfume que uso não é exclusivo. Ah, já sei! É pelo tom da minha voz, sei que pessoas como você tem uma audição muito aguçada.
__ Não, eu soube antes de ouvi-la. Mesmo com o perfume que usa, eu senti seu cheiro, aquele que só você tem, aquele que todas as pessoas têm.
Selena voltou a sentar. Realmente, o que ele dissera era verdade.
__ Então, está na rua desde aquela hora?
__ É, estava tentando convencer as pessoas de que sou capaz, que eu sou qualificado para trabalhar num escritório de administração, basta eles terem as ferramentas que eu possa utilizar no meu oficio. Mas, basta o fato deles verem que sou cego, para me descartarem antes de ler meu currículo, mesmo antes de me ouvirem.
Outra verdade.
__ E você,deve está triste.
__ Fico triste com a hipocrisia das pessoas que falam em inclusão, mas na hora de fazerem-na, saltam fora. Tenho uma pensão do governo, mas não queria ser um parasita do sistema se posso, eu mesmo me manter.
__ Então, vai continuar tentando?
__ Por que desistiria? Para provar que têm razão? Não mesmo!
__ Você é mais seguro que eu, que não tenho se quer um resfriado.
__ Quando um cavalo tem medo de atravessar certo caminho, lhe cobrem os olhos, então, ele segue, porque sabe que o que quer que esteja à sua frente, não pode feri-lo, ele enfrenta qualquer coisa, porque o inimigo não existe se ele não pode contemplá-lo.
__ Você tem o dom de falar a verdade.
__ Não tenho medo do mundo porque ele tem a forma que eu quero que tenha. Não sei o que está à minha frente, gosto de imaginar que são nuvens de algodão. Então, tudo fica mais fácil.
__ Vou me lembrar disso. Sou muito covarde, quando a covardia bater, fecharei os olhos e continuarei em frente.
__ Só pode usar o que possui, qualquer outra tentativa redundará em frustração.
Num impulso ela o beijou no rosto.
__ Obrigada, por tudo. Eu ainda estou com o teu lenço, quer de volta?
Ele deteu a mão dela que lhe estendia o lenço.
__ Use-o quando sentir vontade de chorar.
__ Não ouviu o que disse? Serei forte, pode apostar!__ Ela olhou para o céu que já estava violeta.__ Perdi o pôr-do-sol, será que pode me acompanhar até o ponto do ônibus? Não acho que seja muito seguro, tem muitos ladrões à espreita.
O rapaz se levantou e Selena encaixou o braço no dele. Eles caminharam, conversando animadamente. Era sempre assim, as lições vinham nos momentos menos esperados. Mas era sempre válido.O rapaz tinha novamente razão, de alguma forma, Deus deu um jeito de curar sua alma.


Apenas uma pessoa que usa a literatura e o cinema para fugir desse mundo cão. Escrever é apenas um ato e exercício de liberdade!

 
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Helayne
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