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A Gaivota Nina

 
Na época estival, as traineiras deixam o porto pela hora do entardecer, rumando em direcção aos cardumes que atravessam o oceano para virem encontrar águas mais quentes. Erguendo-se na noite cintilante, o farol orienta-lhes o rumo até estas se tornarem uma presença vaga. Envoltas na névoa do amanhecer, as traineiras desenham-se de novo no horizonte, arrastando-se penosamente e trazem na sua esteira gaivotas em desassossego.
A Gaivota-Nina é boa voadora, mas não mergulha nem precisa de o fazer. Ela sabe que o mestre da Pérola do Oceano lhe reserva o seu quinhão, no balde de plástico sobre o convés. Também o Gato-Treplev, com a sua excelente visão nocturna, vigia a dança das traineiras, mas tem de aguardar pelas manobras de atracagem. O seu coração, que batia lentamente enquanto fazia a atalaia, aumenta o ritmo até duas vezes mais, agora que ele está prestes a efectuar o golpe certeiro. A aptidão das suas garras gatunas verifica-se no exacto momento em que ele consegue larapiar um dos carapaus luzidios que gotejam das redes. O Gato-Treplev é saudável, feliz e pleno de vitalidade. Tem residência fixa e uma alimentação nutritiva e equilibrada que satisfaz as suas necessidades. Diz o rótulo da sua ração diária que aquele alimento tem um sabor irresistível, elaborado com peixe delicioso: pedaços de salmão e camarões em geleia.
A Gaivota-Nina não compreende por que o Gato-Treplev se aplica na arte de gatunar carapau, o qual nem sequer ingere. A sua língua áspera apodera-se apenas da cauda prateada do carapau, e o que resta é precisamente isto: um carapau fresquinho, sem cauda. Com elegância e cortesia, a Gaivota-Nina disse-lhe um dia:
- Tenho pensado em ti e nas tuas necessidades. Não é a fome o que te motiva. A mim, custar-me-ia deixar um carapau assim…
O Gato-Treplev orientou os seus sensíveis bigodes na direcção da Gaivota-Nina para lhe responder:
- Tens um sentido de dignidade própria. Especial e bom.
A Gaivota-Nina deixou esclarecido que as suas palavras não tinham intenção de repreensão. O Gato-Treplev, polindo as suas garras retrácteis, respondeu:
- É sempre bom ver confirmada no outro a aceitação da sua irredutível singularidade.
Não que tivessem combinado, mas a Gaivota-Nina passou a aguardar pelo carapau sem cauda, e, assim, não teria de fazer novo voo até à traineira. De cada vez que isto sucedia, a Gaivota-Nina cortesmente agradecia. O Gato-Treplev respondia:
- É agradável saber-te de algum modo recompensada por vivências comuns.
Era certo e sabido que não eram as caudas de carapau que davam ao Gato-Treplev a energia para trepar e saltar, nem as mesmas eram responsáveis pelo seu coração forte e saudável. Sabia ele muito bem por que o fazia: era o prazer da caça o que o movia. Enquanto aguardava a aproximação da traineira ao cais, fitava das caudas a mais brilhante, e teria de ser essa a que ele furtava. Podia o carapau ser curto ou comprido, largo ou estreito, o importante era a cauda!
Aquela manhã de nevoeiro foi diferente! O Gato-Treplev demorou-se na sua vadiagem e, quando chegou, o cais estava vazio. Sentiu-se assustado com a sua dúvida. Havia entre ambos uma agradável cumplicidade, desde o tempo em que o Gato-Treplev tinha comentado a singularidade dos seus nomes. Em tempos antigos, um certo Treplev, jovem proprietário, tinha composto um drama para Nina, a jovem vizinha que ele amava e que sonhava com o teatro. Mas Treplev perdeu Nina, porque esta se apaixonou por um escritor, Trigorine, homem maduro, célebre e desocupado que a levou para longe. Quando esta regressa, depois de ter sido abandonada, reencontra Treplev… A Gaivota-Nina, depois de ouvir atentamente o que o Gato-Treplev lhe contara, dissera-lhe:
- As coisas acontecem, as coisas mudam… A história não se repete!
O Gato-Treplev vagueou pelo cais com os cinco sentidos atentos, ignorando os carapaus que exibiam as caudas à distância da sua garra sempre certeira. O imprevisto acontecera. Presa nas redes da traineira, a Gaivota-Nina tinha partido para alto mar. Quando o mestre a encontrou, exausta e de olhos semicerrados, apressou-se a soltá-la. Mas, a Gaivota-Nina permaneceu imóvel. Sentia-se dorida por tanto se ter debatido nas redes. Além disso, estava demasiado distante para arriscar o voo. Quando a Pérola do Oceano regressou ao porto, dias depois, trazia a Gaivota-Nina na sua esteira. Foi aos olhos do Gato-Treplev que a Gaivota-Nina primeiro se anunciou. O Gato-Treplev sentiu-se invadido por um vigor renovado. No seu golpe ágil e, como sempre, bem sucedido, furtou um carapau e depositou-o aos pés da Gaivota-Nina, quando esta pousou no cais. As suas palavras de boas-vindas foram:
- As coisas acontecem, as coisas mudam… A história não se repete!
A Gaivota-Nina agradeceu e, de olhos semicerrados, engoliu o carapau. Só então compreendeu as palavras do Gato-Treplev: o carapau estava fresco e inteirinho.


(Texto inédito e propriedade intelectual de TeresaMarques)

 
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TeresaMarques
 
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Enviado por Tópico
Henricabilio
Publicado: 03/09/2009 10:23  Atualizado: 03/09/2009 10:23
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 Re: A Gaivota Nina
Olá Teresa!
Creio que é a primeira vez que encontro um texto de tua autoria...
Viajei pela minha infância distância, com este conto. Curioso como gostamos de descrever os outros seres com sentimentos humanos... Talvez aqui e ali fosse ajustado invertermos o sentido da coisas. Afinal nós também temos muito a aprender com eles.
Parabéns!
Um abraçooo desde Caldas!
Abílio