Poemas, frases e mensagens de ValdeciFerraz

Seleção dos poemas, frases e mensagens mais populares de ValdeciFerraz

SAUDADE

 
SAUDADE
 
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Hoje refiz as veredas que trilhamos,
No ar o teu perfume ainda estava intenso,
E sobre a calçada onde nos sentamos
Encontrei abandonado o mesmo lenço
Que um dia nos serviu de travesseiro.
Sobre o chão molhado e frio da rua
Uma planta estranha e bela brotava
E o que nela mais se destacava
Era seu formato de uma mulher nua.
 
SAUDADE

O MORCEGO

 
O MORCEGO
 
Uma noite quente eu escrevia
Versos tristes no computador
A mulher adormecida não ouvia
O som desesperado do meu amor
Pensei em recolher-me ao leito,
Achando que tinha feito,
Um bocado de tolice
Quando algo passou por mim, por trás,
Um vento, eu me disse,
“É só isso e nada mais”.

Lembro que o silêncio era intenso,
Eu pensei em vê-la
Dentro de mim um desejo imenso
No céu nenhuma estrela.
O relógio bateu meia noite
No meu apartamento
A solidão fazia açoite
Um ruflar de asas invadiu meus umbrais.
Penso que é só o vento,
Só isso e nada mais.

Os quadros pendurados na parede
Balançavam como um pêndulo
Minha boca ficou seca
Meu corpo todinho trêmulo
Como quem viu assombração.
Do outro lado da mesa eu vejo
Algo que não esqueci jamais:
Um morcego com um riso negro
Penso que é um pesadelo
Só isso e nada mais.

Imóvel,
Permaneço acuado por tamanha expectação.
Fora do apartamento é densa a escuridão,
Dentro da sala surge
Um cheiro de excremento seco.
A pose do morcego desafia a minha imaginação.
A que devo tal visita Senhor das Trevas?
Por que invades minha morada com tal ousadia?
Como te chamas para que pela manhã minha amada
Não diga que estive sonhando?
Disse-me o morcego:
Covardia.

Não entendi a enigmática resposta
Da estranha criatura,
Que mesmo estando de costa
Tinha um olhar de censura.
E ria um riso que era de dar agonia
Fazendo sair do meu peito
Gritos de gatos negros, e a gritaria
Me fez vomitar no assoalho
Coisas que eu não queria
E ele continuava parado, dizendo:
Covardia.

Pensei, repensei, o que seria aquilo?
Estava ali tão tranqüilo
Lutando com as palavras em busca da poesia,
Eis então num rompante
Uma coisa repugnante,
Invade-me a moradia.
Vem tirar-me a paz, a alegria
Vem roubar-me o sossego.
A noite pariu um morcego
Que só fala: Covardia.

Desde o momento daquela estranha chegada
Minha preocupação maior era com a minha amada,
Pois se estivesse acordada
Decerto desmaiaria,
Pois o pavor que sentia
Daquele animal medonho
Ultrapassava os limites do pesadelo ou do sonho.
Lembrei-me então da porta, trancada tê-la-ia?
O bicho continuava agitando a suas asas,
E dizendo entre os dentes: Covardia.

Incrível
A palavra cresceu mais do que a feia criatura
E foi tomando os umbrais, a sala ficando escura,
O olhar do animal ficou então mais aceso,
Voltou-se para onde estava
A fonte dos meus desejos.
Parece que o bicho adivinhava
Tudo que eu fazia.
O som de sua voz era rouco,
Eu cada vez mais louco,
Pensei: é covardia.

É nome, ou ele fala de algo que existe em mim?
Serei tão ignóbil assim, a ponto de lá do inferno
Vir um bicho ruim?
O medo que eu sentia foi mudando a direção,
Em vez de ser do morcego
Temi a própria razão.
Por dentro me vi mais feio
Que a estranha companhia,
Que a todo o momento falava:
Covardia.

Quem é covarde aqui, pode afinal me dizer
Senhor da escuridão, pois eu quero saber.
É covardia o que faço
Enquanto ela dorme no quarto
Alheia a meu universo?
Muitas vezes fui leviano, Inconseqüente, e perverso,
Sem dividir com ela as emoções que sentia
Mas, declaro que estremeço
Ao ouvir-te, caro morcego
Dizer: covardia.

Fitei a treva lá fora, mergulhei no passado,
É a vida, uma longa noite,
Ou um sonho alucinado?
A noite com seus vampiros, seus suspiros,
Seus espirros de um deus cansado.
Se tudo o que fiz foi errado,
Mereço ir para o horto,
Vendo este anjo torto
Violar-me a moradia
E dizer com voz de um morto: Covardia.

Dali por diante um novo quadro se fez.
Confesso que desejei ouvir coisas que não queria,
Pois no fundo eu sabia
De minha sujeira interna.
Gatos nas paredes arranhavam minhas telas,
Um palhaço desenhado começou a chorar,
Tal era o pavor do morcego,
Que simplesmente sorria,
E entrementes dizia:
Covardia.

A um gesto inusitado do morcego invasor
Surgiu uma grande tela, que me encheu de pavor.
Nela eu vi um menino cercado por muitos ratos
E junto dele uma flor.
Os ratos esperavam a bela rosa murchar
Para saltar sobre ele e o seu sangue chupar
Em toda aquela agonia
A flor lentamente morria
Sem nada poder fazer.
O menino então chorava
Enquanto o morcego falava: Covardia.

Vós, que nas trevas navegas; que a tudo enxergas,
Dizei-me o que tu queres,
Não vês que eu desejo despertá-la com um beijo
Pra esquecer as mulheres?
Um mar de leite me espera (a minha alcova sagrada),
Oh! Não despertes, não despertes a minha amada.
Por que não falas de vez o que desejas de mim,
Criatura asquerosa, agourenta e ruim?
E o morcego olhando a porta do quarto dizia
Num tom lascivo, visguento: Covardia.

Por trás dos montes um brilho anunciou a aurora,
Dando-me a esperança daquele bicho ir embora,
Pois assim como o diabo foge de uma cruz
O morcego é noctívago, não pode ver uma luz.
O que vi então me deixou petrificado
O morcego lambia os beiços e tinha o falo inchado,
Estendeu as asas e voou em direção de meu quarto,
A porta estava aberta, lembrei tarde demais.
É tudo um pesadelo! Só pode ser isso,
Só isso e nada mais.

Quando afinal me soltei do torpor que me prendia,
Corri para o quarto para ver se podia
Fazer alguma coisa em prol da minha amada.
Ouvi então o riso negro da criatura malvada,
Saindo em disparada nas trevas que ainda restava.
Só me restou o silêncio, silêncio e nada mais.
Foi um sonho, disse a mim mesmo,
Mas quando olhei para trás,
Na porta estava escrito em letras garrafais: Covardia.
Olhei a cama e caí.
Ela estava vazia!
 
O MORCEGO

REVELAÇÃO

 
Alguém me disse: amor não existe
É tudo circunstância, interesses mútuos.
Apontou para o meu desejo e falou:
Amarás quem o matar.
Amarás o assassino do teu desejo.
Então eu desejei saber do amor
E o vi com a mala pronta,
Passagem na mão para outro mundo.
Pensei nas mulheres que amei
E nos desejos saciados, sepultados,
Teria eu amado sem desejo?
Até que venha e se proste
E se entregue sem reservas
Manter-se-á a chama de uma paixão
Infinita enquanto dure,
Porém o amor tomará mil disfarces
E desaparecerá no tempo,
Consumido na cremação dos ritos.
Desejo por desejo, paixão por paixão,
Um trato tácito com a aprovação
Dos corpos carentes,
Cansados da solidão.
 
REVELAÇÃO

OFERTÓRIO

 
Venho te ofertar tudo de mim
Como prova de um amor insano,
Chego pleno, ousado e assim
Não digas amor que sou leviano.

Comigo trago uma rosa carmim,
Roubei-a de alguém num ato profano
Se estou louco não importa, enfim
O que vale é o meu amor soberano.

Cuja história se ouvirá muito tempo depois,
Sã ou insano, tanto faz; amada, pois,
Venho te ofertar tudo aquilo que me resta:

Uma alma que ainda chora, geme, e grita
Um coração transido que se agita
Um peito ardente e a alma em festa.
 
OFERTÓRIO

ARREPENDIMENTO

 
Um dia você vai sentir falta de mim.
Vai lamentar não ter-me amado tanto.
Vai procurar o meu corpo e, enfim,
Encontrará a saudade, e um pranto.

Já não lhe importará da vida a sorte.
Pois o pranto lhe trará cruel dormência,
Como choram os elefantes ante a morte
Você há de chorar a minha ausência.

Mas enquanto não se cumpre o destino
Desfrutarei desse amor desesperado
Pois quem sabe a história se transmude

E em vez do teu pranto puro, cristalino,
Seja eu por fim, triste, desgraçado
A chorar a tua ausência, amiúde.
 
ARREPENDIMENTO

SEGREDOS

 
Nossos códigos quem os sabe?
a luz à meia luz,
a chave na porta,
o roçar dos dedos...

Nossos sonhos quem os sabe?
nosso riso quem ouviu?
nossas lágrimas quem chorou?
nossas almas tão unidas
derramadas sobr o leito.

Nossos corpos em brasa
se consomem avidamente.

Ah! nossos códigos quem os sabe?
nossos gritos quem os ouve?
nossos odores quem os sente
Ninguém,
só nós.[/img]
 
SEGREDOS

O CHEIRO

 
Não adiantou tapar o nariz, botar lenço, desviar a cara, o cheiro entrou pelos poros, atravessou a pele e foi direto para onde não queria que fosse. Durante o tempo em que permaneceu ali ergueu tsunamis, ativou vulcões, desencadeou tempestades, destruiu miríades de anjos, confundiu o céu e o inferno, fez nascer planta em pedra, entonteceu-o. O cheiro destruiu o tempo, fundiu a existência, mergulhou no fundo do rio, arrancou-lhe as vísceras expondo-as à luz do sol. Trouxe também a certeza de que ainda havia prazer naquele corpo retorcido pela vida. A primeira vez que sentiu pensou em coisas que não queria pensar, não podia pensar, não devia pensar. Mas ali estava tudo a sua frente, cristalino como o rio que costumava mergulhar quando criança. O odor presente perfurou a bolsa do tempo e eles vieram paulatinamente, um a um, perfumes que até então julgara destruídos. Primeiro o cheiro do campo, de terra molhada, de esterco de boi. Como um pincel mágico o perfume desenhou as lembranças na tela dos pensamentos. Ivete. Os dedos rachados chegaram ao nariz com a mesma suavidade empregada na descida pelo monte de Vênus e injetaram um cheiro de amêndoas quase maduras. Num gesto abrupto, baixou a mão olhando para os lados. Já pensou se a mulher o visse cheirando os dedos naquela idade? Sorri. Ninguém. A mão volta ao nariz levando o cheiro de Ivete. Olha para o teto na esperança do socorro divino. Tem a impressão que ele está lá, se acabando de rir. Ivete. Inverte. Troca de mão. Novo cheiro. Ivete desaparece na bruma do tempo. Em seu lugar surgem os burros. Uma manada inteira conduzida pelo olor para dentro do seu cérebro. Coisa de Deus. Coisa do Diabo. O olfato conspira. Vê-se menino na beira do rio. João dos Burros esfrega o lombo dos asnos. Não adianta. A inhaca não sai. Joana surge no meio da manada. O cheiro dela faz a inhaca desaparecer. João dos Burros tira a manada da água e mergulha no cheiro de Joana. A mão do velho desce para a virilha. O menino urina nas calças. Joana monta em João e a manada os segue no caminho para casa.
Não contava com aquilo.
A cor desbotada cobria a sua existência como um escudo, protegendo-o das investidas da carne. As folhas amareladas do livro santo sepultavam os germes da perdição com a força de uma prensa gigantesca. Aos oitenta anos a morte não parece tão feia. Pôde até pensar nela como uma mulher chorando de raiva do marido por haver sido enganada. Sabe que não será alcançado por seus braços mortais. Num piscar de olhos estará do outro lado, no mundo além, eternamente com Ele. Mas de repente o cheiro balançou o coreto. Um cheiro negro, viscoso, um polvo com infinitos tentáculos capaz de sugar a morte, o medo, a fome, a tristeza, o tédio, e expor um universo paralelo colorido, esfuziante.
Soubesse não a teria contratado. Sei lavar, cozinhar, passar e preciso trabalhar, disse a moça. Pensou em negar, mas poderiam chamá-lo de racista. Ela era negra. Olhou para a esposa doente. Tinha que ter alguém para fazer o serviço de casa. A mulher já não podia nem andar direito com os calos secos, a diabete avançando, o peso dos anos. Ainda tentou ele mesmo assumir a casa, mas também os pesos dos anos lhe pesaram. Acertado os dias, o horário, o salário, Benedita começou a trabalhar. Aos poucos foi tomando conta de tudo. Começando pela comida. Que tempero, que cheiro bom a casa tinha quando ela estava na cozinha. A presença de Benedita trouxe alegria para a casa. Ela estava sempre rindo, atenta a tudo, se antecipava aos interesses dos donos. Com seis meses Benedita estava integrada a família como uma parenta específica. A negra nos seus vinte anos exalava saúde como uma potranca selvagem. Um dia o velho chegou mais perto dela para segurar uma fruta. Benedita tomara banho apenas com sabão comum. Do seu corpo exalou um cheiro de fêmea. O velho prendeu a respiração. A vista escureceu, sentiu um formigamento nos pés. Benedita seguiu para a cozinha e ele ficou ali com as frutas na mão sem saber que fazer. Seu Brivaldo me dê as bananas! Caminhou como um autômato entregou-lhe as frutas e correu para o quarto. A névoa embotada e amarelada começou a desaparecer. Dos pés subiu uma quentura, as veias do corpo ficaram mais azuis. Será possível? De repente tudo estava ali na sua frente.
Tomou banho, trocou a cueca, vestiu o pijama e sentou na beira da cama. Pela janela olhou o corpo carcomido da mulher e tentou imaginar o cheiro. Agora percebera que havia sido conquistado pelo cheiro dela há muitos anos atrás. Um cheiro de sapoti misturado com a inhaca dos burros de João dos Burros. Lembrou bem daquela tarde em que ela e a irmã esperavam-no para ir ao cinema Pathé, em Afogados. Bem no meio do filme ela deitou a cabeça nos seus ombros e o perfume dos seus cabelos tomou-lhe o corpo. Outros odores vieram, mesclaram-se, fixaram marcos. Até que um cheiro divino o assaltou ao ser envolvido pela fumaça branca do turíbulo santo da igreja de são Sebastião. As palavras do padre André soaram como um poderoso gancho recolhendo do vale de sua vida as coisas fedorentas com as quais havia se envolvido. Quando recebeu a hóstia santa depois de tanto tempo sentiu o corpo limpo, a alma leve, o espírito livre. Agora tenho o cheiro de Cristo.
Mas o cheiro do diabo permanecia ali, vindo da cozinha.
Depois do almoço a filha levou a mulher para o médico. Pela primeira vez o velho ficou com medo de ficar sozinho em casa, com Benedita fazendo a faxina. Estremeceu ao ouvir a voz da criada:
— Hora do remédio Seu Brivaldo! Abra a porta!
Ora! Mas que besteira! Resmungou para si. Não há de ser nada. Ergueu a cabeça se mirando do espelho do toucador. Atrás de si ele viu todas as imagens geradas pelo perfume de Benedita. Novamente sentiu o formigamento nos pés. Não! Não podia aparecer na presença da moça com aquele volume na virilha. Também não podia deixar de tomar o remédio na hora certa. Teve a certeza que se abrisse aquela porta Benedita seria sufocada pelas imagens que inundavam o quarto. O crucifixo! Aleluia! Num gesto rápido arrancou o objeto da parede, e segurando-o a frente da braguilha abriu a porta. Antes de engolir os comprimidos que Benedita lhe dera percebeu um cheiro mais forte se sobrepondo ao perfume de inhaca e asno que vinha do corpo da negra. Um cheiro de cravo.
Caiu morto.
 
O CHEIRO

PITACO

 
PITACO

Hoje não é mais
do que a primeira fatia do tempo,
as restantes vão se dissolvendo na poeira.
Cada ser humano dispõe da ferramenta
para determinar o tamanho de sua fatia.

Sinto pena daqueles
que não conseguem alargar as suas horas,
pois vinte e quatro é apenas uma convenção.

Joguem fora os relógios
e abracem a vida.
Há uma canção composta exclusivamente para você.
Não adianta procurá-la
no brilho das estrelas distantes,
nem dentro de paredes alheias.
Pois você é a partitura,
seu corpo o instrumento.
Hoje é apenas o resumo do ontem.
 
PITACO

APAIXONADO

 
Quem pode
culpar os teus olhos pela paixão despertada em mim?
Quem pode
culpar as estrelas se nunca viram o negrume da noite?
Arrasto uma asa sangrando
desde aquela primeira vez que eu te vi
O perfume dos teus cabelos
escreveu hieróglifos em minha mente.

Uma profusão de borboletas prateadas
inundou a minha alma-menina
E os meus olhos se fecharam
para as flores de outros jardins
Passei dias e dias me alimentando de rosas,
bebendo a luz da lua
Até os fantasmas suspenderam o “buuu!”
em respeito ao meu amor.

Mas quem pode
culpar o teu corpo pelo fogo ateado em meu sangue?
Quem é capaz de decifrar
os códigos gerados entre os becos da saudade?
Menina!
Nunca mais o som da chuva terá a mesma melodia
Nem o vento será capaz de derrubar
as árvores que plantaste em meu solo.

Foi-se a pipa colorida
conduzida pelos heróis dos quadrinhos roubados
Foi-se a noite
repleta de zumbis dançantes que rodeavam minha cama
Veio a madrugada
pincelada pela mão de anjos loucos e endemoninhados
Dando origem a última geração
de homens românticos e apaixonados.

Mas dói na alma saber-se inconsumido,
incompreendido, levantando cercas
e arrombando telhados
como um ladrão desesperado,
raspando o asfalto das idéias
em busca de uma maneira de
envolver-te em meus braços.

Menina!
Escuta a canção
que a tua boca compôs
quando abriste um sorriso na mesa de dominó,
abre os braços
e recebe o selo que te elege o ápice da criação
Não desprezes jamais
um coração apaixonado
 
APAIXONADO

POEMA EM CONSTRUÇÃO

 
Quando os teus olhos eu vejo
Desejo
Morrer nos teus braços morenos.
Ao menos
Terei um final para dar-te:
Amar-te...

E a minha história em parte
Contar-se-á junto a tua
Nós dois unidos, sob a lua,
Desejo ao menos, amar-te.

Quem pode desfazer o amor?
A dor.
Quem é capaz de guardar segredo?
O medo.
Quem entre vivos é mais forte?
A morte.

Por isso apelarei para a sorte
No lugar certo, na certa hora,
Mandarei para sempre embora
A dor, o medo, a morte.

Talvez um dia então se acabe,
Quem sabe.
Resta apenas viver o momento.
O vento
Levará para longe o sonho
Tristonho,

E em meio ao pesadelo medonho
Nada será como antes,
Pois virá segredar aos amantes
Quem sabe o vento tristonho.
 
POEMA EM CONSTRUÇÃO

ENGANO

 
Eu achava que podia conquistar o teu amor na primeira vez,
daí o meu empenho calculado, embora ousado e sereno.
Eu achava que podia te prender eternamente
e desfrutar do teu corpo sempre que o desejo aparecesse.

Eu achava que um simples estalar de dedos
pudesse transformar em riso o teu pranto,
e para sempre navegaríamos em um rio mágico
cujas águas jamais seriam tisnadas.

Mas quem detém a chave de todas as verdades,
Quem pode dizer-se soberano, supremo, absoluto,
Quem pode medir o tamanho de uma paixão,

Se de tudo a esse amor me vejo aprisionado,
a cada momento o roteiro se altera como as nuvens
e vejo alegre e atônito que eu é que fui o conquistado?
 
ENGANO

SOLEDADE

 
Estou sozinho no meio da noite,
Nem o vento me faz companhia.
O último cigarro jaz em cinzas;
Levou consigo o sabor de um beijo.

Estou solitário no meio da noite.
Até as lembranças me abandonaram.
Os cães cessaram o latido,
A chuva já não baila no telhado.

Solitária é a noite, diz uma canção,
Quando alguém recusa uma carícia,
Quando as mãos ficam presas nas algemas
Que um corpo de mulher produz.

Resta então um último apelo
Antes que se fechem todas as portas
E se apaguem todas as luzes,
Às palavras que nunca abandonam seus poetas:

Estou sozinho no meio da noite...
 
SOLEDADE

A ONÇA

 
A ONÇA
 
 
A ONÇA

Exatamente às quatro horas e três minutos da tarde ela apareceu na minha rua. Ninguém sabe de onde nem como, mas estava lá, com sua pele amarelada, coberta de manchas negras, agachada, preparada para saltar sobre o primeiro que ousasse violar seu espaço. Foi um corre-corre tremendo. As mulheres trancaram as portas, os homens se trancaram nos carros, os meninos subiram nas árvores sem saber que os felinos são excelentes trepadores.
― Chamem os bombeiros! Alguém gritou.
― Não adianta! Vão pensar que é um trote! Gritaram do outro lado.
Ouvindo a lufa-lufa, a zuadeira, a gritaria, eu abandonei o computador e corri para o portão. Estava perto da minha casa a bicha. Em princípio eu quis correr de volta, mas o olhar da onça parecia uma extensão de suas garras e fiquei preso ao chão, tremendo como o chocalho de uma cascavel. Notei que a cauda dela começou a pendular lentamente como um sinal de reconhecimento. Uma verdade espantosa se revelou abruptamente: A onça me conhecia.
Sem tirar o olhar do meu ela se firmou nas quatro patas e avançou na minha direção. O muro baixo não seria obstáculo para ela. Nessa altura a rua estava silenciosa, as pessoas se convenceram que os bombeiros não viriam e se deram aos seus afazeres. Os meninos desceram das árvores e voltaram a jogar bola, os homens voltaram a jogar dominó e as mulheres tornaram a falar da vida alheia. A fera emitiu um rugido rouco. Aos meus ouvidos pareciam palavras. Mais concentrado entendi o que a onça dizia:
―Vem comigo! Vem comigo!
―Aturdido, me lembrei do delírio de Brás Cubas, que no montado em um hipopótamo faz uma longa viagem. Bem mais calmo, percebi que o grande felino não oferecia perigo e perguntei-lhe:
―Queres me levar também à origem dos séculos?
―Não, respondeu a onça lambendo o focinho, vou levá-lo há um tempo mais curto, à origem da sua vida.
―E se eu não quiser ir? Minha origem não tem nada de interessante, a não ser o fato de haver nascido no ano em que o Brasil perdeu a copa do mundo de futebol.
―Nesse caso inverteremos a rumo, levá-lo-ei ao fim dos seus dias, à sua morte. Você escolhe.
Como Brás Cubas, fechei os olhos e deixei-me ir à aventura. Sentindo o vento bater-me o rosto abri os olhos e vi que o animal galopava sobre as nuvens e cada vez mais rápido. Lá embaixo os anos desfilavam comprimidos, de trás pra frente, as casas, as edifícios, as construções se transformando em vastas planícies, muitos rios surgindo como fios de prata espalhados em um imenso tapete verde. Instintivamente, levei as mãos ao bolso à procura do meu celular para verificar se meus cabelos estavam voltando à cor antiga. Estavam do mesmo jeito. A onça percebendo minha preocupação explicou:
― O passado só tem sentido com a visão do presente.
Por um momento pensei que cavalgávamos em círculos, mas percebi que entramos em um túnel que se tornava cada vez mais luminoso à medida que nos aproximávamos do fim. Em milionésimas frações de segundo minha vida foi se derramando pelas paredes do túnel em quadros com imagens pretas e brancas como fotos de um álbum antigo. Meu professor de matemática do ginasial passou correndo desesperado atrás de um ponto abstrato e o homem que me ensinou a cantar girava uma manivela cuja haste provinha de um cérebro enferrujado. Todos os meus amigos formaram uma longa fila para facilitar a minha memória. Todas as mulheres que dormiram comigo exibiam seus nomes na testa para que eu não me esquecesse de nenhuma delas. Os anos adultos se foram e a minha primeira namorada surgiu por trás de um galho coberto de flores. Senti um forte desejo de saltar da onça e ir ao encontro dela que contemplava as estrelas sem, no entanto me perceber, mas o animal me alertou:
―Não seja bobo! Ela não o reconhecerá.
―Mas então eu vou me encontrar nesta viagem? Perguntei cada vez mais alucinado e confuso, apesar da excitação.
―Já recuamos bastante, portanto é hora de explicar o motivo da nossa aventura. Todos um dia fazem a mesma coisa. Todos voltam no tempo em busca de algo que imaginam ter perdido ou na tentativa de refazer o destino para dar sentido à sua existência. Todos sem exceção.
―Já ouvi falar nisso, e é quando estamos perto de morrer. Isto quer dizer que chegou a minha hora? Perguntei atormentado.
―Não fui encarregada de falar mais do que devia meu amigo. Sei apenas que minha missão é levá-lo de volta no tempo para que se cumpra o que está determinado: a terra não consome um coração perturbado. Os que não fazem esta viagem depois de mortos não são devorados pelos germes da terra e se tornam zumbis que se alimentam das lembranças alheias.
Estremeci com a idéia de permanecer vagando no mundo devorando as lembranças dos outros. Os anos da adolescência chegaram coloridos, porém, a figura de minha mãe cantando debaixo do ingazeiro enquanto lavava roupa me fez chegar às lágrimas. Quando minha companheira de viagem assentou as patas no quintal da casa de minha avó, descobri a peça do quebra-cabeça que faltava para esclarecer a minha incrível aventura. Vi meu pai chorando, desesperado, contido por vários homens, pois queria segurar o contador de energia elétrica a fim de cometer suicídio. Desci da onça e permaneci olhando a cena que se repetia indefinidamente. Olhei para o animal e sua pata apontou para o terraço da casa de minha avó. Segui em frente até a porta do quarto onde minha mãe dormia. Encontrei-a chorando. Tinha o corpo de uma menininha nos braços. Ela me olhou e falou comovida:
― Ela está morta. Seu pai deixou o bocal da luz em cima da mesa. Ela enfiou o dedinho e caiu eletrocutada. Ele ainda puxou a língua dela, mas não teve jeito. Achando-se culpado quer dar fim à vida, por isso os homens o seguram.
― Então foi por isso que ele começou a beber?
Fiz a pergunta, mas logo me lembrei que me referia ao futuro. Mesmo assim minha mãe respondeu:
― Seu pai sempre bebeu. Quando casei eu já sabia, afinal ele foi criado por uma irmã que o tirou da mãe alcoólatra. Não o culpe pela bebida.
Olhei então para o lugar onde os homens seguravam meu pai. Uma mulher baixinha com um lenço vermelho na cabeça esfregou um chumaço de algodão embebido em éter e meu pai desmaiou.
― Seu pai vai acordar bem, disse ela sem olhar para mim, agora volte para o seu tempo. Você já tem as lembranças que lhe foram roubadas. Já sabe o que fazer.
A onça deixou-me em frente ao portão de casa, lambeu os beiços e saltou na escuridão da noite.
 
A ONÇA

ELA NÃO SABE

 
Ela não sabe da missa um terço,
Nem imagina o estrago
Quando me recusa um beijo
Ela não sabe
O tamanho do meu desejo
Ela não sabe nada do meu amor.

Ela não vê meu vulto nas madrugadas
Escalando estrelas, surfando nos ventos,
Arranhando as paredes com unhas de prata
E beijando o chão onde ela pisa.
Ela não vê as minhas lágrimas noturnas
Escorrendo pelo ladrilho do quarto,
Pérolas solitárias engolidas pela noite.

Ela não percebe os meus volteios
A minha palavra doida
O meu gesto bobo
Meu riso triste
Ela não escuta o som do meu gemido
Navegando nos lençóis da cama
Nem percebe o tremor dos meus pés
Solicitando carícias atropeladas.

Do meu corpo aquecido um vampiro se solta,
Manada de tigres avançam nos corredores,
Um tropel de cascos atropela o leito
E ela permanece quieta, no seu casulo de ferro.
De que adianta o som da flauta?
De que serve a madrugada sem a magia de um orgasmo?

De que serve o meu poema
Se ela não sabe.
 
ELA NÃO SABE

ANTECIPAÇÃO

 
Antecipo a minha morte
Antes do teu último sorriso.
Pois não quero murchar
Como a flor que ornamenta um morto.

Não quero ouvir o grito de minhalma
Sufocando-me nas madrugadas.
Não quero esbarrar com o teu vulto
Entre as paredes frias do apartamento vazio.

Antecipo a minha morte
Antes que meus dentes desbotem
E eu não possa mais
Calçar os meus sapatos.

Antes que o som da coruja anuncie
Uma noite de chuva,
E a minha mão não consiga mais
Desenhar desejos sobre tua pele.

Não quero morrer de saudade,
Nem pretendo disputar com as crianças
Seus brinquedos.

Antecipo a minha morte
Antes que a luz do sol desapareça,
Antes que meus amigos me abandonem,
Antes que a vida me esqueça.
 
ANTECIPAÇÃO

ONDE ANDA O AMOR

 
Saí a procurar o amor
Mas antes vesti a minha armadura,
Pus o meu elmo na cabeça
E a espada na cintura.
Dispensei o meu ginete
Pois queria caminhar
Pelas sendas mais profundas
Sem ter de me aperrear.

Mal pus os pés na rua
Chamaram-me de insano,
Outros até que aplaudiram
O meu gesto tão humano.
Segui então o caminho
Que seguem todos amantes
Mas como estava sozinho
Não pude ir muito adiante.

Para encontrar o amor
Não precisa armadura
Disse uma voz de menino
Vindo de uma sepultura
Olhei em volta então vi
Debaixo de uma flor
Uma placa que dizia
Aqui jaz o amor.

ONDE ANDA O AMOR
 
ONDE ANDA O AMOR

QUEIXA

 
Duas vidas
Duas almas
Em transe
Corpos suados
Lençóis derramados
Camas repartidas
Noites indormidas
Desejo frustrado
Porque insistir?
Duas flores
Uma morrendo
Outra querendo
Livre viver
Com-puta-dor
Retiro cavalo
Chuva atroz
Silêncio profundo
Droga de mundo
Droga de nós
 
QUEIXA

DESEJO

 
A quem devo explicar minha conduta?
Quem comigo foi à luta?
Quem bebeu comigo o cálice manchado
De saliva doce de uma prostituta?

Quem pode desfazer o caminho do vento?
Quem é capaz de chorar na hora de um orgasmo?
Talvez até possam cantar comigo
Uma canção de saudade sem muito espasmo,

Entretanto a madrugada é minha testemunha
De que o meu poema saiu de minhas entranhas
Revoltado com maldades tamanhas

Ah! Pudera abrir-te a cova escura
Derramar de vez com tal loucura
Esta lava incandescente que entre nós se punha.
 
DESEJO

CAÇADA

 
Uma vasta planície se estende diante dos meus olhos
No horizonte as montanhas se diluem nas nuvens
Grito, e escuto o eco anunciando a minha solidão
Embora eu veja muitos homens caminhando em grupos


Estou só
Irremediavelmente só
Terrivelmente só
Felizmente só
Inútil contar com os cães
Ou com os guardas das estradas.

Ainda pouco um raio de sol criou reflexos numa pedra
E a minha alma farejou uma emoção trazida pelo vento
Minhas mãos como garras
Fixaram-se na pele de minhas lembranças
Fonte perene do alimento que nutre meu ser

Caminho contra o vento
Para não espantar minha presa
Mesmo assim não sacio a minha fome
Porque além dos montes a planície continua

Crescem as árvores ao meu redor
E logo a floresta engolirá a luz
Os lobos e os chacais deverão surgir
E serei apenas uma folha seca levada pelo vento


Terrivelmente só
Felizmente só
Para poder ouvir a Terra gozar
Excitada pelo pó da minha carne
 
CAÇADA

ACALANTO

 
Você não viu a noite escura nem as feras por trás das árvores,
Porque eu roubei as estrelas do céu para iluminar o seu mundo.
Você não sentiu o gosto amargo de uma despedida precoce
Porque eu estendi um lençol de sonhos sobre a sua cama.

Você não ouviu o canto encantado das sereias noturnas
Porque eu fechei os seus ouvidos com a cera de meus beijos
Enquanto você dormia, eu enfrentava dragões e tempestades
Enquanto você crescia, eu lapidava os paralelepípedos da sua rua.

Você não sentiu o frio cortante que vem com a força de um Siroco
Porque eu aqueci as madrugadas com o fogo de meus poemas.
Eu não queria lembrar os momentos que deixei cair uma chuva de gelo
Para quebrar a telha que impedia meus lábios de dizer: te amo.

Hoje você enfrenta os lobos da noite e dorme sem medo do escuro
Crescida, ávida, vivida, descobre que o sol sempre se levanta
Mesmo que os dragões e os lobos ainda estejam por trás das árvores
Mesmo que minha mão já não consiga mais erguer paliçadas poéticas.
 
ACALANTO