Poemas, frases e mensagens de flavio silver

Seleção dos poemas, frases e mensagens mais populares de flavio silver

sou de barcelos, componho cantigas para o vento.
leio livros para matar a fome.
o tempo anda em divida para comigo.
sou uma mistura de todas as cores. a minha voz é um ponto de silencio.

metafóricamente vos digo: fodei-vos!

 
se eu fosse um objecto seria com certeza, e sem margens para a dúvida, uma escova de dentes. não que eu sonhe com escovas de dentes ou que tenha prazer em olhá-las no seu mais fundo sentido de vida. as escovas de dentes, e se esticar o pensamento para vias-lácteas, pode ser de facto um objecto de prazer.
mas não é isso que me faria mascarar num destes dias de escova dos dentes.

mas se me perguntarem por quê, a minha resposta é como perguntar a um doente de alzheimer onde mora. quem? como? eu disse isso?
no fundo, e desculpe-me este aparato introdutório, a escova de dentes é uma metáfora. ou seja, todos de nós queriamos ser outra coisa, nem que fosse por um dia, uma hora, um minuto.

tenho um amigo que gostaria de ser defunto por duas horas, mas um defunto vivo.
seria como ensaiar a sua morte, saber quem vai chorar quem vai fazer de conta que, se os seus amigos da claque do boavista vieram ou é só bluff quando dizem que quando ele morrer prometem ir todos axadrezados de preto e branco.
acrescenta: quando estamos no caixão o silêncio é genuino, ainda que seja corrompido por alguém que chora no acto de nos beijar a face esticada.

também porque nunca vestiu fato completo e só nessa circunstância deixará que um costureiro lhe tire as medidas entre-pernas. o meu amigo é um inventor, e eu, por falta de tempo, reconstruo a realidade.

e se pudesse eu esta noite ser um elefante iluminado? ou um curandeiro em estado possuido? ou...esqueça! você deve pensar que eu quero brincar aos carnavais! todas as máscaras são possíveis ou impossíveis de se ver o fundo?

estudei freud ao sol da praia e quase que juro que todo o cenário em minha volta: banhistas, mar, areia, vento, crianças admirando os praticantes de pára-pente no ar, tudo isto, uma fotografia. como que um tempo parado, sem recursos de david cooperfield, apenas o livro das interpretações dos sonhos passava as suas páginas sem necessário o uso dos meus dedos, que por sinal esfriavam a cada capítulo novo.

quem não sonha vai temer um dia, alguém me disse assim que fechei os olhos para sossegar um pouco.

sonhar pode ser até um pequena-grande brincadeira dos deuses,
que por nos acharem palermas,
oferecem-nos,
sem que ninguém se aperceba,
pequenas gotas de sonho para juntarmos ao café da manhã.

e perguntais vós, acrósticos deste mundo, e eu que não tomo nem gosto de café? repito: metáfora! já ouviu dizer? claro que sim, não o considero assim tão alheio, você está aqui nesta página, não por obrigação mas por conselho de algum amigo seu.

o meu destino está reservado, não vá ele falhar de repente o seu stock.
por isso adio a minha sorte e o meu azar por melhores dias. para já, neutro.

construo imagens sobre imagens tal pintor que não tem dinheiro para comprar telas,
e que depois da obra feita,
e de se masturbar perante ela,
sobre ela,
volta ao branco inicial.

a criação dos homens partiu de uma ideia, uma ideia base que foi evoluindo e melhorada através dos tempos. os actuais retocam a geração anterior e assim sucessivamente. eu era um cavalo livre pelo campo. disto tenho a certeza.

uma dúvida: a certeza pode ser quase? eu cavalo, virgem de nunca ser montado, a galope pelas ilhas do fogo, crina escangalhada, patas com cascos. ou patas com rodas? ainda que sim, eu seria cavalo, pois parte do meu corpo e pensamento era uma carne insondável.

ao meteram-me num curral fizeram-me odiar as coisas, malogrado, a ter prazer do escuro. o cavalo que era o homem que sou. fosse eu em noites de nenhum prazer um pescador de deus.

ter terra e mar para descobrir-me-te. pago à fiança com promessas supra-imaginárias.
ter um harém de flores e plantas paras as minhas ofertas de marroquinarias.

ó realidade única, úrica e imprecisa, aparece à cena, mas não tragas as pistolas carregadas, só o pensamento. vou partir e não sei quando chego. mas, antes disso, posso ser eu mesmo neste momento? posso? então, metafóricamente vos digo: fodei-vos!
 
metafóricamente vos digo: fodei-vos!

cagar é viver!

 
Só uma coisa se compara aos prazeres da cama: que é a sanita. venham doutorados, dramaturgos ou psicadélicos dizerem que não, mas, ó meus amigos, a sanita, o acto de sanitar, é, e aqui afirmo com convicção poética, um culto à humanidade! bem haja o seu inventor!

sei que não acrescento nada de novo, pois toda a gente sabe que heinsten descobriu a fórmula da teoria da relatividade num momento alto em que puxava a rectaguarda com uma ferocidade medonha, onde no seu pico máximo, gritou: e=mc, que, depois de ficar mais solto, aliviado o trânsito intestinal, suspirou: ao quadrado! e desta forma teve a sua eureka: e=mc ao quadrado.

o senhor kafka, segundo notícias do sanatório, escreveu o Processo e a Metamorfose comodamente alapado na sanita, sem se preocupar com quem estivesse a seguir.

não se surpeenda com estas revelações, eu próprio estou a escrever este texto com as naldegas numa retrete branquinha, enquanto espero pacientemente de fazer a minha vida. aliás, e desculpe o meu exagerado presuncionismo, pergunto: quem é que nunca leu uma página de livro, revista, carta de amor ou enviou mensagens pelo telemóvel? quem é que nunca se sentou com o portátil nas coxas enquanto obra?

é um prazer, você sabe que sim, a gente ali, em módicos pensamentos ancestrais, num auto-conhecimento, deitando por fora toda a tristeza, ora diga lá se não é. mais: cagar é como o sexo: para bom funcionamento do corpo e alma é preciso quase um ritmo diário, um reloginho interno que, se falha por dois ou três dias, ah pois é, vai a nossa valentia para o tanas, e ainda por cima sujeitos a ser supositoriados.

aliás, esse equilíbrio é tão importante que, se houver greve em uma das partes, o nosso pensamento foge-nos para guerras frias.
saibam desde já que discurso de político também ele é feito dentro desta magia.

nossos olhos viram para dentro, há um arrepio de pele, uma força cósmica nos queixos e pescoço quando puxamos por ele, o tal, que começa em ca passa por ga e acaba em lhão.

meus amigos, este texto pode não ter poesia necessária, mas uma coisa vos digo: cagar é viver! e não se sensibilize, nem feche os olhos por ler o que leu, pois a vida termina no dia em que a tripa der um nó. dirão vocês que sou um desavergonhado, que a minha literatura é feita de esterco. enganam-se aqueles que pensam que sim, já que a maior parte dos profetas antigos foram altamente iluminados antes e depois do tal acto que vos venho falando.

é certo que a espiritualidade aumenta, a nossa comunhão com as questões universais, idem aspas, a nossa relação com a literatura é um caminho de descoberta. vejamos, eu próprio descobri, por estes dias, no frescor da minha casa-de-banho, margarida rebelo pinto, o que me deu um enorme prazer, pois agora sei - e recomendo - que há géneros literários especializados em casa-de-banho. a TV7+ também tem boas crónicas para o efeito. a revista Maria, já não, pois tem um formato muito pequeno e as folhas têm uma textura que...sinceramente...seca os dedos.

poderemos largar todos os vícios, negar os prazeres da amante, deixar de dar banho ao cão, mas, meus senhores, por mais bons costumes que tenhais, acabarais sempre numa retrete e, na maldita hora em que fizermos por nós abaixo, lá se vai o nosso Ser, a nossa metade, por que, enquanto tivermos forças para puxar, o nosso sorriso é de oiro.

nunca se esqueça: cagar é viver! e, quem diz que a vida é assim ou assado, não sabe o que diz, por que, como diz e bem o meu amigo poeta laureans: “a vida é a única merda que vale a pena cheirar”.
 
cagar é viver!

do sonho à poesia

 
e amava mesmo nas horas de sono
e havia de ter uma flauta que soe com o vento
para ter a boca livre para beijar

cantava o amor como se fosse uma Busca
daquilo que reluz sempre lá mais para diante

ainda que lhe doa os passos, o que ele quer num sonho,
é que haja muita terra para caminhar

:para alguém que me faz ser alguém
 
do sonho à poesia

sou maluco, sim senhor

 
Sim senhor, sou maluco, com visto carimbando pela associação de malucos do norte.
Ó, veja aqui, esta minha foto no cartão, veja lá se não sou eu? Para que saiba, sou maluco desde mil novecentos e noventa e quatro, ano em que descobri a bolinha de ping-pong amarela.
Desde daí, nunca mais parei de jogar com a bolinha contra as paredes dos edifícios públicos.

Sou maluco, com vários campeonatos ganhos, portador de medalhas ao peito para quem duvidar. Estudei muito para ser maluco, ajudei pessoas normais a se tornarem perfeitos malucos, tenho o orgulho de, em vinte anos de carreira, nunca usar meias da mesma cor em cada pé, nunca entrar em casa pela mesma janela.

Claro que nesta caminhada há muitos invejosos, gente normal que quer ser como eu, mas coitados, coitaditos, falta-lhes uma boca para engolir insectos e cuspi-los vivos. Como eu fiz certo dia, quando numa demonstração de desafogo mental, lá em frente ao juiz para que, antes de bater o martelo na mesa, dissesse: este gajo é maluco!

Ser-se maluco hoje em dia é arriscado, dá dor de cabeça, investe-se energias, já que, até os normais estão fazendo coisas incomuns e, maluco que se preze, tem de variar, fazer o que os outros não fazem, subir ao coqueiro mais alto, fazer enormes círculos com o xixi, logo, a imaginação tem de estar sempre em alta rodagem até fazer pião no pensamento veloz.

Só tenho a infelicidade de não ser um maluco por natureza, tive de aprender com os mais velhos, participando em colóquios, passar fins-de-semana em acampamentos com malucos mais experientes, trocar a minha religião por uma seita de malucos, afiando lápis nas orelhas, escrevendo poesia porno-popular.

Se eu não fosse maluco, a minha vida seria tão monótona, mas tão monótona, que o meu sangue reclamaria, os meus olhos acabariam por se tornarem ridículos ao verem sempre esta realidade tão carente e tão térrea.

Sou maluco sim senhor, já falei deste assunto com duas borboletas que me confirmaram. E vocês sabem que as borboletas não mentem. Maluco que é maluco corre atrás de um sonho sem pensar em desistir a meio. Maluco vai em frente, um pouco como a galinha, acreditado que, ao correr, o mundo gira. O meu sonho é casar com uma maluca e ter filhos maluquinhos.
Se houver alguma por aí que deixe recado por debaixo da porta que, assim que voltar do planeta Malaico, onde estou fazendo uma pós-paranóiquice, responderei.

Recordo com alegria o dia em que o médico me passou o atestado de doideira dizendo que o melhor era eu afastar-me da civilização.
Dei-lhe um beijo na face e corri atrás de mim para contar a novidade. Desde esse dia, deixei o trabalho, ganho uma pequena reforma e sou maluco a tempo inteiro. Assim sendo, fico mais por casa a roer as unhas dos sapatos e a envernizar as folhas das plantas.

Eu sei que você gostaria de ser como eu, vá, confesse, gostava ou não gostava de sair à rua sem aquela capa de mentira?
Mandar para o tanas quem tiver de mandar, ter um caso de amor com uma boneca de porcelana, ir às compras com o seu peixe de estimação, e os dois a carregar o cesto das compras, cada um com a sua asa.
Impressionar a gente culta com o tamanho dos seus olhos arregalados e boca meia de lado, dar um festival em como se dança no meio da rua sem ter música a tocar.

Está pensando o quê, que não sei distinguir a batata do escaravelho, que falo as coisas por falar? Acha que sou o quê, pirado da cabeça, fusíveis a menos, que passo a vida a falar com as pedrinhas, ou que não sei quantos dedos tenho numa mão? Vá chamar maluco à sua tia, ouviu, que eu não o conheço de lado nenhum, seu normalzinho!
 
sou maluco, sim senhor

eu e a minha máquina de lavar

 
Caríssimos leitores, sejam bem-vindos a mais uma rúbrica em que o autor, após queda ao experimentar o efeito dos saltos altos, deu de queixos na calçada portuguesa, voilá, por sorte, nenhum senhor da conservação do património estava a passar no momento, porque se não...

Mas nem tudo o tombo levou.
Nesse dia fiquei a conhecer o senhor Ernesto, exemplo de como contornar obstáculos sem ir à volta, ex-campeão regional de lançamento de cuspo, nos idos anos oitenta, com o record que ainda hoje se mantém, 35,17 metros de distância. Dizia com saudade e um choro miudinho, enquanto, deliciado, me exibia o seu cartão de praticante, que infelizmente a vida tem destas coisas, foi forçado a largar a modalidade desde que o vinho encareceu e, ainda para mais o tipo da adega que lhe patrocinava, às prestações, deu o badagaio, que nem vale a pena falar mais nisso, porque passado é passado.

Agora é uma pessoa feliz, diz-me, com a cramalheira a fugir para tons de beije sempre que sorri. E eu tento ripostar com sorriso da mesma envergadura, mas fico quilómetros aquém.
O senhor Ernesto, tem uma particularidade abismal, mora numa máquina de lavar roupa há cerca de ano e meio e recorda que os anos anteriores não lhe foram de todo favoráveis até porque corria na barra do tribunal o processo de separação e a custódia dos seus sete filhos e outros tantos por perfilhar.

- Agora vivo tranquilamente, senhor Silver, na minha máquina de lavar, e ninguém me incomoda! – Diz o homem sem querer com isso provocar alguma inveja.

- Mas ó senhor Ernesto, a adaptação devia ter custado um pouco, não?, principalmente para os costados – Perguntei-lhe.

- Quando entrei pela primeira vez para a minha nova moradia, sim. Não sabia onde é que iria pôr uma terrina da cristal D’arque que veio junto no enxuval ou, quando quero fumar um cigarrito, tenho de sair da máquina para não deixar cheiro na roupa.

- Mas você não tem o sonho de morar numa...numa...bem, você sabe.

- Claro que sim! o meu sonho é...como lhe dizer sem denunciar a minha timidez, não repare, sou assim, foi desde que conheci uma mulher, bonita como os raios de sol pela manhã, e, após falarmos disto, falarmos daquilo, os afectos a correr-nos nas veias, estamos a pensar em nos casar, juntar os ossos e as carnes, e como deve calcular, precisamos de mais espaço para unir as nossas vidas, os nossos sonhos, que temos vindo a batalhar, por isso uma máquina de lavar de 2 por 3, com um bom tambor de rotação, a baloiçar devagarinho, para os dias que custa adormecer, era o melhor que me podia acontecer. E se possível com um cantinho para a criança que vai nascer, e aí ela poder brincar à vontade.

- Não compreendo, mas isso não será no mínimo...apertado!

- Nada disso, tenho o projecto na cabeça, se tudo correr bem no dia 27 de Maio estarei eu e a minha Mélinha na nossa nova máquina de lavar, a contar o dinheiro das prendas antes de estrearmos o colchão ortopédico, que só Deus sabe o quanto lutei em tribunal pela custódia dele.

Continuou: na altura em que eu era atleta de lançamento de cuspo, estava em alta, e conheci muita gente importante, mexia-me bem no meio, foi a partir desses meus conhecimentos que, com uma cunha (chegou-se bem perto do meu ouvido, “mas não diga a ninguém”) obtive licença para colocar a máquina de lavar no alto de um pinheiro, situado num baldio da Panasqueira.

- Sabe, Silver, estou muito contente, vivo os melhores dias da minha vida!

Depois, um silêncio nostálgico, um poisar de olhos pelas varandas, e, como o vento nada trazia nada levava, despedimo-nos com um sabor a chocolate estragado, mas, antes disso, perguntou-me:

- E você, senhor Silver, como vai a sua vida?

Hesitei, trinquei o lábio de baixo para ter tempo de pensar, no curso de direito que tenho para acabar, depois estagiar no chupista do advogado, na obsessão que tenho pelas dietas, separar as gordurinhas, as ameaças de corte de luz, lembrei a bosta que foi quando apanhei Nita em flagra a gritar golo do Porto, a felicidade a ir pelo saneamento, pus-lhe a mão no ombro (entrou a música do Titanic) e perguntei-lhe: - que máquina de lavar me recomenda?
 
eu e a minha máquina de lavar

Aos Mundopoetas

 
Meus queridos e amados leitores
monarcas e republicanos
protestantes e católicos romanos
senhor canalizador que no outro dia esteve lá em casa a consertar os meus livros editados
homens e mulheres dentro e fora de tempo
crianças no jardim das minhas estrofes
políticos sem sexo e caganeira.

Louvados sejam os meus críticos que resistiram à dor da minha dor
bibliotecários que não sabem em que estante me hão-de meter
senhora da loja que me baixou a baínha das calças velhas e assim poder continuar a usá-las.

Joaquim, obrigado pelo café do outro dia
pedro, que cigarro era aquele que me deste a provar, pá?
pai, amanhã falámos
mãe, o peixe estava bom
irmãos, guardem pelo menos o meu nome
isabella, desmarca a consulta
benfica, há muito que espero alegrias vossas!
doutor, algo me diz que o meu sangue está envenenado, ora confirme aí, por favor.

Cidade minha, qual é a tua?
ó pescador, que vai ser da tua vida quando os peixes voarem?
não digas nada, o futuro foi ontem.
ó índio, cede-me aí o teu cachimbo.
e se eu plantar os pés na terra, irei mais alto?

Meus queridos e desamados profetas
pensadores indecentes como eu
meu deus, desculpa aquilo do outro dia.
o meu país só chora, por que será?
digam-me na cara quantos anos afinal tem o mundo!
que raios afinal é um raio?
um dia o touro vai ganhar...
sentem-se à mesa que eu quero-vos dizer.
minto, na verdade não vos quero dizer nada.
niente, como dizem os italianos
apenas que aguardem um pouco nos vossos lugares
nessas poltronas onde a solidão reina com a sua coroa de alfinetes
mas não estranhem se a música tombar
ou se um fio de terramoto vos provocar enjoo
é que, pronto, vou ali cortar o fogo e volto já!
 
Aos Mundopoetas

Carolindeza

 
Sei que o amor é uma espécie de beijo
que apaga os nervos
acende as cidades
trocam-se cometas
e cruzam-se as luzes
imitando Venezas

Sei porque já soube amar correctamente
os pássaros eram lentos
não temiam os oceanos
não havia cores rendidas
sobre o Cavado onde te fiz mulher
e antecipámos o futuro.

Sou o pirata
Dos mil amores
Não tenho espada,
Só uso flores
 
Carolindeza

poema: inspira, expira

 
O que me inspira é a Vida
os coelhos nos seus regressos a casa,
a dona maria a sacudir as passadeiras
os pássaros bocejando visões
as gruas
os automóveis azuis
as árvores a chuva e o milho

Mas mais que gruas que levam homens ao céu
inspira-me as luzes que cegam os mortos
O sol umbilicalmente aos dias
nas marquises
nos frutos
nas formigas a construirem suas pátrias

É você aí desse lado que me inspira
a descobrir que o silêncio é um bosque
a somar à dor de parto com que fico

Depois
expiro a casa que guarda o nome e os ossos dos meus avós
a criança na sua dicotomia de crescimento
este deus hipócrita partido em quatro
mas que eu amo

E se tiver tudo isto tenho amor
tenho Obra
e manjedoura
e Nath King Cole a dar voz às manhãs

Ó mar faz de mim um bonito cadáver!
 
poema: inspira, expira

extracto de psicobiografia e outras complicações

 
neste quarto alugado sinto a pulsação dos prédios, o crescer dos muros para o ceú, as borboletas que não aguentam a distância de um anão. e caem sobre a terra como limões secos e vazios. eu olho e penso que nada existe para lá do chão, que água e fogo são alucinações. são deuses mascarados. ou até mesmo resíduos de paixões. ou pode ser tudo isso numa só jarra que mais tarde beberemos. santa é a minha vontade de renunciar o mundo. de me ferrar enquanto escrevo.

lembro: eu era uma casa assombrada. nela não havia nada. nem pó nem flores nem esqueletos nem nada. talhei nas paredes a minha psicobiografia e vi a extensão do meu grito. escadas que desciam e não se subia, roupas de inverno a esperar que venham corpos. e tomara à minha cabeça ser uma tocha iluminada para entender essas roupas de inverno. como um incrédulo renasci. fundei a minha habitação, os meus monges, as minhas coisas belas e profanas.

nasci num quarto às escuras igual ao interior de um fruto. a minha mãe tinha um ventre bem arquitectado, poderoso como uma transparência e nele percorri cidades inteiras, provei leguminosas e sismei com verdes andorinhas. quando crescer evitarei remédios para a calma, lerei poemas e pronto: um riacho progride na dor da minha encosta, e eis-me: absoluto, tal boi puxando a paisagem para dentro da moldura.
 
extracto de psicobiografia e outras complicações

O PEZÃO

 
Ruizão, 25 anos, conhecido pelo Cospe-fogo, natural de Bragança, um porte atlético que valeria milhões se aceitasse posar nu numa dessas revista de sensação imediata, jogador da bola num clube da segunda que promete um dia quem sabe, se não é esta época, chegar à 1ª liga.

As raparigas, quando a equipa joga em casa, não faltam a um time com seus berreiros de bezerro, na bancada lateral. Ruizão é jogador da frente, marca golos de cabeça e corre que nem bandido no momento em que escuta a sirene da polícia.
O craque só tem um senão: tem um pé que passaria bem por ser a pata de um Tiranossauro-rex.

Calça o 50, apesar do seu 1,75m de altura. Se houvesse muita gente com um pé desse tamanhão, o fabricante de sapatos não ganharia para as despesas do material. A sua popularidade foi aumentando, as contas dos seus golos também, o seu suor nos treinos era bem empregue. Por isso é que arranjou contrato num clube da primeira divisão e a ganhar mais um bocado.

Vestiu a camisola vermelha do Benfica, com o nº 13. Superstição ou não mas calhou-lhe tal número que ninguém o quer. A sua figura passou a ser pública assim como os seus pés de escavadora, como diziam os comentadores televisivos assim que Ruizão pegava na esférico, fintava um, fintava dois e, zás, dentro das malhas da baliza.

Os jornais desportivos dirigiam-se a ele não como o Cospe-fogo mas como o Pezão. As suas chuteiras eram quase especiais e foco de observação das câmeras televisivas que não paravam de lhe apontar na direcção.
O Pezão, inicialmente não ligava a tais bocas foleiras que os adversários lhe mandavam para que ele desmoralizasse ao ponto de perder a pontaria e, desse modo, deixar de ser um perigo para o guarda-redes da baliza contrária.

Só que a conversa era sempre a mesma e, em vez de lhe elogiarem os dotes futebolísticos, as pessoas riam-se da enormidade dos pés do homem.
Começou por ficar psicológicamente desmotivado ao ponto do seu rendimento diminuir cerca de 50%. Facto nunca visto nas últimas épocas. As moças, nas torcidas pelo craque, tinham letras musicais no sentido de lhe lembrar que ele, o Bragantino que foi viver para a capital, tem um pé maior que dois pés normais de uma pessoa normal.

Derivado a esta sucessão de piadas aos pés do jogador, este, farto de ser alvo apetecível de todas as claques de clube, farto de ser apontado como um defeito, fartérrimo de ver o seu nome nas línguas podres das pessoas, deixou a vida de jogador, o seu talento de sucesso, para se dedicar aos animais da quinta, que ele, com o dinheirinho que ia pondo de lado, conseguiu montar negócio rápido sem ajuda de ministérios.

O seu nome foi sendo esquecido, esquecido, até ao esquecimento total das pessoas que poucos se lembram que, se não fosse o nº 13 da época 1993\1994, o Benfica nessa altura não seria campeão. O seu modo de vida pacato deu-lhe azo para casar com uma mulher simples, sem peneiras, e ter à sua volta dois rapazes e uma rapariga.

O negócio foi crescendo, assim como os catraios que ainda há pouco entraram na escola e já andam por aí a fazer disparates. Excepto o Ricardo, de poucas falas mas com uma predestinação para os toques de bola.
Tal pai tal filho.
Até no tamanho do pé. Pelo que se adivinha, o pequeno da forma como está a crescer, terá um pé que pode muito bem ultrapassar as medidas abonadas do seu pai, quem sabe! Certo dia, o filho chegou em casa e disse ao pai:

- Pai, eu quero ser um jogador de futebol como tu foste. Marcar golos e ser um às da bola.

O pai, que sempre teve carinho pelos filhos, que lutou muito para ter o que tem, olhou o filho sem querer desapontar sonhos de ninguém, virou-se para ele com todo o afecto e disse-lhe numa pena como quem desata um fardo pesado:

- Filho, tu não podes ser jogador da bola!

Aí, o garoto respondeu, com a ingenuidade da sua idade:

- Mas porquê, meu pai? O médico disse que se eu atar panos em volta dos pés, como faziam as mulheres chineses, eles pararão de crescer.

O pai interrompe-o, põe-lhe a mão no ombro, e diz-lhe com a erupção do seu sofrimento nas lembranças de quando lhe chamavam o Pezão:

- Não é por causa do teu pé, filho, é por causa...

Não conseguiu dizer o resto. Calaram-se. A noite estava escura e era hora de deitar. O pai, para que ressentimentos não existissem, deu um beijo de boa noite ao filho e, num extenso sorriso, lembrou-lhe para que não se esqueça de lavar os dentes, mas com a escova dos sapatos, já que as normais, ele saberá um dia porquê, não dão que fazer aos dentes dele.
 
O PEZÃO

como fazer um poema s\ perder a ereção?

 
como se faz um poeta (parte dois)

Vinde a mim com coragem, atirai-me toda a vossa cólera,
fome, desgraças, doenças raras e outras negações

Atirem-me para o lado mais negro da vida
e soltem os caninos a sorrir
Atirem-me à cara a Língua Portuguesa,
a gramática inteira, enciclopédias, S. Ciprianos,
e que o poema me saia num vómito
e a minha alma se magnifique com o estrondo!

Ó palavras minhas, como vos hei-de entender
se eu próprio me perdi na origem?
Ó palavras humanas, tão cheias de carne,
como pegar na caneta sem me aterrorizar?

Sempre ouvi dizer que o poeta tem de sofrer
que em cada verso o chão treme e sisma em enlouquecer
por isso abram portas às colmeias quando eu por lá passar!

Fazer um poema como se faz um filho à mulher amada
diante do altar não é pecado; já muitos me vieram contar
...mas a mim falta-me o à-vontade.

A inspiração é um redemoinho sempre ligado à cabeça,
torna-nos loucos,
a ganhar ramagem entre os dentes e os dedos.
Pergunto: como fazer um poema sem perder a erecção?
Como dizer ao mundo que sou poeta se nunca chupei a teta à poesia?

Ó palavras altas, ardentes, tesas, vinde com trinta olhos,
trinta sóis apontados,
tenho o compromisso de terminar este poema
a minha morte é já acolá
E ainda tenho uma estrela para devorar
Preciso de escurecer,
tenho pássaros e peixes algures entre os rins e o coração,
que, se lhes faltar o pasto, ó meu deus,
se lhes faltar o pasto,
ficarei entregue e exposto ao mundo das coisas,
apostando tudo numa última reza.
 
como fazer um poema s\ perder a ereção?

as amizades só fodem um gajo.

 
ao longo da minha vida perdi contactos de amigos que, por acaso, alguns até me davam jeito manter essa amizade ainda, pois, desde que muitos se foram, acabou-se a cerveja à borla e boleias.

o desenrasque é diploma que não posso fazer fé, pois dependo sempre dos materiais que tiver à mão. os sacos de cimento de 50 kg fizeram mazelas em meus ombrinhos.
logo, despedi-me da firme, com uma carta do médico, a diagnosticar-me demência precoce, para me dedicar a chular o estado.

foram dois anos de vida de morcego. muitas noites a jogar à batota e a ser servido por boas mulas. época de lorde, a bem dizer. e de dia, movido a remédios, escrevia umas croniquetas remelosas para o jornal da terra por vinte paus e umas buchas de trigo.

recordo ainda que comecei a engordar feito camionista, tudo à base de ovos e cebolada e, para contrariar esta decisão do meu corpo, dediquei-me a fundo à pratica da masturbação. desporto este que me fez ganhar bons bícips e com eles ganhar um campeonato regional de braço-de-ferro.

a helena tinha rompido comigo por uma merda de nada. uma noite estávamos em epiléctrica dança sexual quando troquei o nome dela por outra. não me perdoou e desopilou para a casa dos pais, levando consigo os meus vinis do manitas de plata. fiquei furioso e, como paga disso, fiz uma sande com os peixinhos dela, que ela tanto amava. quando soube, meteu dois capangas em perseguição contínua, um deles tinha ar de quem gostava de enrabar, e eu, jorge da conceição, como virgem que sou nessa área, tratei de mudar de cidade.

lisboa estava com um ritmo alucinante, as boites cheias, os pedintes enfeitam muitas ruas, há mulheres a venderem-se ao preço da chuva. os mariconços são mais sofisticados do que os do norte, sabem muito de cultura neo-realista. por enquanto nunca me caiu nenhum na sopa. pelo contrário, os meus amigos eram amigas de vários quadrantes sociais, desde empregadas de loja de ferramentas até a bailarinas de varão.

as boémias só produzem um mal, aliás, dois, mal à saúde e à carteira. ainda a receber o fundo de desemprego, ideias não faltavam e, de quando em quando, ia a uma casa de fados para descongestionar.

foi lá que conheci a andreia, divorciada há dois meses, a sofrer como um moranguito, cheia de vontade para arrombar uma braguilha. conversámos muito na primeira noite. ela tinha um porte bem arejado e umas mamas que, segundo a minha fértil imaginação, eram duas bondades. tratei logo de adiantar conversa. ela prestes para falar do novo livro do saramago, mas eu, assim sem mais nem menos, inventei uma dor de barriga, saímos de urgência do local e fomos apanhar ar numa encosta ali ao pé. pelo caminho deu-me uma vontade poética de comê-la, mesmo ali atrás do quiosque, mas mantive-me sereno, a meio pau.
afinal de contas eu sou um leão que sabe esperar.

para dar veracidade à minha dor de barriga, pedi-lhe que esperasse um pouco e fiz de conta que fui fazer atrás de uns bidões de gasolina. isso deu-me tempo para pensar na falta de respostas que o mundo tem para dar aos homens ao mesmo tempo que media o meu entusiasmo.

após esta rapidíssima tertúlia entre eu e o meu alter-ego, chegado à beira dela, convidei-a a conhecer um moinho sitiado em plena praia deserta. ela logo entusiasmou-se, sobretudo quando eu lhe disse que no seu interior ainda havia vestígios de visigodos. embora eu não perceba um caralho disso, disse-lhe isso.

a noite estava num estado fenomenal, diria mais, a noite estava perfeita para dar uma trolitada à luz da lua cheia. penso que, segundo o meu diário mental, será a primeira vez que farei em chão duro. só tenho de ter cuidado é com as aragens.

o meu corpo aquecia como se fosse a gás carbónico, eu só estava concentrado em. e ela sempre na sua meiguice, a olhar para todos os lados a ver se via os tais vestígios que falei, com aquele olharzinho de eucaristia mas que me dava cá um arrepio na costela número sete.

ao fim de dois minutos lá nos sentámos de frente para a lua cheia. eu não me importei, desde que ao fim de outros dois minutos ela tocasse violino aqui nas cordas dos meus pintelhos, está-se bem. no silêncio soube-lhe dizer coisas magnífcas, e na heráldica dos segredos dos amantes, também.

a minha mãozinha, com a prática de outros tempos, lá pousou na coxa dela, senti ali, um querer mais que bem que querer como disse o camões. comecei a subir, a subir, até à luz secreta. ela a contorcer-se mas a participar na borga. apertei-lhe a carne como uma vez vi aquele gajo italiano, peludo, dos filmes porno, a fazer. vocês conhecem.

quase perto de lhe conhecer o quinto império, dei tudo por tudo, passei-lhe a mão de leve na calcinha e, merda! desculpem o palavrão, mas foi aqui que descobri que ela tinha um enchumaço! e por sinal maior do que o meu! desmacarei-a, aliás, desmascarei-o com dois socos de cada lado. ele tirou a peruca e disse-me chamar-se rui!

(mudou o tom de voz, mais à homem)- então mano, não te lembras de mim? sou eu, o rui zincas, do liceu! óculos redondos, nariz de picareta, isso não te diz nada??

- o rui solha? o maricas? aquele que foi caço atrás do ginásio com a mão na massa de dois moçambicanos?

- esse mesmo!

- ei rui, estás...com um óptimo aspecto! dá cá um abraço, há que tempos! ó rui, desculpa lá, essas mamas são mesmo tuas? e esses biquinhos em tom de aveia, como conseguiste? posso...

antes que me atrevesse a comprovar a tenacidade delas, basei, a correr, a correr muito, a querer lá saber de artroses, que só parei em casa, dentro da bacia que faz de banheira, contemplando um sei lá bem o quê.
a partir desse dia cheguei à conclusão que as amizades só fodem um gajo.
 
as amizades só fodem um gajo.

por mais que atire pedras à solidão

 
- Escrevo para dizer que parti embora ainda aqui esteja a redigir esta carta.

É nestes momentos que a música perde o tranquilo das águas e o baterista não acerta uma no prato de choques.
A despedida nunca é um até já. A despedida é uma corda cortada a meio. Por muito que queiramos fica sempre uma marca para que um dedo só sinta essa textura magoada.

Despedimo-nos do mar quando ele está quase a tocar-nos nos pés, dizemos olá à peixeira embora fosse ela a acordar-nos com a sua corneta agarrada ao carrinho de mão. A eternidade é um caso bicudo. Ninguém pode marcar férias para daqui a trinta anos. O senhor jaime está farto. Simplesmente farto. Podia eu transcrever um soneto de saudade de Camões para salientar esse estado de farteza. Não vale a pena desacreditar quem nunca soube dar crédito.

Vamos lá fazer as contas: a sua mulher faleceu de uma coisa ruim algures nos intestinos. O seu filho do meio fora levado por um automóvel. O seu patrão disse-lhe que sim talvez mas que ainda não é certo a permanência no seu posto de trabalho. Tem cinquenta anos de aparência mas na verdade foi há trinta e oito anos que saiu de um ventre.

O tempo quando quer é mestre de erosões. Desgasta por dentro e por fora. Basta ver este homem de perto. Acho incrível a paciência de alguém que assiste desde a plantação de uma àrvore fruteira até ao amadurecimento de um fruto, para depois colhê-lo do chão.

Feitas as contas, o senhor jaime optou pelo lado da partida. Não que vá morar para longe daqui, mas sim que vai para tão longe que nem somos capazes de lá chegar. Apenas com poesia. Mas da boa! Estamos neste pé: o senhor jaime está de malas feitas para a morte e neste preciso momento escreve uma carta que não será carteiro a levá-la ao destinatário. A carta será deixada em cima da mesa até que venham novos moradores e percebam que ali, no espaço que irão dar nova cor, um homem sucumbiu a uma tristeza.

Entre a queda da janela e o enfrascar vinte e muitos comprimidos de uma só vez, decide-se pela primeira escolha. Apesar de não ser tão limpa, pelo menos é mais triunfante nem dá para voltar atrás. Na sua cabeça a contagem decrescente já começou. Falta só alinhar uns parágrafos na carta para que o passo seguinte seja dado rumo ao asfalto de granito.

A morte passa a ser um cálculo matemático com todas as operações somadas na sua mente. A sua herança será o fedor do seu corpo deixado aos bichos. Pelo menos haverá quem lhe dê melhor utilidade, pensa.

Não adiantemos mais na prosa e passemos ao plano da queda. A carta está escrita com palavras que se percebam à primeira. Espreita a rua e vê que depois daquela mãe que trás os filhos ao colo, ele pode-se mandar sem atrapalhar a vida dos outros. Por esta altura já devia de se ter mandado da janela abaixo. Um género de oração sobe-lhe aos olhos por um corredor do seu corpo que ele jurava não existir. Dá mais um tempo à vida. Que é um minuto ou dois para ganhar coragem. Não me responsabilizo se ele cair e não morrer. Não fui eu que fiz a história.

Eu estou aqui na minha varanda que dá de caras com a janela deste homem triste que nunca o vira antes em carne fresca. Eu relato à velocidade da tristeza deste homem que nega qualquer palavra amiga.
Penso que será agora que ele se vai. Pelo menos ele está de pé na sua janela a olhar cá para baixo a ver quando é que ninguém passa. A rua está vazia e uma oportunidade destas é uma vez na vida.

A morte piscou-lhe o olho. Inspira. Expira. O ar sabe-lhe a folhas de laranjeira. Esquisito os aromas que nos saltam do fundo. Está na hora. A velha acolá adiante que se atrase senão cai-lhe em cima.
A morte volta-lhe a sorrir. E o homem, que por mais que atire pedras à solidão, ela chega-se sempre para ele. Inspira. Expira. Doi-lhe a caixa toráxica de tanto ar pegajoso.
Vê o sol na sua extensão: madeixas de uma mulher amada. De novo o sopro de uma voz feminina a chamar-lhe por dentro do sangue.
Mais uma vez, como tantas outras vezes, sentou-se na janela e disse baixinho: hoje não!
 
por mais que atire pedras à solidão

Daqui em diante escreverei aos frutos

 
Se a mão escreve com o tinteiro da alma
Logo prefiro uma escrita azul
Como o leopardo que pari em poema branco

Daqui em diante escreverei frutos
E com os dedos em chamas acenderei as palavras e as mulheres nas ramadas

Se me recolho como o verão se recolhe para ver entrar a chuva
É dia de dizer aos amigos que volto já e apagar distâncias

Se o sol abrisse uma loja em cada esquina a felicidade teria bons preços
E a cada instante cobria-se o precipício com valentia

Escrevo pelas manhãs porque é nas manhãs que a língua acorda para o milagre
E saibam que não há fenómeno no fígado que derreto
quando o azul da tinta se acaba.
 
Daqui em diante escreverei aos frutos

vejam só como eu sou um tipo famoso

 
Desde que os meus amigos e inimigos deram conta que eu era o responsável por estas crónicas amargas e doces os sorrisos não param de aumentar, uns dirigem-se a mim como: olha o senhor dos calhaus!, outros mais sarcásticos do que a minha avó, perguntam-me: não tens aí um calhau para a gente fumar, ó meu? Bem, há de tudo na vida, como não há nada na morte.

Enfim, fazer a rua direita completa sem dar nas vistas é assunto de trinta páginas para um futuro romance.
As pessoas pasmam-se e exclamam: afinal o gajo que escreve aquelas tretas tem cabelo encaracolado! Infelizmente, a fama não me tem dado bons resultados, apenas uns copos de cerveja. E foi o que foi: esta manhã, sol de verão, olhava as montras só por olhar, um indivíduo de meia idade bateu-me nos costados com uma leveza que eu estranhei.

- Bom dia, amigo!

A palavra amigo tem dias que me custa a engolir, mas pronto, lá teve de ser. O seu sorriso dava a sensação de ser um sorriso a pilhas, mas ainda assim retribui: Bom dia!

Depois de uma breve introdução sobre as focas em extinção, de alguns casos de polícia, veio com esta ladaínha:
- Gosto muito de o ler, sabia?! – Continuou – Em minha casa todos o lemos. Só você e o Fernando Mendes!

Hum, fiz de conta que entendi a comparação e, como sei que isto é mesmo assim, agradeci a gentileza com um muito obrigado.

Durante uns dez minutos encheu-me o ego com elogios para cima e para baixo, que como escritor não há nenhum, blá blá blá, que as minhas crónicas terão mérito além fronteiras, etc, etc, qual Saramago qual quê...
Agradeci-lhe a simpatia umas trinta vezes, tinha ali fã, alguém que se preocupa com a pessoa que está por detrás destas palavras. O meu coração vacilou de bons espantos, é um facto. Convidou-me a ir tomar um café ou que quisesse e, como terra-a-terra que sou, aceitei.
Fomos ao café Conforto.
Havia qualquer coisa nos olhos dele que parecia querer falar mais alto do que a boca, o seu sorriso, esse, sempre de roda no ar.

Mais palavras, mais elogios sobre a minha escrita, mais escovadelas, mais umas minis geladinhas, mais semi-fusas no seu português que eu nem catrapiscava uma frase completa.
Até que, o seu sorriso parou. Os seus olhos idem aspas. Falou-me da crise do país com pequenos gritos na voz, na dificuldade que é em atravessar os meses e os dias, o emprego por um fio, a mulher a dar-lhe inúmeros avisos de separação, os filhos e essas coisas todas.

A única psicologia que lhe dava era apenas abanar com a cabeça.
No pico da conversa, veio aquela parte que todos sabemos: sabe como é, a vida de um pobre, isto está duro...se me pudesse emprestar algum, só para organizar a minha vida, quinhentos euricos, não peço mais, que daqui a dois mesitos, se tanto, devolvo-lhe o dinheiro, com juros se preferir, pode acreditar que sou uma pessoa de boas fés, e você, pessoa talentosa, de sensibilidade maior, se me poder desenrascar nesta fase crítica da vida, Deus falará ao seu coração com certeza. Gostei das palavras, um pouco comoventes diga-se de passagem, mas, como lhe dizer que também eu ando num barco desconcertado onde o mínimo descuido, zás, caio ao mar.
Como lhe dizer que isto de escrever para jornais não dá nem sequer para as sardinhas?
Sem círculos na língua, respondi-lhe:

- Vai-me desculpar mas não lhe posso ser útil nesse aspecto.

Foi que nem bomba, nesse cirúrgico momento sentiu-se mesmo a Terra a estremecer, o homem, que de sorriso aberto passou para o registo de sorriso fechado - mas com um canino de fora a brilhar - o cabelo levantou-se como tropas militares e ripostou em greco-romano:

- Vendo melhor as coisas, você não escreve nada! As suas teorias são indigestas e deploráveis. Só um mediocre é que escreveria aquelas coisas banais, tão banais que até faz mal ao fígado!

Mau, nesse momento senti mesmo a terra parar, fiquei a olhar o homem num cálculo à xadrezista, pois tinha em mente uma indecisão: ou saltar-lhe ao focinho ou ignorá-lo. Das duas uma. Virei-me para o céu em pedido de auxílio e perguntei:

- Que faço Senhor?

Para a maior das surpresas, ouvi uma voz a dizer: escolhe a primeira!
Afinal o homem tinha razão: Deus fala ao coração.
 
vejam só como eu sou um tipo famoso

escreve

 
escreve com absurdos

com palavras Bêbedas ou não

com palavras vindas do altar

escreve com ganância

como quem pare a noite

e vem devolver o desejo

a quem o viu nascer

escreve com fogo na voz

e incendeia os lábios

de quem não ousa dizer

escreve como quem ama

a sua própria nudez

e sê inteiramente criança

a falar sem falar

a sonhar toda a noite

em cada asa

está um parapeito

para que olhes

a linha

que não é linha

eu e tu

única pessoa

a olhar de dentro

pela persiana do mundo

vomita de ti o ser mais delirante

despe-te

e escreve nua

porque eu quero um poema nu

somos o que a vida nos trouxe

e o amor perpétuo em cima da cabeça de um anjo mudo

sonha comigo nesta realidade

canta o azul enquanto é verde

cria o rio neste meu deserto

que eu tenho barco e remos

e um sopro para dar na vela

deixo-te neste meu cais peitoral

com voz esmigalhada

escreve o dom de morrer

a certeza que seremos eternamente

um sol em nossas mãos

escreve com loucura sempre em pé

com letras terrivelmente belas

e sorri

como se aprendesses o verbo

e um sonho invadisse a tua garganta

que não é garganta

é o caminho que estou

dá-me um beijo

enquanto escreves

dedicado a C.G.
 
escreve

Mais Próximo do Céu

 
Também os corpos dos homens são feitos de trilhos. caminhos. riachos. sombras. música. flores. também é por dentro dele que nos aventuramos. lançamos a corda para subir. descer. onde as ciências não ousam palpites. enchemos o cântaro com sangue. suor. e lágrimas. e daí lavramos a vinha da felicidade. sabemos também que em cada artéria existe um velhinho com uma palavra a dizer. existe uma magnólia a fazer de sentinela. e mais uma casa aberta ao mistério.porque a terra é um corpo que se estende até ao mar. ou vice-versa. e nela habitamos. acendemos a tocha. e vamos. rumo ao coração dos homens silenciosos. e devagar. muito devagar. acendemos o milagre com os lábios quentes. depois é esperar pelas aves nas ramadas. que a manhã que o foi voltará a ser.
 
Mais Próximo do Céu

Política 7

 
Anuncio aos meus dois ou três leitores, ainda cientes da cabeça, que, a partir deste exacto, preciso e microscópico mo(nu)mento, deixarei de falar de política, aqui e em qualquer lugar deste mundo e do outro. Com isto, pretendo reaver a minha honestidade e os meus valores, se é que alguma vez os tive. Primeiro, porque a política não nos leva a nada, segundo porque a política não nos leva a nada, e terceiro, porque é bom ter alternativas. Discutir política é o mesmo que discutir política. Os iluminados estão todos pregados ao tecto a alumiar salas de estar. Ouça lá, acha mesmo que eu, conhecedor de todas as fórmulas sobre a estupidez, lá ia perder o meu tempinho a escrever sobre política. Só se estivesse interessado em ofender o meu cerebrozinho, que tanto me custou a educá-lo. Os políticos são como os maricas, ainda que, sabendo eles que são mal falados, são sempre uns bem-dispostos, uns curtidos.

Portanto, por isto, por isso, por aquilo, daqui destes dedos que vos escrevem, desta boca com queda para a asneira, jamais ouvirão falar de política. Porque política é uma mulher que anda de boca em boca, logo, deduzo que seja uma das que se vende na beira da estrada por vinte e cinco euros. (Isto, segundo a nova tabela de preços de 2011. Ouvir falar).

Falar de política é simples, basta mastigar dez bolachas Maria, todas ao mesmo tempo. Fazer política é tão útil quanto puxar o autoclismo. Aprender política é como ter aulas de educação sexual, assiste-se mas não se dá assistência.

Sinceramente, já me irrita ouvir falar de política, dramaturgos a fazerem previsões futuras sobre taxas e juros. Prefiro dez mil vezes falar de gajas ou de manequins de saiinha por aqui em montras de pronto a vestir. Um dia apareceu-me um político à paisana na sopa e, antes que uma daquelas disenterias me fizesse apertar as nalgas, não o comi, deixei-o estar, só pelo prazer de o ver a afogar-se.
Política é conversa de macho que não cobre fêmea, só serve para limpar a dentadura, ranho seco no nariz. Portanto, meus ainda leitores, não vou sujar os meus dentífricos para quá quá quá sobre política e suas amantes politiquices. Não vou gastar megabytes de memória só para obesidar argumentos. Embora saiba que, quem fala de política, sabe bem o quanto vale ter um belo filho da punha ou fonha-se na língua.

Político não pensa, pensa que. Político não faz sexo, nem levanta o orçamento. Político não vai à bola, vai à borla. Político é animal sem dentes, para não deixar marcas no pescoço. Político é religioso, tendo como bíblia o manual de instruções do Ikea, para aprender como há-de apertar a rosca. É negociante, vende tangas. Para se fazer política, basta um estar bêbado e outro lúcido. Um amigo meu, disse-me há dias que se ia meter na política. E eu, como bom conselheiro e amante das coisas boas, aconselhei-o antes a meter-se na droga. Assim, que meta o nariz lá na farinha Maizena, em vez de andar a cheirar as nossas vidas.

Já gostei de política, mas enjoei, e à custa disso, apanhei as hemorróidas e uma entorse nas mandíbulas. Na minha opinião, político para ser político havia primeiro de passar por um teste de resistência. Assim de repente só tenho esta ideia: que tal um banho turco com trinta comediantes Senegalenses. Pense nisso.

Começo a criar a ideia que político é omnipresente, pois está em todas, até nos cofres-fortes do banco, ora vejam lá. Político é amante da pesca porque sempre ouviu dizer que mais vale um peixe na mão do que dois a voar.
Político só vai à escola quando é para levantar o pano da placa comemorativa, e sorrir como a sua mãe lhe ensinou. Lá isso não nego, e não me travo a soltar elogio, político é um bom filho da mãe. Também sou de acordo que, se político estivesse em via de extinção, acharia por bem, em prol da humanidade, pegar numa motosserra e cortá-los a meio, para de um fazer dois. Político é sério, mas apenas quando está com prisão de ventre. Também toda a gente sabe que a liberdade de ventre é o que é.

Outro amigo disse-me há dias: o meu filho virou costas à política. E eu, como bom espectador e rei da primavera, aconselhei-o, politicamente falando: já que ele virou, então que forre bem as calças, senão…habilita-se!

Tenho uma dúvida: política é um mal necessário, ou um bem desnecessário? Se souber responder, não responda, fique calado, já disse, fique calado, eu não disse que não quero mais escutar política? Não estou para amar a futilidade, para isso basta-me dois minutos de talk-show no Canal Parlamento. Os políticos são os maiores e conceituados travestis do mundo. Excepto numa condição: mudam de cara mas não mudam de roupa. Eu nunca falei mal de políticos nem de politicuzinhos, porque, falar mal, é só para letrados, e de letrados, gente doida e petulante, estou por aqui.

No fundo, há que ter pena desses tipos que só falam, inflacionam tudo que dizem, porque todo o mundo sabe que política é como a marijuana: “provoca esquecimento, e outras coisas que agora não me lembro”.
 
Política 7

É preciso

 
É preciso poemas em vez de luas
é preciso um cravo na lapela em vez da morte biográfica
é preciso cinco mil reis numa batalha de flores
cinco mil raparigas à espera de serem mães
e outras tantas à espera de serem filhas

É preciso um relógio com um cuco bem atinado
uma eléctrica emoção para nos acordar
um colchão com predicados de amor
um cântaro de fina sabedoria para beber

Uma casa bem ou mal decorada
mas uma casa vinte e quatro horas aberta
e nela me deite de olhos para baixo
e me lembre que o sal grosso não cura feridas

É preciso uma firme roldana a segurar o tempo
este tempo que mal levanta o tampo

Um deus do tamanho da aceitação
um diabo fácil muito fácil de subornar
um abismo para o que pouco nos importa
pois o que importa é inspirar e expirar o poema

É preciso cantar ainda que submersos
é preciso alguém mais do que ninguém
como um pedaço de carne para o estômago
precisamos de poemas à prova de fogo e água
uma nota de vinte para um santo é que não
Não é preciso contribuir para o banquete
para que amanhã haja de novo Sol
porque é a dor dos homens que puxa a claridade aos dias.
 
É preciso

O SEM-ORELHAS

 
É assim porque é. Nasceu assim. Com aquele defeito horrível, cria impressão e nojo para alguns. Nasceu sem orelhas.
Agora imagina uma cabeça sem orelhas, sem onde teres amarrar a haste dos óculos, sem teres aqueles dois pedaços insignificantes de carne, que nas mulheres passam despercebidas porque cobrem-nas com os cabelos longos.

Estás a imaginar este homem, a caminhar pela rua, a ser olhado, a ser comentado, a ser motivo de riso para alguns badamecos.
Diz-me, aproxima-te, gostarias de andar pelas ruas assim, sem orelhas, só com um buraco de cada lado da cabeça, que é o que tem este homem? Olha que eu não. Não ter orelhas é quase como não ter boca para falar.
Se fosse não ter uma mão, sempre dá para disfarçar, metendo o punho da camisola que esconde o toco, dentro do bolso, fazer de conta que tem. Mas na verdade ela não está lá. Mas só tu sabes. Este caso é diferente. Podes colocar um chapéu que toda a gente vai reparar e dizer: olha aquele não tem orelhas.

E quando foste criança estás a ver o filme. Todos os amigos a reinar, a apontar o dedo e tu, a esconderes-te no fim da sala, tão calado que parece que nem ali estás.
Ficas feito anormal a fazer de conta que a vida não é nada contigo. A solidão a dizimar-te por completo. Ficar em casa o mais tempo possível, ter vontade de escarrar no espelho sempre que te vês. Porque és feio. Diferente. Não tens orelhas. Tens um buraco de cada lado na cabeça. E és capaz de chorar por ali. Não sei, nunca vi, estou a supor. Deixa-me supor que sou feliz. Tenho orelhas.

O homem é triste, tenta disfarçar mas é pior. Deixa crescer o cabelo como as mulheres e isso dá-lhe alguma vantagem. Tem dias que menos mal. Quando está vento é pior.
Levanta-se o cabelo e nota-se que não tem orelhas.
Por isso evitas sair de casa quando está vento, não é assim?
Conta-me.
Como é sair à rua e ser olhado de maneira incalculável.
Tanto que te olham que o teu rosto está gasto. Sei que ignoras porque tens uma força vinda de uma mulher que tu amas.
Mas ela não sabe que tu não tens orelhas e por isso ela passa-te bola. Ela pergunta porque é que não cortas o cabelo dos lados e tu mudas a conversa.

No outro dia ela quis te tocar e tu não deixaste. Iria saber logo ali, que tu não tens orelhas.
E podia dizer não, ou dar-lhe uma coisa má no estômago.
O teu medo é que estás a crescer e o cabelo vai começar a cair e depois não há como disfarçar verdadeiramente.
Os buracos vão ficar a apanhar ar, à vista de todos, na boca do mundo.
Serás falado pelo que não tem orelhas. És um caso de silêncio.
Fala.
A tua mãe já cá não está para te pentear como fazia dantes. Tão bem arranjadinho que criava suspeita pois não se notava aquele altinho no cabelo.

O pior foi quando os teus amigos souberam. Ainda que escondesses o não ter orelhas debaixo do cabelo eles sabiam que não tinhas.
E vinham quatro ou cinco amarrar em ti para confirmar.
E viam à força que tinhas um buraco de cada lado. E espreitavam lá para dentro, como se quisessem ver o que há em ti.
E tu choravas por não conseguires te defender. Eles eram quatro ou cinco. Ou talvez sonhasses com isso a noite inteira.
Agora estou confuso. Tens que me dizer.

Tu dizias aos amigos que elas iam crescer.
Foi o que o médico te disse, para te consolar. Depois soubeste que as orelhas não crescem como cresce as unhas e o cabelo.
Depois soubeste que as raparigas não gostam de rapazes que não têm orelhas. Desculpa eu estar sempre a dizer que não tens orelhas.

Não quero com isto te amedrontar. Pior é não ter alma, vai por mim. Agora és grande e estás a ficar careca.
A mulher que tu amas vai partir com certeza. Ela vai saber mais dia, menos dia.
Ou, espera lá, será que ela não sabe mesmo?
Ou será que ela também esconde alguma coisa?

Eis a questão: por muito ou quase nada sejam as dúvidas ou as certezas só o amor é que quebra as grandes muralhas.
 
O SEM-ORELHAS