Poemas, frases e mensagens de AlexandreHomemDual

Seleção dos poemas, frases e mensagens mais populares de AlexandreHomemDual

Viagem

 
Viaja a caneta pelo papel
Rasgando labirintos de brancura:
A branca branquidão da pele
Que veste a pálida loucura
Descobre em mim novo alento...
Pelo verbo me renova, me seduz
A fútil sintaxe do pensamento;
Das minhas ideias, enfim, a cruz...
 
Viagem

"A Morte de Heitor"

 
E enquanto Heitor saboreava
O sabor sangrento da Morte que o cercava,
Desenvergonhada, Helena abocanhava
O duro sexo de Páris seu amante...
Impetuosa, toda a helénica boca era preenchida
Pelo viril membro que, a golfadas,
Lhe saciava a jovem fome com o néctar da vida...
Até que, em apolínea hora, toda a Tróia invicta
Viu o corpo de Heitor, murchando exausto, tombar
Aos pés de Aquiles, na terra fonte de vida.
E enquanto o sémen de um Príncipe corria abaixo,
Por breves momentos, pela garganta de Helena,
Era a terra penetrada pelo sangue de outro,
Para todo o sempre...
 
"A Morte de Heitor"

S/título

 
Despida do seu capucho escarlate,
A jovem rodava à vez, sem pudor,
Por cem cães pretos como chocolate.
Danado, fiz-me seu interlocutor:

"Caterva de cães pretos e peludos,
Porque a vós, entre vós, não fornicais?
Matilha de cães cunilinguarudos,
Optais p'los castos, não p'los bestiais?"

Desapareceram como foguetes
No meio da floresta os vejetes
Vazados, prenhes, fartos, saciados.

Deixaram-lhe o capuchinho em farrapos...
E abandonada a boneca de trapos
Rasgados, polutos, ensanguentados...
 
S/título

S/título

 
Aurifulgente, a meretriz papisa
Entrega-se à cúprica multidão
Que a engole sob o manto de mãos
Famélicas do que ela simboliza:

Santidade e Martírio. Mas Luxúria
E Lascívia, sacramentos da missa
Negra da obscura chefe submissa,
São sinais administrados na Cúria

Onde um magote de línguas rezando
Vindo-se a sentir nesta parangona
De vícios e virtudes, p´la virilha,

Numa turba de dedos libertando
(Raivosos, sôfregos) uma matilha
De explosões vindas de dentro da sua cona...
 
S/título

Dom Pedro

 
Dom Pedro era um velho que jurava
Serem as lágrimas por si choradas
Quem lhe deixara as faces enrugadas...
E eu, jovem sábio, sempre lhe indagava:

“Mas se as lágrimas são só feitas de água,
Como te marcaram, dia após dia?”
Ao que a pétrea figura respondia,
De olhar cheio de ternura e mágoa:

“Pois se a água, amigo, até perfura
(Faca na carne, roda até doer)
A pedra de entre todas a mais dura,

Como podia marcado não ter
Um rosto amolecido p’la amargura,
Um velho rosto farto de viver?..."
 
Dom Pedro

A Poesia

 
Aleivosa e insinuante
Confunde-se reptante
Com o calor tórrido,
Mexicano,
E com o cheiro derramado
A tequilha
E a sonhos húmidos
Com sabor de chocolate
E baunilha.
 
A Poesia

Servidão Humana

 
Intenso brilho cegante
Conduz negros olhos crédulos
Por vasto mundo incessante
Sentido por dedos trémulos.

Em lânguido passo seguem,
Em longa fila indiana;
Severos lordes os regem,
Feliz cegueira humana...

Espreita o vate outro trilho...
"– Silêncio!" – silva o chicote!
"– Não abras teus olhos a outro brilho
Ou verás tua morte"...
 
Servidão Humana

S/título

 
O corpo inerte e morto de Jesus
Sangrou, pingo a pingo, para um vaso
De onde beberam os anjos o ocaso
D'Aquele que nasceu pregado à cruz.

Ébrios, em cônsona mijadela,
Chuviscaram os anjos lá de cima
Cá para baixo: sacra obra-prima
Angelical, em jeito de procela.

E o sangue, na terra já entranhado
Atalha para a boca dos defuntos
Que vêem seu desejo saciado...

Entretanto, pelo sangue consuntos,
Dormitam os anjos, embriagados
- No céu, incestuosamente juntos...
 
S/título

águas passadas

 
depois de esquecidas as palavras depois
dos corpos sucumbirem ao cansaço do
plenilúnio líquido das promessas falsas
como juraria eu amar-te se sempre
te amei em silêncio o molhado silêncio
depois do sol se pôr na porvindoura maré
que te depositou aos pés os lençóis
mudos de silêncio o molhado silêncio
teia construída pelo cantar dos búzios
ou seriam ostras que me deste a provar
à preia-luar junto as mãos abertas em
forma de concha e sonho lagoas onde
te sopro as velas pandas os olhos líquidos
escutando-te as orações arrependidas
e esfoladas de um céu aquífero pelos
teus joelhos suportado de sereia
no final depois do molhado silêncio o suor
dos corpos que encharcaram camas as lágrimas
que secaram ribeiros as palavras que
molharam o silêncio apenas resta o cheiro
a terra húmida e a águas paradas
 
águas passadas

S/título

 
Arrancados do corpo os espinhos, as feridas servirão
Agora para dar de beber aos habitantes do deserto.
O sangue que lhe corre pelo corpo – esse mesmo corpo,
O corpo do poema – escorre para a boca dos famélicos.
E dos que dançam a chuva para matar a sede. Arrancadas
As almas polissémicas às palavras – essas mesmas palavras,
As palavras que não são do poema – o que resta para lá do corpo
Despido e cru, ungido e nu, que um dia nos foi pão
Mas hoje nada mais que memória?
Como uma mortalha envolta em redor do coração...
 
S/título

O Outro Lado de Mim

 
Por vezes interrogo ao silêncio sem sangue
das estrelas quanto tempo demoraria
a separar completamente
toda a carne dos meus ossos
e quanto mais tempo seria, na verdade,
necessário para fazer passar a alma
num sopro pusilânime
para o outro lado de mim?
 
O Outro Lado de Mim

S/título

 
Olhou-me um rosto outro do outro lado do espelho
Hoje ou amanhã ou ontem, não o sei bem.
Olhou para dentro de mim e olhou em minha volta
Com o estranho estranhamento de quem estranha
A familiaridade da âncora que
Quotidianamente ancora
Alguém à sua hora.
Entrei em pânico e saí de mim mesmo
Pela porta fora.
Sei-me melhor no não ver-me
Do que no olhar-me e desconhecer-me.
 
S/título

Cleópatra Dançarina

 
Só, vejo-me ante a página branca:
A mão engelhada, inerte e exangue
Da tinta vermelha e do negro sangue
Que o noctívago solilóquio estanca.
As luzes das estrelas são sudários
Encobrindo-me as palavras – crisálidas
Manifestações lívidas e pálidas
De débeis e abortados poemários.
Mas ei-la: aparição na brancura,
P’la noite adentro e p’la noite afora,
Almiscarando a alvorada madura...
Descubro-a na veste alva que a esconde
(Trémula doce arauta da aurora),
Amante milenar de um país onde

Das lúbricas areias se erigia
A dissoluta Rainha Cleópatra
Que bebeu o sangue dos faraós,
Dos deuses favorita fantasia...
Tresloucada, viajava pelo Nilo,
Como fosse montada num trenó
Feito de luzes e raios de sol,
Buscando marcoantoniano asilo.
Mas em vão: os musculados e fortes
Braços do romano gladiador
Estavam agrilhoados pela Morte...
Nunca mais veria o seu amor,
O Destino levara-lhe o consorte...
Só restava-lhe um deserto de dor...

Foi assim que a Bela Egípcia virou
As costas ao mundo e à própria vida
E que, numa velha língua esquecida,
Aos deuses e aos homens renunciou,
Pondo-se a caminho do sol poente.
Nos meus versos, as mal acentuadas
Sílabas tónicas são as pegadas
Que os seus pés deixaram na areia quente.
Se eu fechar as pálpebras, ouço e espreito
O sussurrar das folhas no desértico
Coração do poema cujo peito
Atravesso para me alimentar
Do leite de Cleópatra, profético
Vislumbre do seu berço tumular.

E quando ela alcança o topo dos céus,
Vira-se para baixo, de olhar líquido,
Serpenteante foz do fluir nílico,
Deusa que reúne crentes e incréus;
Todo o Cosmos ao Egipto se junta
Como para ver um prodígio bíblico
Que obedece a regras do tempo cíclico
Materializado na bela defunta.
E quem não lhe percorre as esguias
Pernas (que parecem auto-estradas
Onde caravanas de emoções, dias
Após dias, seriam transportadas)
Ainda que, de mortas, sejam frias?
E as unhas quando na carne cravadas

Sabem ao toque dos escorpiões...
Os seus cabelos, longos e escorridos,
São negro chocolate derretido
Por lume sustentado por paixões...
Com o corpo projectado nas dunas,
Onde o vento quente os seios lhe beija,
Perfila-se quem o mundo deseja,
Tatuada de hieróglifos e runas:
A inventora de todos os sentidos,
Sob a pele cor de aroma de café,
Acena-me de dedos estendidos
Do alto da Grande Pirâmide de Gizé,
Masturbando-me em lentos passos de ballet...
 
Cleópatra Dançarina

anjo com boca de palhaço

 
ao sabor de algodão doce e ao som de trompetas feéricas
contemplei um bando de brancos cisnes caindo do céu em uníssono
numa chuva de penas sorrindo sobre a cabeça das crianças da noite
adormecido o vento repousava dormente na garganta
dos lobos que aguardavam em silêncio sobre a líquida superfície
da terra pela chegada dos cadáveres das aves solidi
ficando à espera como sangue seco na pelagem negra
e nos dentes brancos brancos como os cisnes
os lobos aguardam os olhos amarelados para o céu revirados
as mandíbulas abertas e pingando baba os ácidos estomacais a trabalhar
aguardam os lobos pelo voo dos cisnes
as almas dos lobos empaladas nos corpos dos ciprestes
e o som metálico do movimento de um carrossel pelas sombras iluminado
começou a ganir a chorar a ranger a uivar
enquanto ali me prostrei eu os joelhos já em sangue na lama
onde archotes eléctricos desbravam a escuridão com mil cores
e descobrem a cabeça de um anjo maquilhado com boca de palhaço
andando à volta em revolta e em reviravolta num carrossel de horrores
 
anjo com boca de palhaço

Obituário

 
Penso que terá sido de anteontem
A quinze dias
Que acordei às 4 da tarde com a lua
À minha cabeceira
Mascarada de enfermeira
E segurando a página do obituário
De um qualquer jornal diário. Estendeu o
Seu braço de luar e deu-ma
Para que a pudesse ler:
“Poeta desconhecido morre em cirurgia
De rotina. Durante
Uma laparotomia
Uma alcateia de láparos fugiu
De dentro da sua lura no abdómen
De Alexandre Homem
Dual
Levando consigo o coração do escritor
Desconstruído em pequenos pedaços.
No lugar do coração, foi encontrada
Uma lapa funérea com um poema inscrito
Mas ninguém o pôde ler porque o seu autor
Morreu antes sequer de o ter escrito.”
Sorri e devolvi o jornal à lua. Ela serviu-me
Uma chávena de café e perguntou-me
O que dizia o poema. “Amanhã Chovi”, respondi-lhe.
Ela sorriu-me de volta imediatamente antes
De regressar ao céu nocturno. Ainda hoje, nos meus poemas,
Lhe trago o sabor da carne – e do café – na ponta dos dedos.

Alexandre Homem Dual
 
Obituário

Auto-Retrato

 
Ao lamber um borrão de tinta do meu dedo,
Surgiu-me na língua a ideia de usar
O céu da boca como Capela Sistina
Mas, em vez de pintar a Criação, fazer
O meu auto-retrato. Mas não sei que diga.
Por agora, só me ocorre dizer que tenho
(E normalmente não escrevo em alexandrinos)
A pele marinada p’lo sol mediterrânico.
De resto? Satanista. Comuneu. Atânico.
 
Auto-Retrato

Natureza Morta: uma carcaça disposta numa cama de flores

 
a vida é uma puta pestilenta
coberta de pústulas plenas de pus
e de ironias pusilânimes
uma chaga cheia de chamejantes
infortúnios repleta de bichos
comendo-nos de dentro para fora
rompendo o fino véu do hímen
putaveril de uma vulva inodora

ah que bem cheira a primavera no equinócio de março
 
Natureza Morta: uma carcaça disposta numa cama de flores

S/título

 
Dizem que Abel caiu ao pés de Caim,
Qual mártir e fratricida unidos pelo sangue derramado.
E que Caim foi filho da Malvada Serpente que nos tentou a todos.
Tentou e conseguiu…
Mas ele vive na ponta dos esquálidos dedos do Mago
Que sara a pútrida gangrena dos olhos que o observam
– E que o vêem! Sara o Mago
Abrindo feridas com cuspo fechadas, fachadas
Com lágrimas e pus pintadas;
Rasgando as folhas da Árvore Primordial à incestuosa sombra
Da qual Adão e Eva se habituaram a deitar
(Ah, sim, a Humanidade é um animal de hábitos,
Hábitos sob os quais se escondem terríveis segredos,
Como falsos falos pingando salmos e recitando sémen);
Dançando sobre as falhas tectónicas do Paraíso Celestial.
Aos pés de quem cairemos nós? Eu escolho não perecer
Esmagado por titãs de pés de barro. Vem, Mago, lambe
E sara as nossas feridas…
 
S/título

Botão a Botão

 
Botão a botão, o tempo é desabotoado
Nesse teu corpo de flanela
Onde embrulhado e quieto,
Muito quieto, te vejo dançar à volta do espelho
Iluminado pelo ecrã de cinema.
Os teus gestos são ora lentos ora rápidos
Mas sempre silenciosos como se o vento parasse
De soprar no exacto momento em que as folhas
Avermelhadas pelo bafejo do Outono e caídas no chão,
Junto aos teus pés, se levantassem,
Como que renunciando à escuridão do Inverno por vir
E almejando voltar aos galhos da árvore
De onde caíram. De volta à Primavera, longe
Do tempo linear.
O meu coração é um relógio avariado
Avançando para trás no tempo, em busca da hora certa em que te conheci
E em que te amei.
E quando os primeiros raios de luz pintarem o horizonte do solstício de Verão
Vou simplesmente dizer-te
Boa noite...

Inspirado pelo filme "The Curious Case of Benjamin Button"
 
Botão a Botão

Servidão Humana

 
Intenso brilho cegante
Conduz negros olhos crédulos
Por vasto mundo incessante
Sentido por dedos trémulos.

Em lânguido passo seguem,
Em longa fila indiana;
Severos lordes os regem,
Feliz cegueira humana...

Espreita o vate outro trilho...
"– Silêncio!" – silva o chicote!
"– Não abras teus olhos a outro brilho
Ou verás tua morte"...
 
Servidão Humana

Uma mão angelical afaga-nos o cabelo e toca-nos o sexo em cada momento de desespero…