Poemas, frases e mensagens de RGz

Seleção dos poemas, frases e mensagens mais populares de RGz

Frieza

 
Se procurasses o verniz perdido pela constituição corporal de Pinóquio na vivência de adversidades inevitáveis, sendo bem sucedida, encontrarias, de igual modo, as cruéis marcas de sangue derramadas pela ferida aberta através da fria omissão sentimental que me provocaste. Admitindo que a fantasia não passa disso mesmo, e que jamais poderá ser reportada a dimensões palpáveis, nunca encontrarás as provas que suportam a ideia de já ter sofrido por ti, caindo na desilusão desamparada de não encontrares o verniz (ou estarei eu a ser sarcástico?).
Se as palavras estão sujas por serem impulsionadas por pulmões poluídos, refinadas por cordas vocais ineficientes, trabalhadas por bocas ingratas e proferidas menosprezadamente por seres macambúzios que de autenticidade lexical nada lhes foi incutido; então o silêncio será o meu ingrato destino, admitindo que não ousava sentar-me, num plano inferior, na tão polida pedra que é o conhecimento comum, pelo menos enquanto falar de ti, para ti e a pensar em ti.
Contrariando os meus próprios critérios valorativos, e não querendo confrontar o quão alto é o patamar que ocupas em mim com a escassez de criatividade alfabética dos pseudo-apaixonados; não posso expressar o que sinto de outra forma que não a exposta. Assim, terei de passar por macambúzio de boca ingrata, cordas vocais ineficientes e pulmões poluídos para te poder passar a ideia de veneração (adaptemo-nos às circunstâncias: já que um cego não vê, desenvolve o tacto).
Por fim, despedaçado por não encontrares o verniz, pelo facto de dares ouvidos a palavras sujas, e, ainda, por ter de me resignar à simplicidade demandada pela situação, digo que te amo com tudo o que sou; que já não entendo como é viver sem pensar em ti; que cada momento passado sem ti é de tal ordem mau, que me faz cair na esperança e na harmonia de te encontrar e acalmar toda a minha ira interior - provavelmente caí em contradição ou em circularidade de argumentação, mas uma vez algo diferente e descontroladamente canalizador no que respeita ao pensamento do pretendido, o amor adapta-se perfeitamente na situação em que me deparo.

Rui Gomes aka RGz
 
Frieza

Monólogo do puto que tem a mania que é esperto

 
Ser? Por oposição, só. Oposição. Andas aos arames com a definição, não? Bom, definições limitam. Eu sou ilimitado. Eu não acabo. Eu não acabei, e, adivinha: não vou acabar. E quando não sentirem réstia de esperança, eu vou continuar a não acabar (que pena). Não desiludo nem dou a desiludir. Mas não acabo. Não acabei e… surpresa: NÃO VOU ACABAR! (Estás a sentir-te acabado?)

Não acabo, assim como não começo. Eu não começo. Eu não comecei. O problema é: quando é que hei-de eu começar a começar? Comecei a pensar nessa questão há uns tempos e, olha, ainda não acabei.

Tu, que me lês, deixa-me dizer-te uma coisa: ninguém começa. E sabes porquê? Porque ninguém é. Há os que fazem, os que vêem fazer, há os que conhecem, os que parecem, mas os que são – esses não os há. Eu não fujo à regra: não sou – ou melhor – não sou por não oposição. Eu estou. Estou num dilema que nunca mais acaba. (Eu sei, isto já acabava, não?)

Eu sinto. Pode parecer que não. Eu compreendo-te. Mas é: sinto. Eu sei: um bicho de sete cabeças. Andam para aí os que me tentam limitar – eu, ilimitado, eu que não acabo – e sabes o que lhes faço? Acabo com eles.

Agora, seca, crua, nua: a verdade. Preparado? … Nada do que disse faz sentido. Não te canses a procurar um sentido no que escrevi: não há, não é, não tem. Mas deixa-me contar-te um segredo: nada tem, nada. A questão está em ter sentido em aceitar que nada o tem. Não tenho sentido muitas melhorias quanto a isso.

Acabei.

Rui Gomes
 
Monólogo do puto que tem a mania que é esperto

Não sentes o que sabes

 
Confusão

Vê: está frio. Agasalha-te.
Toca: está alto, ensurdecedor. Baixa-te.
Sente: está escuro. Protege-te.
Escuta: está suave, sedoso. Aproveita!

Rui Gomes
 
Não sentes o que sabes

Muito mais do que escrever

 
Podemos afirmar que o concreto está para morte, assim como a fantasia está para imortalidade. Na minha opinião, o homem não busca a imortalidade como forma de viver para sempre, mas sim no sentido de se libertar das banalidades e futilidades que advêm do usufruto da inteligência humana, podendo assentar num campo subtil, onde tudo é possível e comandado pela imaginação.
Atendendo a que, à luz de um ser humano, a imortalidade é inalcansável, só algo divino, superior, transcendente poderia trazer ao Homem o palpavelmente inconcretizável acontecimento. Assim, é recorrendo a meios concretos idealizados e protagonizados pelo Homem, que este mesmo atinge o abstracto, a fantasia – o horizonte da realidade e o cume da imaginação.
 
Muito mais do que escrever

Eles são nossos amigos

 
Sim, são nossos amigos. Não há que temer. Apunhalam-nos, mentem-nos, fazem-nos sofrer valentemente mas são nossos amigos. Concordam com o que discordamos, mas são nossos amigos. Trazem-nos desilusão, insegurança e infelicidade, mas sim, são nossos amigos. São ingratos por tudo o que passámos por eles, mas não é caso para alarme, eles são nossos amigos. Ignoram-nos quando os tentamos ajudar, rejeitam o conselho de quem lhes quer dar a imensidão de uma personalidade, mas por que nos queixamos? Eles são nossos amigos, ou não seremos suficientemente humanos para sabermos o que toda esta esplendorosidade é em si?
Usam-nos como alavanca para se elevarem, experimentam o nunca antes experimentado lá no cimo, onde o ar é rarefeito e a desonestidade reina. Esquecerem-se de nós? – impossível, eles são nossos amigos, ou já não nos lembramos?
Talvez estejam a precisar da nossa ajuda agora. Por que estamos inseguros em ajudar? Eles são nossos amigos!

Rui Gomes
 
Eles são nossos amigos

Necessidade (in)conveniente

 
Num suspiro não programado, desabou-se-me o tédio, morreu-se-me a percepção. Essa coisa afugentou-me as ideias, encurtou-me as perspectivas. Esse suspiro filtrou-me os olhos, reduziu-lhes a amplitude: tudo se resume a uma face... um rosto... sim, parece-me familiar... um rosto, ainda enevoado, mas um rosto... talvez seja... talvez sejas... HORA DE INSPIRAR!

Rui Gomes
 
Necessidade (in)conveniente

Subjugado ao divino

 
...
Júpiter, acompanhas-me até à Avenida Principal? Sim, não te preocupes, era mesmo isto o que precisava. Só te tenho a agradecer. Já agora, posso tratar-te por “tu”? Desculpa o atrevimento.


Há dias que te tenho observado.
Tenho-me descoberto a observar-te, grande corpo celeste,
Imenso pedaço de vida e luz.
Nos meus olhos figura o mais sereno do mais sereno retrato;
O mais brilhante do mais brilhante que pode ser;

Numa catarse indistinta, num sublimar de espectros divinais,
De auroras envolventes e sedutoras plumas,
Vais-me enternecendo o tempo.
Amoleces-me as, então submissas, emoções.
Imortalizas-me o mais primitivo de mim,
Eternizas o mais afincado do que já nem sei se sou.


Cá por baixo tem estado tudo na mesma. Que tal um café? Tenho tempo.
Eu sei que não me conheces bem, mas eu vejo-te sempre e desde sempre.


Embalo-me e às percepções convencionadas.
Sou mais do que fui feito para ser.
Sinto mais do que fui feito para sentir.
Este sou eu amargurado com o sentimento,
Louco. Seduzido pela tua sensualidade, Júpiter.
Mergulhado no mais revolto, no mais intenso vórtice abstracto,
No mais impetuoso expoente, na mais ardente corrente.


Não quero atrasar-te de maneira nenhuma. Eu pago, não te aflijas.
A vida tem-me corrido bem nesses termos.
Pelo menos


Oh Júpiter,
Clareia-me as vísceras.
Purifica-me o alvoroço escuro que escondo,
Banha-me o que não tenho.
Envolve-me as entranhas e coloniza-me. Totalmente.
Faz-me ser um bocado de ti.
Partilha essa tua vista maravilhosa comigo.
Este sou eu, irredutível, a pedir-te que me unas aos céus;
Que me sejas e que me deixes ser-te.

Tem-me. Sê-me.

Funde-me com o maior vigor.
Agrega-me os sentimentos num só
E faz-me levitar. Perto de ti. Contigo.


Lá estão os jardins da Avenida. Sim, cada vez mais nítidos. São eles.
Parece-me que está na hora de cada um seguir o seu rumo


Deixa-me ser imagem divinal.
Eternamente: pelo desconhecido.


Resta-me esperar que tenhas gostado do café.
Podemos repetir. Um dia.

Rui Gomes, 6-11-2011
 
Subjugado ao divino

Num sopro majestoso

 
Num sopro majestoso,
a corrente ambiciosa
de rumo impiedoso
lá fluiu receosa.

Ao primeiro empecilho
que se viu enfrentar,
tendo em conta o sarilho
em que acabara de entrar,

negou ao sentimento
a liberdade do seu esplendor,
concluindo que o vento

havia sido seu criador.
Vítima do desalento.
Para sempre: a corrente do amor.

Rui Gomes
 
Num sopro majestoso

O vazio das sociedades ociedentais

 
O vazio de valores das sociedades ocidentais conduziu a uma preocupação obsessiva com a fama, o dinheiro e a imagem. Esta realidade
traduz-se na tristonha brisa cuja insuficiente harmonia não acalma, de todo,
o trémulo velho grato pela ingratidão que a sua lida lhe havia proporcionado;
assenta, assim, num campo repleto de edifícios alicerçados no protagonismo,
na inveja, na busca de interesses e no ridículo, porém real, combate pela
destratificação e unificação das classes sociais.
Actualmente, uma rosa não transplandece beleza pela sua proporção elegante e carácter discreto, pelo contraste acertado de cores, pelo valor que
tem e constitui no reino vivo; na verdade, nos dias correntes, uma rosa é bela –
e pode ser considerada na generalidade como tal – se, à luz de uma abelha polinizadora hierarquicamente superior aos demais seres, esta apresentar as características necessárias para que possa ser considerada como bela,
fazendo com que passe a ser uma referência do reino vivo em questão.
Uma vez mudando, o mundo terá de ser apenas mais uma pequena rocha cuja pressão infligida na mesma pela água fará com que acompanhe o movimento da íngreme cascata, cujo percurso tende para o desconhecido. Mas quando, assombrados pela capa caótica do mau aproveitamento da inteligência, a corrente parar, estarei algures a escrever o que acabo de escrever.
 
O vazio das sociedades ociedentais

Mas afinal por que chove todos os dias?

 
“Céu encoberto com possibilidades de aguaceiros.”

Algures no limiar da fantasia:
– Doutor Gramostovsky, tenho-me sentido mal! Muito mal! – expôs soluçando a Sra. Consciência.
– Ora, Sra. Consciência, não se sinta. Quer contar-me o que a atormenta? – retorquiu o Doutor Gramostovsky muito enfatuado e cínico.
– Bom, Sr. Doutor, há muito tempo que tenho tentado fazer o que me tem dito… Aquilo de tentar sugar o bom do mal que me resta e descartar-me do mal entranhado no bom que me acontece… Sabe?
– Sei, sim, ora não haveria de saber, Sra. Consciência? E então? – perguntou o Dr. Gramostovsky com um falso interesse.
– Olhe, é o meu primo Imperativo. Sabe Deus como aquele rapaz sai ao pai… o meu tio Teimosia, sabe? – Esse coitado, teve uma morte sofrida, mas que deixou um diabinho por cá, ai isso deixou! - o rapaz não pára de me atormentar com o meu divórcio. Mas o Sr. Doutor sabe, as coisas entre mim e o meu ex-marido Emoção já não resultavam… Creio que ainda se lembra de como foi difícil que tivesse ultrapassado este martírio. Olhe, só tenho é que agradecer a todos os que apoiaram, principalmente à minha grande amiga Determinação que sempre se mostrou muito prestável… Mas deixemo-nos de mexeriquices que elas não pagam contas! – exclamou, convicta, a Sra. Consciência.
O doutor Gramostovsky mostrava-se com um grande impasse interior e uma falta de paciência enorme.
– Ora nem mais, Sra. Consciência, ora nem mais… Diga-me lá o que tem. Sabe… é que, com todo o respeito, eu tenho muitos pacientes, como deve saber. - ripostou o Dr. Gramostovsky.
– Pois, claro… Ando tão confusa que nem faço jus ao meu nome, queria-me desculpar, Dr. Gramostovsky, queira-me desculpar… Sabe, é que ando num impasse tal que…
– Chega, mulher! Vai dizer-me o que tem ou não!? - Disse o Doutor, interrompendo de forma aguda.
– É que… Sabe… eu… - disse a Sra. Consciência soluçante, mastigando as próprias palavras e pouco convicta do que dizia.
– Desembuche, mulher! – exclamou desesperado Gramostovsky.
– Com esta pressão tão grande por parte do Imperativo sinto-me sem espaço para organizar as minhas ideias, para reflectir acerca do que sou ou o que quero, do mal que fiz e como posso redimir-me, do bom que ainda posso vir a fazer e de como agarrar as oportunidades que virão, do valor do arrependimento! Sim, do arrependimento! - que tudo se revela muito enevoado sempre que penso no meu querido Emoção… - Numa introspecção - AHH circunstâncias, seu bando de parasitas que me atormentam! AHH Imperativo, como ousas chamar-me prima!?
Surpreso pela reacção explosiva da sua paciente, Dr. Gramostovsky redargúi:
– Bom, vejo que se encontra muito perturbada. Outra coisa não seria de esperar, está com uma pressão enorme em cima de si. Avaliando a sua posição, tenho de lhe perguntar se está disposta a cometer um crime moral altamente crasso.
– Tudo o que for preciso para aliviar esta minha constância! – afirmou decidida a Sra. Consciência.
– Sendo assim, proponho que faça o seu primo ingerir 10ml deste fármaco que o fará adormecer. Um sono prolongado. Enquanto isso, faça por reestabelecer o bom ambiente com o seu ex-marido Emoção, que bem sei que lhe faz falta embora não o admita muito facilmente. – aconselhou o Dr. Gramostovsky num estado misto caracterizado pelo balanço entre o impasse e a prestabilidade.
A Sra. Consciência abandonou a sala e nunca mais – dali em frente – voltou a falar com o Dr. Gramostovsky.

Dias mais tarde:
“Transplandeça vivacidade neste magnífico dia de sol!”

Rui Gomes
 
Mas afinal por que chove todos os dias?

Se cada um soubesse o que fazer para dar felicidade ao outro, o mundo seria bem melhor

 
Quando o "ter" se sobrepuser ao "existir"; quando o "ser" for literalmente atropleado pelo "parecer"; quando os aspectos fúteis espremerem o sumo das maduras frutas da boa vontade - já o Homem não será chamado como tal; já a componente sentimental que lhe é própria será substituida por imparcialidade; já a ordem será caos.
Segundo as leis da Natureza, o Homem está determinado a viver para si e para o próximo, em sociedade. Posto isto, e sendo o Homem um ser natural, é completamente contraditório e oposto ao normal fluir da barra cronológica, que estes valores não sejam conservados. Uma das condições básicas de viver com o próximo é a capacidade de lhe proporcionar felicidade e, para que isso aconteça, a verdade, a honestidade e o altruísmo devem reinar no império mental de cada um, estando-lhes intrinsecamente incutidos.
A escassez do conhecimento no que respeita àquilo que um indivíduo pode fazer para a felicidade do outro só vem, na minha opinião, ilustrar a precariedade do pensamento humano com o qual as sociedades actuais são inundadas - só comprova que valores altruístas se desvaneceram face ao emergir do egoísmo.
Assim, se o homem fosse Homem, e se soubesse o que fazer para dar felicidade ao outro, o mundo não seria melhor (porque é absurdo compararmos opostos), mas sim natural.
 
Se cada um soubesse o que fazer para dar felicidade ao outro, o mundo seria bem melhor

D. Sebastião morreu, menina.

 
Inventa alguma alegria,
Forja alguma satisfação, menina.

Cuida desse peso ilusório
Nos ombros cansados carregado
E inventa alguma alegria.

A sinfonia virou barulho, menina.

E o trapo que carregas?
Esse já desbotou há algum tempo, menina.
E a sede de perfeição?
A dança nupcial? O discurso mais pungente?
Quimeras viraram somente.
Infelizmente!

E tu, que esse luto sincero negas;
Tu, que da repulsa fizeste rotina,
De entender estás a léguas.
Que fizeste, menina?

Rui Gomes
 
D. Sebastião morreu, menina.

Deslizar

 
Deslizar

Ruído catártico – opaco – de fundo;
Adivinhava-se atordoadamente suave; purgador, só: o Cosmos.

– Não há espaço para lágrimas –

Apalpei o metafísico e imortalizei a impressão. Violei a ordem. Desnudei a gravidade. Impus lei à lei – esfreguei-a na sua face como resistência ao extremo. E fui seguindo, estendido, patinando por devaneios eternos, numa quietude obsequiosa e divinal.

Num contentamento imperecível, acabei por fechar os olhos. Conseguia ver. Via: o mais basilar do agregado de matéria: as primeiras páginas do livro das Aventuras dos Sentidos; a brincadeira das percepções; a receita do enigmático que contenta, do indefinido que aquece. E vai aquecendo.

Num momento: sou a energia da veemência do contacto; sou as perpétuas pisadas dos transeuntes da Lua, o júbilo insuportável do primeiro flutuante no vazio celestial; sou todos e cada sorriso, arrancados a ferros àqueles que o tempo mais apedrejou. Sou o aprazimento infinito.

...

Distraído, sem dar por mim, colido com um Sonho. Violentamente. Quem diria que deslizava com tal veemência que o desagregaria? (Quem diria, mais até, que se podia deslizar com veemência?). Desagreguei-o. Oh sim!

Num eclipsar do ímpeto vão-se sublimando cristais de nostalgia – essas réstias da matéria dos sonhos –, trespassados pelo vigor de um embate episódico, multiplicando-se eternamente, interceptando rotas de viajantes desnorteados, porque o norte não é senão um limite; e os limites nunca se interceptam com a matéria dos sonhos.

...

Recomposto, tentei atribuir aos meus movimentos alguma relevância; mas como se de um perdido submerso no seu oceano de razões e justificações me tratasse – tentando, desesperadamente, sem efeito, bater os braços –, cada movimento transparecia a minha insuficiência, a minha impotência, o meu nada, enquanto deslizava segundo um rumo que não controlava: o meu norte tinha sido negado pelo contacto fantástico com o Sonho. Estava, indivisivelmente, entregue aos desígnios do acaso.

O intuito entregava-se, por fim, ajoelhado, a si; remetido ao que era. E não era muito. Era bem mais.

Era-o porque a alma era por fim o que a alma quer dizer. Era-o porque a alma tinha feito um tratado de paz com a sua infinitude.
Sentia-me assustadoramente leve. Leve, apesar do aterrorizador do imenso. Leve, apesar da inconstância do desconhecido.

Deslizei



Embriagado pela beleza da luz sedutora e afiada das estrelas, permaneci. Sem que me apercebesse inicialmente, uma dor aguda assaltou-me o espírito. Cada vez mais. A formosura estelar intermitia-se com perfurações nada misericordiosas do desconhecido, acompanhada por repetidas dilatações e compressões das minhas pupilas. Turbilhava-me o sangue que se ebulia gradualmente; latejava-me o íntimo.

Do meu tórax ia florescendo a mais insustentável luz, a mais incomensurável manifestação aprazível, escoltada por uma metamorfose violenta e insuportável. Os agudos vincavam-se e a atroadora ostentação pungente de energia, que rompia já as minhas vísceras, intensificava-se.

Num concentrado inenarrável de sentimento, numa veemência abstracta carnal, explodiu magnificentemente, espalhando-se em espectros intermináveis, um enredo infinitamente progressivo de preenchimento dos espaços destinados à emoção: um raiar de humanescas sensações, sentidos, do subtil inatingível, e um pouco mais que tudo isso.

...

Da penumbra observam-se os últimos pontos da luz. Daquela luz: da minha luz. Foi-se tornando progressivamente menos nítida, rendida ao crepúsculo que se afigurava agora possessivo, cada vez mais.

Estava já escuro quando deixei de deslizar.

Rui Gomes
 
Deslizar

Anéis de Saturno

 
Apenas para a minha própria satisfação. Nada mais. Curioso

Anéis de Saturno

Vê-los lá? Majestosos.
São teus.
Ofereço-tos, ofereci-tos.
Teus.

Venera-os, não me agradeças.
Possui-os, vá...
Teus.
Ofereço-tos, ofereci-tos.
Partilha lá com quem quiseres
- eu deixo -
Não tens por que te preocupar.

Sim.

Teus,
Dei-tos. Pensa.
Ofereço-tos, ofereci-tos.
Qualquer coisa. Reflecte.
Qualquer coisa sem entraves, vá...

Pensa.
Posse. Só tua.
Tua(só).

Como!? Luas de Júpiter?
Menos do que nada

ERRADO!Engano.
Era nada, mesmo. Só.

Algo mais (?) Só pedir.
Pedir.

Só.
Para sempre, sempre só.

E, engraçado, basta.

Rui Gomes
 
Anéis de Saturno

A nostalgia do que decidiu não acontecer

 
De novo a luz.
Não sei porque ainda existe. Não sei porque me ilumina e abençoa
Se não cá estás para perguntar: sentes o seu calor? Vês o seu brilho?

Vejo. Sinto.
Vejo a chuva: a chuva que escorrega sonhos abaixo,
Que banha o que dói e purifica a alma.

Sinto o calor da voz. E das castanhas.
E de risos e sorrisos fundidos com bem-querer em despreocupada ignorância.
Sinto frio nos pés e lembro-me de ti.

A ternura também se fatiga e o sono é teimoso quando quer.
Azuis brotam-me dos olhos e procuram no rosto a navegação mais segura.
Refugio-me no silêncio das palavras mais altas.
Mas tenho vertigens. Às vezes caio.

Com a chave do meu corpo abro a porta do universo mais imenso.
Entro nele.
Consinto a doçura e tenho dó da matéria dos sonhos. E das estrelas.
Faço por invocar o afago, a claridade e a sinfonia do íntimo.

Trespassa-me agora os olhos. A luz.
Faz amor com a minha pele. A chuva.
Estava tão perto de voar que me esqueci que o verão acabou:
Uma súbita alegria, aguda e parva, desce e coroa a terra de água.
Mal sabe Deus que me arde o coração.

Rui Gomes
 
A nostalgia do que decidiu não acontecer

Olá, vida

 
A partir da frase: "Grab this world by its clothespins and shake it out again and again" - Anis Mojgani

Olá, vida

Acordo.
O tédio cai-se-me perante o brilho: sinfónico, colorido.
E ouço, lá no fundo, o cheiro da mais bela aguarela.
O aroma chega-me inebriante numa quente consolação,
um contentamento doce.
E numa paz definida, não mais pertinaz,
agarro o mundo pelas costuras.

Não violentamente.

Agarro-o pelas costuras por não querer que me falhe;
para garantir a destilação do agridoce e a reciclagem da imensidão
sob a forma de nostalgia.

Agarro-o pelas costuras para abraçar o belo;
Para me certificar que arranho a desconsolação.
Para garantir que perpetuo o quente,
que me perpetuo.
Para beber da fonte da cor e me abastecer do poço do ser.

Para semear o vital e colher a memória.

Hoje, um pouquinho mais que ontem, quero viver.

Rui Gomes
 
Olá, vida

Estou confuso

 
Esta incompreensão dá cabo da imagem daquilo que um dia foi compreendido. Imagem essa que vale mais que a própria compreensão. Afinal, imagens dão-nos a percepção da compreensão, mas não no-la dão. Compreensões inconcebíveis à luz de incompreendidos são minotauros incolores. Tintas são as pessoas, ignorância a sua cor e telas os ignorantes que se deixam pintar. Pintores, aqueles que escolhem as cores a usar nas SUAS telas. Possuem-nas, oh… possuem-nas. E mais bem-sucedidos são os que misturam as suas tintas com padrões previamente definidos. Envolvem as suas tintas. Oh se envolvem… Tintas deixam de o ser, tornando-se meras misturas IGUAIS e com um único fim – pintar a tela que com muito gosto se dispõe a ser pintada. Ignorância.
Ignorância. O que é isso senão a compreensão de que a não compreensão é uma realidade?
Realidade pressupõe incompreensão? Boa pergunta.
Sou um compreendido que não cabe na realidade (incompreensão?). Regidos pela razão? Oh, não queiram ser assim, acabarão por ser descartados pelos pintores. Afinal, eles é que pintam as telas.

Votos de um Feliz Natal.
Rui Gomes
 
Estou confuso

Aquele dia

 
Naquele dia, ergueram-se árvores e arbustos e o verde. E essas árvores e esses arbustos e esse verde foram tudo o que de árvore e arbusto e verde se pode ser. Foram ar carente de pulmões, foram terra com sede de raízes com sede de água e fogueira sem fogo; e foram os pulmões e as raízes e a lágrima e a chama, que nada respiram, brotam, regam ou ardem. E que respiraram e brotaram, e que regaram e arderam: naquele dia.

Naquele dia, nasceu o vento e as pétalas e as asas. Vento que soprou ao sabor do norte, que desnorteou as asas; vento que espalhou as pétalas, que existiam sem flores. Naquele dia, vernou o norte e nasceram as flores. E as árvores e os arbustos e o verde orientaram-se apaixonadamente conforme as pétalas e o vento e as flores, que eram já mais do que verde: um miscigenado de cor, que também nasceu naquele dia.

Naquele dia, formou-se carne. E as asas puderam voar porque já tinham onde se agarrar: nasceram borboletas e pássaros: ostentavam cor. E os Grilos e as joaninhas. E com os grilos e as borboletas, os pássaros e as joaninhas, nasceu o som e o aroma. E o sol, imponente, que já existia antes daquele dia, pôde raiar com um vigor discreto, um vigor com cheiro, um vigor com gritos imperceptíveis que bradavam aos céus azuis.

Naquele dia, nasceram os montes e as montanhas e a água pôde cair: esculpiu rios, riachos e cataratas e deu de beber aos grilos e às borboletas, aos pássaros e às joaninhas.

Estenderam-se, naquele dia, campos de trigo perpétuos, que baloiçavam deleitosamente ao sabor, som e imagem do vento, que soprava ao sabor do norte. Sentiam-se os assobios celestiais: os sussurros aprazíveis das sucessões pacatas que se entrelaçavam com o bem-querer harmonioso daqueles campos de trigo.

Naquele dia, criaram-se os arrepios e os suspiros e os calafrios. E o devaneio eterno foi Divindade. Os grãos de areia deambulantes fundiram-se num maciço sublime de paixão. E da envolvência voluptuosa ergueram-se pontes, casas; formaram-se estradas e avenidas. E os arrepios e os suspiros e os calafrios puderam vaguear pelas ruas, estradas, vielas, avenidas; ultrapassaram pontes e embateram em edifícios.

E o que não existe aconteceu também naquele dia: meninos infinitos, órfãos de pai e mãe infinitos, brincaram até mais tarde numa calçada infinita, porque o jantar não ficou pronto a horas, porque a mãe, naquele dia, não fez o jantar para o pai que chega a casa cansado do trabalho, porque o pai não chegou a casa cansado do trabalho, porque não chegou a casa.

A nostalgia morreu naquele dia em que o tempo parou.

Rui Gomes
 
Aquele dia

Mísero ponto no teu enorme plano

 
Tu, razão da minha insónia. Sereia traidora, feiticeira vil. Por que me prendes? Por que não durmo?
Será luxúria tua? Serei eu peixe para as tuas redes imensas? Nelas não brilho, nelas não sou diferente, nelas não passo de um peixe, de um mísero e insignificante peixe que, pelos seus entrelaçados fios, vê a sua vida desabar numa realidade marcada pela intensidade dos raios solares incidentes na já escassa água presente nas escamas que lhe restam.
 
Mísero ponto no teu enorme plano

A cor

 
Antes, tudo era colorido. Tudo se resumia às cores, à sua beleza, à sua harmonia, àquilo que representavam e à espectacularidade com que davam vida ao morto, luz ao escuro, alegria ao triste.
Depois, novas cores apareceram:onde antes havia o vermelho, passou a haver o magenta, o bordô; onde antes havia o cor-de-rosa, passou a existir o púrpura, o rosa-choque; onde antes havia o discreto preto, passaram a existir os vários tipos de cinza, uns mais mortos que outros - e com eles veio o peso do mundo, a realidade escura, cinzenta, poluída. Como se não bastasse, a percepção de que alguns vermelhos eram laranjas, de que alguns azuis eram verdes, emergiu também.
"Bem-vindo à humanidade", dizem-me eles. "Que feio que isto é", penso eu e ironicamente contento-me com a certeza de que já penso, já sei o que tudo é e que mais cores não podem haver. É então que toda a beleza que ainda restava das já feias cores se desvanece, é então que tudo o que já me parecia mau (aquele rosa-choque, o bordô, o púrpura, o azul-aqua) se transforma subitamente em branco; não a solidão do preto, mas o choque do branco.
Vivo na convicção de que aquilo que outrora teve cor o possa pintar novamente, certo de que não poderei contar com alguns lápis.
 
A cor