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Tempestade

 
Noite de chuva intensa, revoluta. O céu em nuvens densas distorcia as impurezas polutas do início da estação. Tu havias ido dormir. Vi a luz do teu quarto se apagar, depois de tu teres me dado o teu último “boa noite”. O frio que senti percorrer o meu corpo foi ainda mais intenso do que as rajadas de vento sobre as minhas vidraças, que tentavam, ignorantemente, conter a fúria da tempestade lá fora. Tuas palavras não se continham no meu peito, e, ganhavam força para romper dos meus lábios, fazendo ecoar por aquelas esquinas desertas, cada palavra proferida pela tua boca. O peito apertava, mas não me incomodavam as dores de outrora. Um sorriso começou a nascer no canto, e, foi se alvitrando forte e soberano por toda a continuidade de meus lábios. As lágrimas que escorriam dos meus olhos na força daquelas tuas palavras, acompanhavam curiosamente as gotas da chuva que escorregavam pelos vidros da janela da minha sala. Estava difícil respirar sem ti. Eu nem sequer conseguia tirar os olhos daquela tua janela, esperando que a penumbra pudesse se afastar por hora, e, me revelasse qualquer gesto teu que me fizesse lembrar de que eu ainda era seu. Abri a janela de uma só vez, com um gesto intenso e ríspido, fazendo jorrar a chuva em meu rosto, recobrindo todo o meu peito. A força com que aquelas gotas batiam sobre o meu peito, me fizeram retomar os últimos acontecimentos. Eu a amava. Amava intensamente, e, disso sequer tinha dúvidas. A noite era ainda mais carinhosa do que os dias. As noites me traziam a ti, enquanto os dias, enciumados de todas as palavras sussurradas em teus ouvidos, tomavam-te de mim. As noites infindas de saudade e desejo de te ter comigo, ao meu peito, abraçar-te tão intensamente como as nuvens o fazem com aquelas gotas pretensas a chuva. As noites são ímãs de nossos amores retidos e confinados ao peito, e, indolentes às nossas razões mais insanas.

Fechei as janelas. Desta vez, não usei de força alguma. O vento furioso me ajudou nessa tarefa, e, eu já nem queria mais barulho. Tu dormias. E eu não desejava acordar um anjo assim, de um sono tão cheio de ambrosias. Ganhei o corredor do prédio. O elevador tardava a um ritmo intolerável ao meu peito, ao desejo extremado de meu amor. Peguei dos lances de escadas, trôpegos pela escuridão desses lugares desprovidos de luz. A chuva havia feito as suas primeiras vítimas. Alguns fios haviam sido danificados, o que justificava a presença do serviço de urgência da companhia de eletricidade. Tanto, que não foi espanto algum ao meu porteiro, me ver esbaforido empurrando a porta de emergência que dava acesso às escadas. Ele ignorava por completo o turbilhão que se passava em meu coração, e, talvez, por isso, tentou me demover a idéia de ganhar a tempestade crua. Reteve-me com a mão, mas o meu braço desfez qualquer tentativa de retenção. E quando se viu por vencido, eu estava ali, na chuva, recebendo os beijos carinhosos daquelas gotas, uma a uma, a me cumprimentar, fazendo-me sorrir.

Atravessei a rua, não era longe. Bati na porta do teu prédio. O porteiro, o teu porteiro, adormecia tranquilamente, embalado pelo doce e sonoro clamor da tempestade. Abriu um dos olhos, e, acreditou estar ainda sonhando, quando avistou a minha figura se misturando à água, solicitando a minha permissão de entrada. Ele se aproximou, e, enfim, me reconheceu. Não havia muito tempo que eu ali havia estado, e, deixei lá uns trocados por questão de um arranjo entroncado de rosas que deixei a ela. Não tardou a abrir as portas, e, me colocar adentro, sem, contudo, lançar olhares curiosos sobre os meus olhos, como a me investigar o pensamento para deles arrancar qualquer confissão que o fizesse entender o porquê daquilo tudo. Viu, contudo, o descompasso de minha respiração, e, a inquietude que me acompanhava, que me impedia de falar alguma palavra audível. Foi então que sorriu, pela primeira vez, ao que me lembre, mostrando os dentes amarelecidos à custa de muito cigarro e a goles de café que tomava de tempos em tempos, em escapadelas até ao quarto a ele reservado. Ele compreendeu com a sagacidade instintiva de um homem tratado pela vida, o que eu ali fazia, e, principalmente, o que eu mais queria. Apontou-me a porta que dava às escadas, e, disse-me apenas que o elevador estava parado, por causa dos transtornos oriundos da chuva. Passou a mão na chave bipartida que trazia no bolso, abriu a gaveta da sua mesa, e, sacou uma lanterna, estendendo-me. “Acho que vai precisar disso aqui”. Foi então a minha vez de sorrir, em agradecimento àquela oportuna cumplicidade as minhas loucuras. Peguei a lanterna, e, deixei-lhe lá uma nota de vinte, da qual fez uso no dia seguinte, ao único café descente que tomou em toda a sua vida. Subi as escadas com a agilidade que não se fazia acompanhar pelos movimentos das minhas pernas. Era preciso chegar, de certo, mas eu estava assaz nervoso com tudo aquilo. Quando cheguei no último degrau de minha escalada, me deparei com a porta que arrebentei, avistando o corredor. Novo frio. Agora, a incerteza se confundia com a razão. Estaria eu agindo certo? Estaria eu sendo demasiado louco? Sacudi a cabeça como a espantar aqueles pensamentos, fazendo com que eu molhasse todo o chão do corredor com as gotas que escorregavam dos meus cabelos. Por fim, ali eu estava. Diante da porta, movido de incertas, saudades, esperanças, loucura, paixão, desejo, amor. E foi somente este último, que me fez ter a coragem para tocar a campainha de uma vez.

Ouvi passos trôpegos ao fundo. Era ela. De certo, estava dormindo, e, se assustaria com a presença não anunciada de um visitante. Talvez, pensasse ser um vizinho, a pedir emprestado uma vela, ou pilhas usadas para aquela velha lanterna. Não sei, talvez, nem ela tenha tido tempo para cogitar em tamanhas hipóteses. Quando abriu a porta, pude ver seus olhos quase se fechando, bebendo das mãos que tentavam inutilmente desfazer aquela miragem. Eu, enfim, estava ali. Fiz com que me tocasse o rosto para sentir que eu era real. Suas mãos delicadas percorreram o meu rosto molhado, o suficiente para fazer despertar. Eu estava ali, diante dela, ao ponto que ela podia tocar-me como sempre desejou fazer. Não sabíamos mais o que fazer, estávamos um diante do outro, e, não cabia mais nenhuma outra palavra. Foi então que a tomei em meus braços molhados e a fiz saber que ela era minha, nessa minha mais louca tempestade de amor.


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