Poemas, frases e mensagens de MEduarda

Seleção dos poemas, frases e mensagens mais populares de MEduarda

Ela (Condescendência)

 
Ela (Condescendência)
 
Lembro-me do dia que casei e da brancura que com ele veio. Mas era um branco nauseante, pálido, acho eu, palidez de morte dissimulada no vestido nupcial. Era adequado, e ninguém quis ensinar que era um aviso a toda a estupidez juvenil que nos mora no espírito, e como podia eu adivinhá-lo, senão no rescaldo dos corropios sorridentes e das febres de sexta à noite. Hipócritas. Calaram-se todos, para sempre, e fecharam os olhos ao passo para o abismo.

Lembro-me ser Setembro tardio,e o roseiral da minha sogra estava em flor, debaixo de um sol cálido e tenro. As rosas iridiscentes foram cortadas mais tarde nesse dia, para que me acompanhassem capelinha abaixo. Invejei-as. A minha mãe não me ensinara a ser flor. A curvar-me elegantemente perante a mão que recolhe, sedutora, aceitando já o inevitável, o corte umbilical, o cessar da seiva pulsante, o fim. Então cresci agreste.
Mas nesse dia fui flor, ainda assim, a mais bonita, mais ainda do que as que levava, curvando sem saber ao quê. E quando soube era tarde demais.

Vinte anos volvidos. Vinte anos, fugidos desalmadamente, levados com tudo aquilo que julgava o melhor.
E hoje. Hoje, como um outro hoje qualquer, depressa mulher, que és tu o sustento desta casa, tu e o teu emprego das nove às cinco, mais os biscates que fazes: biscoitos, bolos e salgados, rissóis e croquetes, sete euros dúzia e meia.
Mexe-te mulher, anda mulher, a rapariga está quase aí para jantar, deixa lá os lençóis e o ferro, fazes depois que eu deixo, mas não percas tempo mulher, tu e só tu, em todo o teu nome e languidez corporal, deus meu, que seria de nós sem ti.

Eu digo-te. Seríamos outros quaisquer.

Hoje, como outro hoje qualquer que tem vindo a preencher pobremente a existência, atirou-me com essa constatação insípida à cara. Desprovida de - já nem conheço o emprego de ternura - qualquer respeito, pelo amor da tua vida, pela mãe dos teus filhos e avó dos teus netos, pela rapariga de saia travada de cor azul-verde-marinho na estação de São Bento e caracoís ferrugentos à chuva ; nem pelo amor de Deus, e enterrando as mãos espadaúdas nos bolsos, gira a três quartos desenhando as suas costas no horizonte visual, contra a luz baça que nasce da sala.

E sela-se o contrato. Com um beijo breve, que com o passar do tempo adquiriu um sabor acre, duvidoso, envelhecido, áspero. Sela-se a certeza de que para si será sempre desta forma: tu fazes -
- eu descanso, eu que sou doente e parasita e estropiado, vamos lá mulher, outra vez, carrega-me que estou cansado, de ser o pilar desta casa, o abrigo lento de todas as horas, a engrenagem principal, vá lá mulher, outra vez, prometeste em frente ao Senhor e à Santa Maria da Sé que assim o farias, até que que a morte nos separe, até que os meus dias se finem.

Em alturas destas, a memória da minha avó assalta-me o espírito. O seu andar era desalinhado, mas a sua agilidade fazia com que ondulasse dentro das passadas. Nos dias em que dobava as meadas de lã, enrodilhadas, resgatava uma pequena lata laranja-tostado de uma arca antiquíssima em mogno, que existia no seu quarto, e passava-ma para a mão.

Pega cuca, guarda-me esta latinha, que é para não ma tirarem.

A lata continha bolachas, duras, duríssimas, com um leve aroma a limão. Deitava-me escondida no seio fresco e macio dos prados de Coura, a mordiscar limas , como chamava às bolachas, e a desencaminhar carreiros de formigas com pequenos ramos, até que o meu umbigo inchasse de redondez orgulhosa.
Muitas vezes entregava a lata vazia, para receber um olhar de ternura daquela presença tão querida, e um

Mas que chatice, a minha latinha está vazia, quem ta tirou cuca?
Ó vó, eu não sei, adormeci.

Ainda assim, o seu conteúdo era restituído de "roubo" em "roubo", para grande contentamento meu. Sei que não se importava, desde que pudesse ditar a costumeira reprimenda fingida, com um sorriso cuja cor não esforçava por esconder.

Contrariamente às tradições, foi ela quem me conduziu ao magistral altar. E disso sim, lembro vívidamente. No momento em que me deixava entregue, ali, só, no topo da escadaria, apenas me olhou. Tristemente, pareceu-me. Sofridamente. Amorosamente. E disse-me, esticando-se o mais que podia e que as suas pernas, magríssimas, trémulas e corrompidas pela idade, lhe permitiam, em direcção à minha face. Senti-lhe o característico cheiro a sabão azul e carinho. E disse-me:

Se algum dia te perguntarem como se pesa o cansaço, só haverá uma coisa a dizer. Pesa-se em anos.

E retornou lentamente ao seu lugar. Nesse dia não dissera nem mais uma palavra. Uma semana depois, chega a notícia que decidira adormecer indefinidamente. E as suas palvaras ecoaram, como num salão despido.
Nunca as entendera, à medida que perdiam a sua sonoridade.

Hoje, como outro hoje qualquer, de uma vida qualquer, atingi o seu sentido.
Mas deixa lá isso mulher, esses dias já se foram, e não és senão da realidade.
 
Ela (Condescendência)

Ele (Insolência)

 
Ele (Insolência)
 
"(...)took me in your white dress like wind made human(...)
I married you under the roof how warm
the world was how unbroken everything became(...)"

Anis Mojganis, you came into my dream

Do veneno melífluo, expurga-o, o corpo, algures na seara esfumada dos cobertores. Pressinto-o.
Como usa a cantiga nos conflitos bélico-matrimoniais, o filho da puta nesses esquemas, por certo arquitectados unicamente por criaturas do signo de Vénus, sou eu. Não tens vergonha, escumalha da mais fedorenta estirpe, de maltratar a menina, de ousar, sim! ousar! diz-se bem, contrapor a deusa-mãe, aquela que te sustenta com tudo que pode destilar do seu suor, sangue e lágrimas, a toda-poderosa?

Não senhor. Quarenta e seis anos e nem um pingo de culpa. Que se foda, em bom e correcto português.

Quer dizer. Em tempos afagar-lhe-ia os, ainda que hoje parcos em determinados pontos, cabelos; no que interpreta sempre como uma tentativa de domar uma qualquer besta enraivecida.
Subir, subiria, ainda que apostasse esquartejar as plantas nuas dos pés nos estilhaços rombos, resultantes das granadas verbais gastas entretanto.

Que se foda. Com toda a combinatória e probabilidades, dentro de dois dias e meia manhã descerá, com os lábios gretados e purpúreos, a dignidade arrastada como a placenta do filho do meio, semi-expulsa e decomposta, presenteando-me com o olhar canceroso de remorsos recém-descobertos e uma inodora indiferença.
Nada comparado com o olhar primeiro e pré-primaveril, com que do muro caiado de cantos gregorianos e luminosidade etérea, sobre o qual mo lançou, foi meu o ímpeto de saltar não apenas esse, mas outros muros.

Escusado será dizer: a partir daí delineara-se o esquisso das suas níveas mãos, com traços de doura glória coroando as suas falanges, que desse por onde desse, haveria de ser eu a dar-lha.
Não o sabe, mas passei dias a escolher a malfadada aliança. De uma míriade de sonoras e ofuscantes constelações, de uma catadupa de exuberantes gemas que constavam nos mostradores,

É para a mulher? Antes fosse. Não, é para uma amiga. Sorriso de bom entendedor do outro lado do balcão.

prevaleceu a simplicidade, de uma zircónia encrustada num leito de límpido ouro, e as limitações de quem tem mais de coração mole do que de bolsa.
Ensaiei o discurso. Divaguei a noite toda, fingindo-me já no cais, passeei-me e cingi o ar em piruetas desconcertadas, em alucinação com o ventre que nutria e albergava já toda a minha asfixiante afeição: pelas pessoas, pelas casas, todos os limoeiros carregados de acidez e a irregularidade das pedras nas calçadas, as rugas das faces mais arcaicas, a serenidade ornada e ignóbil dos ciclos naturais. O mundo em flor, la vie en rose. O homem irreversivelmente transfigurado pela insanidade temporária.

Recusou. Alegou o carácter recente de uma união para mim já enraizada, nos jardins que possuo.
Ingrata.
Ingrata.
Foi tudo quanto lhe quis deixar. Uma palavra, uma arroba de frustração, raiva, fúria. Faça favor, é toda sua.
Virei-lhe as costas, dizendo-lhe telepaticamente que provavelmente viria mais tarde no domingo seguinte. Assentiu, em silêncio.

No domingo prometido, quem não aparecera fora ela. Durante vinte e cinco minutos, dilatados, e com prolongamento; durante uma era, infindáveis evoluções e revoluções, deixei-me ficar, contra o verde caduco do marco de linha.

Ingrata.
Ingrata.

Ainda hoje o é. Ainda hoje.
Subir, subiria. Mas continuaria impedido de, finalmente, reencontrar a rapariga que um dia deixei no cais.
 
Ele (Insolência)

Os Outros (Inocência)

 
Os Outros (Inocência)
 
Nesta perspectiva invertida, é-me claro que não lhe seria possível estar mais longe de tudo isto. Invariavelmente não poderia, pois no seu machismo naturalmente casmurro, fora para isso que nascera. É uma criatura bizarra, no mínimo, transpira copioso uma aura passivo-agressiva, as suas frontes estão anormalmente dilatadas para as laterais, enquanto bate os pés numa impaciência cinzenta e frenética.

A poucos pés de intervalo, junto à impoluta banca, mármore pontilhado de gradientes dicromáticos, a fêmea aparenta permanecer tão cristalizada quanto a superfície onde apoia as mãos crispadas de surda melancolia. Parece o seu oposto, indubitavelmente. Os músculos faciais, distendidos e irregularmente ruborizados, capturados no espaço e tempo como uma pintura renascentista, apenas os seus olhos rolam, graciosos, nos humores oculares abundantes; numa tentativa frenética de capturar um qualquer ponto além da manta bicolor à sua frente. É de uma beleza triste, conquanto, vê-la reflectida nas vidraças é extasiante.

Entretanto, passeando-se distraída e irresponsavelmente, o seu homem encaminha-se para a penumbra do corredor, sala, o silêncio, segue no seu encalço, atrapalhando-lhe os passos, tal qual um cachorro ansioso. Deixa-se cair, fardo, de gestos pesados, no sofá desalinhado, a escuridão fustigando-lhe a percepção visual num nevão de pontilhados semi-transparentes, até que por fim adormeçe.

Na cozinha rectangular, tomada por um certo desalento, reúne as suas mais íntimas forças, para que, pelo menos, possa colocar a modesta refeição, fumegante e rescendente, no centro da mesa; enfrentando analogamente a cerração que residia no corredor

"O jantar está na..."

e a frase tomba-lhe desfragmentada no chão, no momento que a pronuncia, ao perfilar o vulto que inspira

expira
inspira
expira
inspira

fundo, adormecido, entercortado, na adorável capinha rosa, braços longitudinais ao peito ondulante.
E aí estacou

ficou
permaneceu

até que a vontade lhe doer roçando os limites finitos do suportável, mas não mais que o vazio que a gasta nesse dia; e é através de passos alienados que se conduz ao andar superior, para também

finalmente
aflitivamente
profundamente
adormecer.

No limiar da luz trémula que banhava os degraus empoeirados, a criança recolhia o polegar em saliva, e oferecia a lágrima mais salgada que tinha ao ar frio da casa.
 
Os Outros (Inocência)

Goodnight Goodnight

 
Goodnight Goodnight
 
Escorro os dedos pela cara
Como quem quer adormecer
o que nasce, esbracejando à superfície.

Os olhos, esses, agora nadam
recreativamente em branco,
e na rugusidade quente da secretária,
e o contraste justo queima-me
as últimas mortalhas de resistência.

Há uma borra de café a pontuar
o existir tardio da folha,
e cinzas pela secretária,
pelo chão,
a ponta do meu nariz.
Preciso de mais um cigarro, por
esquecimento.


É necessária uma resolução
imediata.
Vou para casa.
Deixo uns parágrafos por herança.
A fonte deixou de escrever.
 
Goodnight Goodnight

Cápsula

 
Cápsula
 
"Mãe, olha o que encontrei."

É dura.
Tive que a morder: puro ouro?

- Uma dádiva, podes crer, uma dádiva
Postra-te, não decifres, sente.
Cessem o não necessário: respirações. -

Está brutamente perfurada, milimétricamente.
Reage à epiderme: calor. Fundem-se irmãmente.

- Encerrei já as portadas do vulgo visível, não, tacteio apenas.
Presenças nada mais serão que o que me vier arrebatar. -

Desejo ficar aqui.
Suspensa no trapézio ebóreo da transparência.
As minhas mãos conservam a cápsula.

"Já aqui estávamos, os outros é que não deram por isso."

São sussurros, serena-te, são sussurros.
Conduzir-te-ão, excertos musicados em temeridade.
Hesito no sentido a dar-lhes.

"Guardei em mim o gérmen de uma afeição quieta,
Hoje árvore de querer brotando do meu peito."

Foi por isto que vieste. Por eles que vieste.
Estás aqui: anuncia-te.

- Respondi à existência pela regeneração. -

I am the Healer.

- Respondi à existência pelo sacrifício. -

Tu és o sacrifício.
Despe-te. Despe-te do afável, da transitoriedade.
Gera as aras rituais, pertencem-te.
É a Hora, uma vez mais.

"Está tudo bem, vai ficar tudo bem."

É a Hora.
A cada passo materializa-se o declínio
Repousando sobre a feminilidade própria,
As magnólias do teu peito, o ventre sideral da criação.
Moldando-te. Reclamando-te.

- A cápsula: permanece impassível na enseada crepuscular.
Tudo quanto possuís. -

Violento, por demais violento, um compasso acidental.
Uma queda, compressão instantânea do equilíbrio, fluí. Quebrara.
Surpresa.

"(...) how unbroken everything became."

(O verso final foi retirado de "you came into my dream ", da autoria de Anis Mojgani)
 
Cápsula

Touched

 
Touched
 
"Podia morrer por uma só dessas coisas
que trazemos sem que possam ser ditas:
astros cruzam-se numa velocidade que apavora
inamovíveis glaciares por fim se deslocam
e na única forma que tem de acompanhar-te
o meu coração bate"
José Tolentino Mendonça, A Estrada Branca, 2005

Quer por falta de aviso ou descuido, aconteceu-lhe. O karma que lhe fora destinado tinha destas singularidades: atingia-a quando mais esperava, contudo, com aquilo que menos esperava.

Desta feita, fê-la perder-se em amores, ela, Diana com seu arco e flecha em riste para que ao mínimo avistar dessas tumultosas ameaças à tranquilidade sentimental as pudesse eliminar antes que lhe devorassem a alma, famintas; ela, perdeu-se em amores de arco-íris e folhinhos cor-de-rosa, com intensidade pseudo-trágica. A pobre quase arranca o coração do peito sem saber que faça com o rubor que lhe assome à marmórea face; pois de todos os possíveis objectos de afeição e sublime adoração, tinha de o ser: ele.

Ele é um gaiato em alma, com sete pedras na mão e outras sete na boca, o descuido passivo no bolso, o seu brincar e existir é alquimia, a ousadia das chamas e o éden no coração que herdara dos anjos caídos; representando tudo quanto anseia ser e alcançar um dia, ainda que seja o oposto daquilo que a define, sim, um dia em que consiga soltar-se das grilhetas que lhe impõem ao ser.

Tornou-o então o seu Némesis de todas as eras, que mais daria agora para lhe lançar violentamente as mãos ao pescoço e
beber-lhe deleitosa o néctar divino do puro arrebatamento, somenos religioso de entre aquelas duas pétalas vivas, rubras e tépidas; sentir-se soçobrar com a realidade do toque desejado, e só aí, então, esborrachá-las demoradamente com seus pés de bailarina, calando-o até ao fim dos tempos. Ele, a quem súbdita e servilmente permite que lhe crave as garras no coração empedrenido, no mesmo fervor e devoção com que em retorno lhe cravaria um punhal nas costas.

Um dia, nem segundos breves nem minutos volúveis, um dia, fora quanto bastara para que se apercebesse que este desejo seria o seu fim. Sentia-se gradualmente agastada, deixando cair por terra tudo quanto outrora a elevara à imensidão mítica da sabedoria terrena.
O destruir da leda glória, que efémera sempre o será para toda a carne humana, que importa, somos o cosmos, o infinito, omnipresentes e omnipotentes, e já não falamos em tempo. Hoje, não é muito mais que uma baça sombra do que fora, bailando nas estações que nem folhas secas bailando no célere vento de Outono.
Não sabe o que a conduz ante aquele Apolo de barro e sangue, como ela. Não ousa tocar-lhe. Não ousa respira-lhe o aroma, sabendo que a deixaria em profunda embriaguez. Não ousa. Apenas olha o clarão que a engloba em alvura e paz à sua frente, apenas olha, fita, estando os restantes sentidos fechados do mundo restante.

Em casa permanece em silêncio, em contemplação dos tabiques que adornam o tecto que a protege, todos os dias, ao passo que sente o corpo tenso de antecipação por aquela miragem segregar ódio: o reverso da calma tempestade que estala de dentro para fora, espraiando-se liquidamente em redor. Ódio pelo homem que a despertara no desejo do inatingível, ódio por tudo quanto representa, ódio por se ver incapaz de adivinhar a entrada naquele forte, sagrando-a rainha, ódio por não ver a redenção nas suas mãos.
Ódio por si, resto de nada, indagando se algum dia deixará de a olhar como que a um painel translúcido, com aqueles olhos caleidoscópicos e a verá por inteiro e igual à sua imagem. Se algum dia para ele,será suficiente o pouco que possuí para lhe dar, ela, cristal quebrado pela agrura da vida.

Nada disto deixa transparecer quando acontece cruzarem caminho e olhares, unicamente uma trabalhada indiferença cordial, que oferece sem parcimónia nem pudor. Conquanto, ao vê-lo virar a esquina, promete a si mesma, que da próxima vez essa promessa não viverá mais um dia que seja, e não será indiferença o terá para lhe dar.
 
Touched

Vitória

 
Vitória
 
Já não há dor.
Escorrego contra uma parede, vasta;
Já não há dor, apenas cânticos desmaiados
em alucinações de horas vagas.
Não te sustentas em incredulidade: aqui te tens,
Na antecâmara da percepção totalitária.
A dois centímetros do solo, pisoteando escaras
de chagas tangenciais ao âmago,
que tanto penara a preservar, incólume.

Pois agora esfolem-se joelhos em deslizes mal calculados,
Quem se importa, o que importa quando já não há dor,
Vamos! Um abraço ao "que se dane!",
As sapientes consequências, acolhe-as como velhas amigas,
Pede-lhes que se sentem e oferece-lhes um chá, a gosto.

Já não há dor, porque és dor com ela
Oferece-te uma dormência tenra, não recuses,
É de bom grado.

E dança. Dança, nem que seja subtilmente,
em bifurcações coronárias;
em festivais de conquistas por celebrar
e choros sorridentes
Dança em tons, passadas de luminárias crescentes,
Como se oferecesses o corpo às árias cósmicas,
Que martelam os incessantes harmónicos ancestrais
Em complemento, entrega também o essencial dos sentidos
numa saudação ao sol interior.

Domaste a cólera absoluta das orbitais
ambíguas, de tudo quanto existe para te definires.
Regiamente, sedias-te no olho da tempestade.
 
Vitória

Jóia de Família

 
Jóia de Família
 
Nunca percas esse anel,
filha
Tem-no por ti, não
o percas pelo caminho.


Olha que é de família,
filha
Esse caminho, tem-no
por ti
Que não to levem de mão
em mão.


Tem-te por ti,
filha
tem atenção, não corras
agarrando o primeiro dedo
sempre que te estenderem
no chão.
 
Jóia de Família

Intemporal

 
Intemporal
 
Renuncio.
Que as minhas mãos
estão tão mal acabadas,
os rascunhos ainda lhes são visíveis.

Por todo o lado.
Vai. Estou a falar sériamente.
Vai. Tão cedo? Pode ser.
Ainda podias ficar mais? Tanto melhor.
Mas vai. Vai lá.

Deves ter que fazer. Mais que.
Suponho.
Ainda não é hora de partires?
Não, nada tenho agendado.

Permaneço. Como? Existindo continuamente.
Exacto, com(o) uma função.
Ainda não é a hora de ires? É sempre hora.
Pode não ter chegado.
Seguindo o ocasional, materializam-se atrasadas, já.

Que bom.
Insistente? Possivelmente. Saudade? Ausente.
Dormente, precisamente, convém.

Lá está, renuncio.
É sempre tempo. Repito.
Dou-te tempo, se necessário. Para que
tenhas tempo.
De ires. Porque não?

Faço-o porque não sei.
Tenho alternativa? Se assim o quiser.
Quero. Mas renuncio. Uma vez mais.
Curioso.

Ao nada, ao tempo, ao estar. Ser, quase.
Ao tempo que estimar.
Para ir.

E voltar.
Evidentemente.
 
Intemporal

Inexplicações

 
Inexplicações
 
Só por escorregar avenida
abaixo em patins
de nostalgia pelo que se deixa
ficar, dera-se
entretanto o assalto
ao pretender instruir o sentido
natural das coisas a
outras coisas que possam esconder-
-se, por detrás do painel, baço,
desta visão.

Não me ensaiei o bastante,
em curiosidade inerente
Espreitei o suficiente para saber o
nada.

(E eu que sentia que algo ficava.)
 
Inexplicações

Começo

 
Começo
 
 
Olá vida,
olá querer,
olá calçada.

Distendo o âmbar das mãos,
Comungando com o ar,
Rios de papel tão fino quanto
O ventre terreno que me gerou.

Esta é a jaula em que até hoje
sentia.

Olá vida,
olá poeira solar,
olá ventura.

Eis-me findo, ébrio, dissoluto, aprendiz,
Consubstancial ao pai.
Eis-me não mais em torno de magistrais
Bustos de ignorância.

Esta era a ciência que aplacava.

Olá vida,
olá magnanimidade,
olá infinito.

Este é o meu primeiro sopro.
 
Começo

Contenção

 
Quando pequenina a minha mãe sempre dizia:
"Chorar é feio, meninas crescidas
Não se sustentam assim"
Ouvindo, limpava a transparência
dos bagos na ponta do bibe,
endireitava consistente o queixo
estreitinho
e balançava os pés em cadência com
a luz que descia dos vitrais para
sacudir a impaciência inata da criancice.


Mas já nada disto me safa.
Já não trago a porra do bibe às riscas,
nem sei onde pára.
A minha mãe já mais não diz "As meninas"
porque de menina pouco me sobra e
de crescida vai a caminho
de sobrar.
É pela inevitabilidade de circunstância que
tenho que engolir tudo, para dentro
e para baixo,
pudera,
que também as
comoções fossem solúveis nas regurgitações
digestivas, não há que as reduza senão a
incomodativos resquícios que repuxam as
suturas do miocárdio.
Derivado de tal, ando em congestão continuada
e tripas feitas
coração.


Espera, antes que faças brotar tuas
metástases
nos meus sentidos, e no meu discernimento do vulgar,
sabe
que se ao início te reneguei, perdoa,
desconhecia que me ensinaram a andar
para que pudesse chegar ao pé de ti e dizer
te
"bom dia" com um piscar de olhos
matinal, como quem ainda habitua os olhos à luz
que floresce a nascente de todos os dias.
Perdoa, porque hoje fui eu
quem procurou
e não te encontrei em
pensamentos,
palavras actos
e omissões,
e podia continuar pela minha culpa,
amén.

É tudo quanto se lê nos intervalos
dos gestos executados
Prometi contenção sigilosa, para que não se perturbe
a normalidade
Os meus dedos inflamam o papel irregular
E despejei a voz assim que cheguei a casa.
 
Contenção

Belos Tempos

 
Não importa o lado para o qual me vire
na cama, ar á esquerda
ar á direita
o percurso mental repete-se
pelo limiar da doçura sórdida
que é o sonambulismo horizontal,
prego os olhos no infinito branco-sujo
que é o tecto que se projecta
à minha frente
e lembro.

Lembro-me como se fosse
o amanhã mais correcto:
eram tinturas aspergidas
numa caligrafia ensaiada
em papel quadriculado ou pautado
ao gosto do freguês
e aquelas missivas geométricas
encerravam a chave dicotómica
para a felicidade de levar em mão
e boca
- sim, não, um talvez
aconchegado na cova de um dente.

Suspiro.

Belos tempos.

Em termos de inconsciência
batiam-se autênticos recordes.

Amores eram sonos que não se dormiam nunca,
Oh sim!
Como este agora, que se escapa por entre
os trilhos onde joga o meu olhar,
que atiro ao vermelho angular das pedras.

Percebo os meus vínculos milenares à
meia luz,trazendo singularmente
meia verdade.
Difracções transitórias, convergentes em pontos microscópicos
parelelos além sensação.
Não desepero, algo existirá
possuíndo a outra metade.

Nova inquietação em rotações convulsas
amparadas em linho bravio.
Junho vive e usa frio consigo.


(...)
 
Belos Tempos

Mensagem Subliminar

 
Mensagem Subliminar
 
(Ouves-me bem daqui? Inclina-te, está escrito por todas as circunvoluções da minha face.)

Não me fales, não te falarei,
Acho horríveis esses discursos cordiais de sala de espera
Que insistes em cultivar sobre as minhas chegadas triunfais.

(As ordens sintáticas das palavras atropelam-se, para que possas ouvir-me
em ecos velozes.)

Outro choque, mais proximidade, simbiose de aromas,
Basta, sinto-me sórdida com suspiros telepáticos
a meio milímetro da minha distanciação compulsiva.

(A minha epiderme estala com a austera ausência das tuas impressões digitais. Agarra-me bem.)

E essa melodia, mais uma vez essa melodia fúnebre
Trastes desgarrados, armados até aos dentes
numa senda contra a sanidade do meu sentido de equilíbrio.

(Prometo cantarolá-la em todos os vãos de escadas e mercados negros, rogando a tua existência.)

Larga-me as mãos, existem outras magnificiências, justas
que pretendo arrastar mar adentro.
Quero cobrir os ouvidos à tua presença complanar ao cabal.

(Assim forço os olhos à tua passagem celeste, para que te possa eternizar em aparas lunares de êxtase catártico.)

Não, hoje não me levarás a vontade,
nem as minhas retinas descoladas de encandeamento,
nem chão onde está escrito o meu nome de baptismo
Não, hoje não te deixarei entrar.

(São 3h25 da manhã num domingo qualquer e sinto a tua falta. Quando me deixas entrar?)
 
Mensagem Subliminar

Thinking, Drinking, Sinking Feeling

 
Thinking, Drinking, Sinking Feeling
 
O meio da noite
Arrefece-me a secura do palato
Esta dificuldade em engolir desde
que transpus aquela
soleira, derradeira de
mármore da cozinha


(é pois: a da minha cozinha)
Mais, aquelas árvores de
papel-cenário assobiando que
nem carapaus de corrida ao vento
Estão a pedí-las, as sonsas,
por certo estão à espera que lhes
suba ramada acima
(arrancando em ponto
morto, para longe.
Desgraçadas.)


E agora que sinto, vejo fome de
sede do que quer que
seja
decorar um centímetro mais
ao novelo atirado para o
canto interior, da última vez
que aqui estive.
Carrego-o comigo, e pesa-me
dos dois lados
tanto de barriga para cima, enterra-me,
cambaleio, de barriga para baixo,
a ver se passa.


E não passa.
Não.
Não passa, não.
Serei eu a passar.
 
Thinking, Drinking, Sinking Feeling

Confissão

 
Confissão
 
Vinte cinco células do meu espólio corporal
Sofrem lise sempre que acontece assistir ao crepúsculo
da tua permanência,
o que equivale metaforicamente a explicar-te que
morro obstinada
em todos os momentos da tua alheação.

Vinte e cinco, exactamente vinte e cinco, sem qualquer
género de discriminação,
aleatório,
embora registe uma
apoptose crescente
na musculatura cardíaca;
São milésimos da minha configuração carnal,
subtraídos sem qualquer parcimónia.
Pouco a pouco, eclipsar-me-ei,
de tanto me levares contigo.

Fabuloso, senhoras e senhores, uma vez mais
iludindo-vos em palavras trajadas de ofuscantes lantejoulas,
Ah! O assombro piedoso!

(Pode ser que assim nem perceba, que agora me confesso)

Não figura no meu ordinário, deter-me nestas oratórias
impressionáveis, são féretros de palavras que expurgo
jazem em pilhas torpes nos salões do desvanecer gutural
abafadas por não se sentirem sonoras.

(Um pouco da água da tua afabilidade , se faz favor, estou a ficar com a garganta seca.)

Agora, prolongo-me na ébriedade da tua reminescência
nos modestos tronos dos laços terrenos, meu caro, é bastante insistente.
Pois, confesso-me, sob juramento e por todos os terços cristalinos
de religiosos domingos bafientos:

(E ainda assim, as minhas preces para que não te pareça que me confesso)

Não tenho certeza se estimo figurar
como um arlequim de imaginários desbotados
Não tenho certeza se suporto dispensar as candeias
de vigília
Não tenho certeza se posso custear os rodopios desmedidos
de uma valsa esquecida.
Não tenho certezas. Algumas.

De estar apta a expirar candura,
Não tenho certeza de como iniciar negligência
contra as tuas vocalizações
Não tenho certeza de abater este tumor,
Demitiste-me grávida de júbilos tardios e afeições desporporcionadas
e tudo quanto possa colorir arestas existenciais,
insisto, não tenho certeza de carregar tanta leveza
Sinto que me desafias os pilares essenciais, ao longe
Cerro os olhos e estremeço
Qual deles irás estralhaçar primeiro?

(Devagar, por favor, já não é a primeira vez.)
 
Confissão

Auto-Medicação

 
Auto-Medicação
 
Lição simples
de conforto emocional:
pressione quatro vezes o
parágrafo entre a quinta costela
e a musculatura do diafragma,
no lado esquerdo
(com entrevalos de trinta segundos.
Prolongue a última compressão.)
e sopre levemente os fios de
cabelo que lhe restarem na nuca.

Alívio instantâneo, de pacote
com travos de obra do Espírito Santo.
Executar no próprio, utilizando
abraços dobrados para dentro
a dois terços.

Em caso de persistência dos sintomas
Consulte a sua desistência interior.
 
Auto-Medicação

Vai do hábito

 
Vai do hábito
 
Sinceramente
As cartas e as crisálidas estão
todas na mesa
acenda-se mais um cigarro para
não sentir tanto o frio na
mão direita, a que mais segura
sinceramente
já não se importa.

Entretanto o olho esquerdo
lacrimeja teimosamente
sinceramente
as cartas já na mesa e as
crisálidas, esmurradas, lixo com elas
descansam noutro lado qualquer

(e o maço corre já a meio,
sinceramente)

Pelo que haveria de dizer
Á medida que os carros cismam
estrelas cadentes em fundos
decadentes,
saber que o rascunho ficou
traçado e mesmo assim
ensaiar uma asneira imprevista
ao invés de girar para casa,
sinceramente,
não aprende, insiste
no mais que há a queimar.

Envolta em paninhos quentes
Sinceramente,
não faz muito mais que isso.
Em si mente.
 
Vai do hábito

Arrival

 
 
Mesmo sentada ainda
há comboios a entrar no
cais
Senhoras de meia-idade
semi-tostadas pela aragem
quente correndo pelas hortaliças
mais baratas nas
cestas de peixe mais meia dúzia
de folhas esmagadas no
asfalto

Mesmo esperando há
gente a falar com o passado
ao telemóvel mais um qualquer
relógio a afogar a meia-noite para
descontentamento de um candeeiro
desejoso de voltar para casa
lá para os lados das utopias
das pequenas coisas

Perguntam-me porque não
abri os braços antes

Mesmo as flores falam muito
mais aqui à beira-rio plantadas
Mesmo eu penso muito mais por
exercício do que necessidade

Porque é que não abri os braços antes
os olhos
Ainda bem que abri os olhos
Ainda bem que me abriram os olhos.
 
Arrival

O

 
O
 
Escolhera vir casta, descalça.
Por isso, baptizei-lhe os sulcos cutâneos em
odor sólido de terra e erva
fresca que anoitecem sobre mim.
 
O