O amor nos tempos da web
1.0
Ele a curtia todos os dias
quando visualizava seu perfil
acompanhava atentamente as postagens,
vídeos, álbuns de fotos,
mudanças de avatar
e deixava comentários espertos
Começaram a conversar
primeiro pelo chat, google talk,
depois pelo skype
horas e horas teclando confidências
viram a casa de um e do outro pelo street view
Marcaram um encontro
num lugar localizado pelo google maps
2.0
E então ficaram de repente
sem conexão
ela se sentiu como um modem desplugado
ele não lhe dava mais atenção...
Ela esperava ele aparecer, olhando da janela aberta
do MSN
mas ele sempre estava ocupado ou ausente
tantas mensagens offline não respondidas
quantas frases poéticas, versos de música, Ctrl C+Ctrl V
Beijusss, Bjos, Bjs, S2, reticências...
sorrisinhos de pontuação :) e carinhas amarelas sem expressão
era difícil encontrar um emoticon
que representasse o sentimento à altura
da espera, da angústia, da resposta, solidão
Nem as cutucadas e estocadas de carinhos, tuitadas melancólicas,
retuítes de sentimentos alheios mas tão seus
Depoimentos, DM's, declarações diárias subliminares no fotolog
Onde estava o amor? O quê era o amor?
3.0
Ela procurou no google
pois nem o yahoo tinha muitas respostas
E entre o wikipedia, os blogs e o tradutor
inúmeras definições:
"[Do lat. amore.] S. m. 1. Sentimento que predispõe alguém a desejar o bem de outrem, ou de alguma coisa: amor ao próximo; amor ao patrimônio..."
"Amor é quando alguém te magoa, e você, mesmo muito magoado, não grita, ... "Amor é como uma velhinha e um velhinho que ainda são muito amigos..."
o amor é paciente
o amor é benigno
o amor é filme
o amor é contagioso
o amor é assim
o amor é outra coisa
Gostou mais dessa que viu no Citador:
"Amor é fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer."
Era de um tal de Camões.
E mesmo sem muito entender
curtiu e compartilhou.
"Será que cabe em 140 caracteres?", ela logo pensou.
Pleonásmico
ainda vou entrar pra dentro
do seu quarto bagunçado
trancar sua porta
trancar suas pernas a mim
e jogar a chave fora
só deixar sair pra fora
as saudades, as vontades, as verdades
escondidas no seu criado-mudo
mais íntimo e depravado
o resto vou fechar tudo
pra gente gritar alto e calar mudo
loucos da cabeça
até o espelho ficar cego
e o corpo ficar surdo
depois subir pra cima das paredes
e do teto feito aranha
te observar dormindo
como a indefesa presa ao relento
e preparar a teia pro próximo bote
e pro seu bote voltar nadando
na água salgada do seu corpo mar
que doce se torna no leito desfeito
ao descer a descida da ladeira até a lombar
com lambidas nas ancas largas e pérfidas
sambar e cantar nas curvas e vielas
das áreas mais boêmias e periféricas
até a apoteose do recôndito ventre
e então entrar na chuva pra se molhar
e até me queimar no fogo fátuo
da fogueira faceira do seu olhar
de júbilo e regozijo
inocentemente indecentes olhos
que olham o nada e o infinito
The Night Has A Thousand Eyes
Ao som de John Coltrane
a cada sol
de cada dia
morto que cai
a noite revela
um rosto
esconde seus punhais
um para cada morte
seus mil olhos
se abrem
essas bocas vulgares
voyeurs sedentas
piscando sorrisos
sussurrando olhares
penetrando os ouvidos
de cada virgem lua
cada alma na rua
deixando uma mensagem
- O dia só tem um olho,
eu tenho todos,
Carpe Noctem...
fumaça
me arqueio e sou lançado ao ar
exalado vagarosamente
como a fumaça
expirada pelo carro, bueiro,
cigarro, fábrica e bar
o mundo me inala
com força e calma
Entorpecido me agarro
em alguém
ou algo
pra não ser tragado
esfumaçado penso, espero
queimo lentamente
como cigarro incandescente
se alimentando de ar
esperando pelo beijo molhado
da próxima boca
que irá me tragar
Dormir que nem chinês
Descobri outro dia
que em qualquer lugar que fosse
lugar qualquer que ia
quando sentia aquele baita sono
o chinês ia lá e dormia
Ele dorme em todo tipo de coisa e lugar
não precisa nem arrumar um canto
uma cama, um chão
nem precisa deitar
se recosta numa árvore
se apoia numa banco, num cão
e dorme tranquilo, sem medo
sem pressa de acordar
Até a bicicleta que o transporta
pra todo lugar
se tranforma num quarto negro
quando cansa de pedalar
e pedalando ele vai no sono
percorrendo as avenidas de um sonho
contornando o trânsito diário
do trabalho,
das contas, dos desejos, despejos, incertezas, ideais
dogmas, leis, morais,
filhos, pais,
mandarins, feng-shuis, dragões,
revoluções, paz,
terremotos, tsunamis, furacões,
talharins, fome, doenças,
morte,
vida
E quando ele acorda
ainda é dia
despertadores não despertam ninguém
acordar não é
despertar
é recomeçar
o ciclo diário
trabalhar
chegar no horário
bocejar
pensar no salário
despertadores não despertam
ninguém
despertar é estar vivo
é ser o ponteiro
do seu próprio relógio
até para morrer
não é preciso viver
basta estar vivo
viver é rir
e também é chorar
estar vivo é respirar
viver é ser o ar
a náufraga
da deserta silente ilha
esperando o resgate ou o fim
da ressaca e então a calmaria
contemplava uma sorridente lua marfim
e com um sorriso avistou o navio
que vagava entre os corais
a se ancorar saliente e bravio
não pensou duas vezes
em se atirar no mar revolto
das sedosas manchas espumosas
do cheiro de saudades e mofo
ondas de um oceano corpo
uma noite de luzes ofegantes
uma sirena excitada entoava cantos
fogosos os navegantes trabalhando na proa
nadou até que chegou despida a bordo
na nave louca desgovernada dançante
agarrou-se ao mastro entumescido
pela garoa suor do céu delirante
extasiados molhados assistiam os marinheiros
o subir e descer da ninfa corsária
bandeira pirata ela se erguia imponente
se esticava tremulando aos ventos
movimentos misticamente lúbricos
sob os quatro mares cúbicos
enquanto a nau relutante afundava
ela gritava sussurrante ao firmamento
o leme fremente se contorcia
girava a retardar o suplício
mas a chuva espessa escorria
jorro impiedoso dos deuses sujos
não houve desvio nem fuga
inundou-se a cabine o convés
afogaram-se prisioneiros ratos marujos
entregava-se toda a frota ao sacrifício
devorados nos selvagens rituais imorais
dos desejos prazeres kamikazes imortais
e se sentiram mais carnais
os que restaram salvos
ela os homens os órfãos
ficaram todos náufragos
ilhados na nua realidade
todos deitados calmos
a calmaria depois da tempestade