Poemas, frases e mensagens de Felipe Mendonça

Seleção dos poemas, frases e mensagens mais populares de Felipe Mendonça

Sou poeta. Meus autores preferidos são Fernando Pessoa, Charles Baudelaire e Carlos Drummond de Andrade.

Soneto do homem só II

 
Chegou teu companheiro de viagem
Que sai da casa ainda adormecida
Sem nada de importante na bagagem
E volta cochilando p'la avenida.

Chegou teu companheiro de pilhagem
Que sai de casa feito uma criança
E volta carregando na roupagem
Destroços luminosos da esperança.

Um pouco de teu fôlego e lugar,
Do que sequer consigo imaginar,
Resquícios que me sobram de nós dois:

Calçadas, alamedas e desvios
Que em vão nós percorremos erradios
Sem nada o que deixarmos pra depois.
 
Soneto do homem só II

Tempo

 
Tudo já aconteceu,
Pois acontece e acontecerá
No mesmo tempo

Todo o fluxo já passou
E ainda passa e passará
Neste exato momento.

Toda a hora sempre chega
Porque já passou.
Por isso, somos agoirentos.

O tempo é um rio parado
Embora haja tanta gente
Afogada e sem alento.

E, mesmo estático,
Vivemos ardentes
Em meio a tantos tormentos,

Porque, mesmo parado,
Vivemos na aparência
De discursos e argumentos,

Na ilusão de calendários,
Dias, anos e minutos
Em meio a sonhos e dezembros,

Porque, mesmo cumpridos
Seu destino e fado,
De nada sabemos.

E o que há somente
É a luz que dilata
Distâncias e comprimentos,

Tudo o que vemos
É o para além dos nossos olhos
Do chão ao firmamento.

Assim não o sentimos
Como insensível cristal,
Mas como nosso tegumento,

Por isso não o sentimos
Como massa inerte de gelo,
Mas torrente ardente de tempo,

Ou, mesmo parado,
Como solo livre do sólido,
Pântano lutulento

Onde afundamos,
Onde morremos e nascemos
Na ilusão dos fragmentos,

Porque o tempo é um todo,
Rio sem fluxo ou corrente,
Congelado movimento,

Aquilo que muitos confundem
Com a existência
De algum ser eterno e supremo.
 
Tempo

Desde menino

 
Desde menino sonhava,
Queria uma namorada bonita,
Uma família feliz,
Casar um dia na igreja.
Sonhava porque havia sempre
Em mim
Um círio a queimar,
Um devoto a orar
E uma canção de amor
Sob a luz do luar.
Sonhei até ver
Os amantes repousando
Num leito de pedra,
Até ver o desespero
Dos que naufragam em alto-mar,
Hirtos esqueletos
Jazendo em meio a algas e trevas.
Hoje, não sonho mais
Como menino;
Sei que engano e minto
Como se quisesse conter
Meu choro após o grito,
O lume do círio
Agora extinto,
Um mar que me afoga
Bravio.
 
Desde menino

Serpente

 
Há uma serpente
Que de mim sai,
Espada, samurai.
Irrompe-me todos os poros
Insinua-se entre
Minhas pernas
Quando gozo
Ou mesmo
Quando
Me chupas,
Penitente,
Criminosa,
De joelhos
Como se rezasses
Um padre-nosso.

Há uma serpente
Saindo
De minhas entranhas,
Que voraz
Me abocanha
Por noites inteiras
E que me faz,
Como um doidivanas,
Te pegar por trás,
Ouvir,
Como se fossem
Hinos, cânticos
E hosanas,
Os teus gritos
E vagidos,
Enquanto me lanhas
Nessa louca campanha.

Há sempre
Uma serpente
Em mim,
Porque estou
A ponto
De dar um troço,
De te morder
E devorar-te,
De te matar
E dominar-te,
Dando tudo
Tudo o que posso,
Só para ver-te
Abocanhar-me o pomo
E depois
Nele sentar-te
Como num trono.

(Rainha ou vadia?
O que importa?
És mulher!
És minha!)

Há uma serpente
Que se nos entranha
Inclemente,
Que nos leva sempre
Ao mais íntimo
De nossos corpos
E mentes,
Que se nos enrodilha
No peito, na cama
Ou na virilha,
Tornando nosso dia
Uma trama
De saliva,
Suor e orgias;

Uma busca
Incessante
Na lua ou no boquete,
No rabo ou no diabo,
Na santa ou na bacante,
Pelo pedaço, fatia
Que enfim nos complete
E celebre
Este fugaz instante.
 
Serpente

Poema da vida inteira

 
Outrora, qual a Aquiles,
Quase me devoraste,
Escamandro furioso,
Procela borrascosa – desmesura.
Espremeste-me contra paredes,
Pegaste-me pelos gorgomilos,
Exigindo-me tudo o que não tinha,
Tudo o que perdi ou vendi,
Tudo o que sempre exigiste de todos:
Venalidade!
Enquanto três bocas
Choravam ruidosamente.
Nestas horas, roubaste-me
Até meu corcel negro,
E quando pedi ajuda, decretaste:
“ – Não sei se é verdade... te vira, rapaz!”
Grande artista da esquiva e da omissão,
Quase me arrancaste todas as lágrimas,
Fazendo-me sinistros convites ao mar.
Terrível alquimista,
Transformaste todo meu mar e sal
Em pedra, todo meu céu e lume em lodo.
Entretanto, estou aqui:
Mil vezes amado, desprezado,
Mil vezes perdido e sem caminho,
Mil vezes sem profecia ou futuro
A te encarar nos olhos... vivo!
Com os ombros curvos
De quem muitas vezes baixou a cabeça,
Em cadeira, de quem quebrou
Orgulhosa cerviz.
Hoje, estou aqui te encarando,
A esboçar um sorriso,
Sem perigo de virar pedra.
Outros choram, lamentam-se,
Preferem puxar o gatilho da melancolia,
Embriagar-se da memória dos que partiram.
Comigo não é assim:
Já não sinto sede ou fome
Na língua seca, no estômago enjoado.
O esquecimento é o bálsamo
Que ofereces a esta esponja ressequida.
Hoje, vozes compungidas
Calaram-se em meu peito,
Aguilhões a me ferirem
Já não fazem mal
À carne afeita à dor.
Agora, admiro tardes iluminadas e frescas
Que tanta luta ensombrou, esfriou,
Que tanto arrependimento transformou
Em noite e tempestade...
Sinto-me faltoso, por isso humano, completo.
O futuro não mais me inquieta: vivido está!
Perdido está!
O passado dia-a-dia julga-me,
Mas vou sempre sorvendo as velhas mentiras
Que imobilizam toda a culpa
E as revoluções deixadas por fazer...
O presente reduziu-se a um zéfiro suave,
À profunda aceitação.
Este momento sem perspectivas, metas,
Ou pegadas encapsula-me.
Sou duro, carne de pescoço.
E agora?
Pergunta que já não cabe mais:
Agora estou completo, perdido,
Perdido...
 
Poema da vida inteira

Trepar não é amar

 
Trepar não é amar
É um jorro
Quente na minha cara.

A tara
Que me acusa e desvenda
Quando mergulho
Em tantas fendas.

O grito e o gozo
Que sorvo
E escuto
Entre chicotes e algemas.

Trepar não é amar
Não é sequer gostar,
É muito mais,
É só querer,
É uma busca incessante
Pelo ser
No gozo e no prazer.

Trepar não é amar
É ter,
Sobretudo ter,
Para logo depois
Perder
É ver o corpo
Como escada
Para o tudo
Ou para o nada
E esquecer.

Trepar não é amar
É gozar,
Sobretudo gozar,
Pois pode-se amar
Dias, meses, anos a fio
Sem jamais gozar,
Sem jamais entrar no cio,
Porque amar é sofrer
E trepar é querer,
É morder
O que tantaliza
Nosso ser.

Trepar não é amar
É querer, nu,
Mergulhar
Num cálido mar.

Amar
É querer
Também,
Querer
O que não se pode ter,
O que está além
Das nossas forças
Ou ser
Porque amar,
Em si,
É ansiar-se só,
Sem ninguém.

Amar é querer-se
Além do corpo,
É no fundo desejar
Estar morto.

Trepar não é amar,
É não querer
Estar morto,
Mas viver
Sempre no centro
De todo o corpo.

É tão sublime
Quanto matar
Ou trepar
Num altar
É cometer um crime!

Trepar não é amar,
É ser perverso
E se tornar objeto
De insanos desejos
Secretos.

É encenar papel baixo,
Despojar-se
De toda a vergonha e recato
Só para ter acesso
À silhueta atrás do véu
E à caixa que guarda
Preciosa jóia e anel.

Trepar não é amar,
É vociferar-se
Na janela
É uivar ou ladrar
Feito cadela.

Trepar é ser denumano e cruel,
Não é ser homem e mulher
Mas algo que resfolega ou galopa
Como um corcel.

Trepar é cravar e contorcer-se,
É rasgar e morder,
É ir até onde toda a carne
Sempre vai doer.

Trepar não é amar,
É ter na boca
Um beijo tantalesco,
É gritar venéreo
Contra o amor
Tão sério,
Que jamais vê
O que também somos:
Burlescos.

Trepar não é amar,
E se amamos
Enquanto trepamos
E se,
Por um breve instante,
Por um triz,
Consegue alguém
Ser feliz,
Saiba:
Isso,
Seja lá o que for,
É muito mais
Do que amor.
 
Trepar não é amar

Minha alma

 
Minha alma
É tão pobrinha
E a tanto tempo definha
Que já lhe preparei funeral.
Espero logo que morra
Como a andorinha
Ou os bem-te-vis
Numa revoada
Matinal.

Espero que logo morra
A minha alma
E leve consigo
Todas as minhas mágoas
E me deixe em paz, vivo
A transparecer, enfim,
Uma súbita calma.

Ah, minha alma,
Vá embora
E leve contigo
Esta face que só chora,
Esta boca que só ora
E não entende que a vida
É o instante, o agora.
É uma boca
Que nos devora
Na íris do sol,
Na pétala da rosa
Ou na luz das nebulosas.

Ah, minha alma,
Deixa-me,
Pois não sou como tu,
Etérea e alva,
Pois sou este corpo
Sujo,
Lava que arde
No escuro.

Ah, minha alma,
Vou-me excomungar-te.
Tua vais para o céu
E eu para vala.
Tu és a cabala
E eu pouca coisa,
Quase nada.
Melhor assim;
Não há nada o que me valha
E vivo ao léu
De quem não ajunta,
Só espalha.
Separar-te-ei
Do meu pensamento,
Para semear-te
No vento.

Ah, minha alma,
Quando me veio o Diabo
E por ti
Ofereceu-me
Reinos, ouro, prata,
Eu apenas lhe disse:
“- Tome-a de graça.”

Ah, minha alma,
Te desejo
Que sejas feliz,
Que voltes
À lama,
Ao barro
Da onde vim,
Que de mim
Te evoles
Qual fumaça
De um cigarro,
Que vires
Uma dócil avezinha,
Branca pombinha
A voar livre, livre
Para longe de mim,
Para que, enfim,
Eu não me aprisione a ti
Nem tu, a mim,
E eu me torne
Alguém
Que vive, vive, vive
A romper
Todos os gradis.

Ah, minha alma,
Deixa-me desalmado,
Sem nada, ninguém,
Sem anjo ou juiz
Ao meu lado,
Porque como tu
Eu também
Quero ser livre e feliz.
 
Minha alma

Bélico

 
Flores bélicas
Rebentavam em todos os canteiros.
Bellum rufava seus tambores
Nas hostes do meu quarto,
Entoando um hino
Repleto de seqüestro e assassinato.
Súbito, então, comecei
A oferecer flores e balas
Nas escolas,
Nos cinemas e teatros,
Em todas as ruas
E casas,
Em ônibus e trens.
Eram lírios e tomilhos
Furibundos,
Narcotizados
E guerreiros,
Lançados dos rifles
E bombardeiros.
E tudo parecia-me terrível e Belo
Como a lua a estuprar-lhe os amantes
E a despregar-se, como um alien,
Sangrenta, crescente,
De nossos ventres.
Colhi todas essas flores
Ao som de desesperadas cigarras
E de justiceiras espadas.
Cheguei mesmo a cultivá-las e traficá-las
Por toda África e Palestina,
Flores fétidas e clandestinas,
Como um jardineiro
A passar tudo a facão,
Como um padeiro a envenenar o próprio pão.
Era preciso cumprir minha pena,
Seviciar todos
Que me maltrataram sem pena
E me entregaram aos chacais e hienas.
Hoje não cultivo mais.
Estou em paz.
Bato ponto,
Leio a bíblia
E entrego o protocolo
A mães que carregam no colo
Filhos e pais
De futuras chacinas.
 
Bélico

Lunático

 
Ó louca lua
Desnuda e gélida,
O que me contas
Nesta noite tétrica?

Que um dia
Estes corpos
Mortos e frios
Foram vidas elétricas?

Que estas bocas
Silentes da afasia
Um dia foram
Coro e algaravia?

Ó louca lua
Desnuda e pétrea,
Um dia foste
Lauta e profética!

Inspiraste,
Insana e frenética,
O coração dos ascetas,
Dos abades e dos poetas

E foste o álibi
De todos os criminosos,
Daqueles que buscavam
Em cismas e milagres
O perdão e a eternidade.

Tu me aparecias
Em forma de mulher
Com as vestes rasgadas,
Um seio e o púbis à mostra
Numa solitária estrada
Em que, iníqua, tu brilhavas.

E por mim acompanhada
Nada me dizias
Ou me indagavas,
Apenas o meu leito
Tu corrompias
Na madrugada.

Eu vinha do mar.
Era onde eu te via,
Mas não onde te tinha,
Pois era num lupanar
Em noites frias
Que te possuía
Dos céus despregada.

Ó santa pura e profana,
É por ti que o herege
Peca e exclama!

Tu que dos céus
Preparaste as insídias,
Rasgaste as insígnias
E todos os véus!

E nua, sempre nua
Como uma hetaíra
No firmamento
Da Grécia antiga

Ou noctívaga
E sonâmbula
Nos sofrimento
Dos que amam
Na mais escura treva
Habitada por corvos,
Templos e altares
Em ruínas,

Vagas, deambulas
Por todos os corações
Em festa ou em luto
De quem caminha
Por átrios, câmaras e colunas
Ou dorme debaixo dos viadutos.

Oh, tu que foste
A perversão e o vício
Dos corações apaixonados,
Errantes e perdidos

E te derramaste
Nas noites e vales
De brilhantes catadupas
E telúricos tropismos.

Oh, tu que foste
A breve loucura
No torturado espírito
De todos os arrependidos,

Ó louca, nua,
Impassível e gélida,
Tu me torturas,
Tu me torturas
Há incontáveis eras!
 
Lunático

Pai

 
Na poltrona da sala,
Tu te sentavas
Como se num trono.
No teu rosto pétreo,
Não havia sonho,
Não havia beijo,
Havia um cetro
Sobre meu ser e desejo,
O medo de encarar-te a face,
A ordem para que eu não me deitasse.

Assistias à TV sério.
Não confabulavas
E o teu silêncio
Preenchia toda a casa
Com um ar severo.

A impassível estante
Repleta de livros
Não deixava entrever,
Na sala, sequer
Um choro furtivo,
Apenas a ameaça
De homens e gigantes.

Sem saber, como tu,
Lutar, calar, reinar,
Largava-me no sofá
Sem ousar desafiar
Teu reino e tabu.

Mas, vieram as Eríneas,
Furiosas, cansadas
De cozinhar e fiar.

Atormentaram-me,
Seduziram-me,
Consangüíneas,
Até me insurgir
E cuspir-te.

Hoje, a estante está nua
E, nos fundos da casa,
Senta-se a privada
Para ver tua terra devastada,
O fim dos livros
E a revolta dos teus filhos.

Hoje, ponho anel,
Ponho relógio,
Cala em mim o teu fel,
Teu necrológio,
Enquanto assisto,
Deitado no sofá,
Ao fim de um apogeu,
Ao crepúsculo de um deus.
 
Pai

Soneto do viúvo

 
Pulsa em meu peito um coração perjuro
Sem encontrar nenhuma paz ou cura.
Habitam meu seio infeliz, escuro,
Pesares, perda e profunda amargura.

Mas, mesmo sendo um infiel impuro,
Desafiando meu destino e selo,
À mulher mais pura me uni seguro
Por seu intenso amor e manso zelo.

Hoje não zombo de quem se perdeu,
Pois também não gozo de um himeneu
E me tornei este ser ressentido.

Vivo sozinho, descuidado e triste
E apenas sei que o que em minha alma existe
É a dor imensa de tê-la perdido.
 
Soneto do viúvo

Corvo

 
Escrever às vezes
É um estorvo.

O quanto penou Poe
Até chegar ao O Corvo?

É vasto o céu
Assim posto,

É vasto o céu
Assim póstumo!

O quanto penou Poe?
E ele está morto!

Mas o corvo,
Com suas asas

Sobre a estátua
De Palas,

Mas o corvo
Sempre à nossa espreita,

Atrás, na frente,
À esquerda ou à direita;

Mas o corvo,
Sempre à nossa porta,

É um estorvo,
Velho, sempre novo,

Ave, Demônio
A estraçalhar-nos os sonhos,

A pousar no busto de Palas
E no meu ombro,

Negro, negro, negro
A curvar-se no meu leito.

Grasna que a morte
É para todos

E que a vida e a sorte
São nosso maior engodo,

Grasna aos quatro cantos
Como um louco.

Oh, o quanto penamos
Lendo O Corvo?

Irmão, Poe,
Ele também se foi,

Irmão, Lee,
Nunca mais o vi -

Mortos, mortos, mortos
Aos pés dos corvos!

Hoje é uma asa negra,
Deus sem trono,

A velar-me o sono,
Meu corpo que só deseja.

Nunca mais! Nunca mais!
É o agouro que nos putrefaz.

Matou-me o verso,
Negreja-o agora

O último fóton
Do universo.

Sinto-me fraco,
Amargo, travo,

Sinto-me sem espaço,
Um velho calhamaço,

Sinto uma vontade
De me matar,

De nunca mais amar,
De reescrever-me almaço,

De despojar-me
Do corpo, da carne,

De cortar-me o braço
E dormir, velando-me,

Para curar-me de tanto
Medo e cansaço.

Oh, o quanto nos alertou
O grito do Grou

Antes que nos viesse o Corvo
Aos umbrais após o voo?!

Este poema foi escrito inspirado no clássico O corvo de Edgar Allan Poe.
 
Corvo

Perdido

 
Perdi-me na combustão do dia.
Fui mosca tonta dos pés-sujos,
Mariposa louca e incendiária,
Sensualidade e ávida cupidez,
Fastio feito de misoneísmo,
Dias em que habitam tardes
Quase mortas de passageiros sonolentos
Nos bancos encardidos dos coletivos.
Ah, se alguém gritasse...
Ah, se alguém se incendiasse
E se matasse e explodisse
Uma bomba feita de sangue e dor
De grito e pavor
Ante as basílicas repletas de eco
De cada coração!
Ah! se alguém se sentasse ao meu lado,
Ouvisse-me as queixas e alegrias,
E acolhesse, em compaixão,
Minhas inúteis solicitudes e favores...

Perdi-me no seio forte,
No aroma doce e fétido,
Bêbado do néctar suarento
Que se escorre dos corpos da estiva,
Do soro enjoativo
Dos escritórios e repartições,
Da fadiga odorífica das noites de verão,
Dos pagodes incansáveis dos subúrbios.
Perdi-me no seio da grande cidade
Que grita contra si
Na face muda e silente
Dos que retornam do trabalho.
Perdi-me com o peito arquejante,
Com todos os sentidos e pensamentos alterados
Em noite lúbrica de narcóticos.
Perdi-me sexualmente,
Com o beneplácito de Cristo,
Sem raízes ou entendimento
Na curva acentuada das estradas
Da cidade mundial.

Transviei-me em suas luzes:
Brilhei e me ofusquei entre vapores
Expelidos por canos pretos
De gargantas e escapamentos.
Incendiei-me, louco, consumindo-me,
Consumindo-te
Nas sendas do fascínio e do tédio,
Tonto da mesmice
Das caras sufocadas dos bípedes enfadados
A se rastejarem por concreto
De vidas desprovidas de sopro animador.
Perdi-me em mil cabeçadas, em milhares
De lâmpadas, janelas, caras,
Em quibes frios e enjoativos
Para estômagos ulcerados.
Perdi-me nalgum sexo doente, nalgum regato poluído,
No quilômetro da saída anunciada,
Mas lá só havia mais estrada, mais cidade.

Corri nu por vielas irreais,
Desfraldei bandeiras, organizei comícios,
Berrei no megafone, deitei na avenida
Pela qual hoje passo mudo e depurado
Por faixas, sinais, apitos e a moda.
Quis atear fogo ao próprio corpo
Para que minha miséria fosse uma tocha
Na noite espectral desta cidade
Feita de alarido e escuridão.
Já quis muitas coisas, inclusive
Que todos quisessem tanto quanto eu,
Já até, ateu, clamei a Deus, no escuro,
Sob pancadas e coturnos...
Mas só obtive a traição
De quem nunca requereu minha fidelidade,
O tumulto de uma multidão incompreensível
Atropelando-me num tropel
De concreto, asfalto, avenida, indústria e comércio.
Tornaram-me um canalha sem sonhos
Ou eu me tornei um
E agora circulo por aí, desgarrado
Nos refugos urbanos,
Ostentando na estampa da camisa
O rosto de Che
Ao lado da menina que traz no peito
Um I love New York
Ou outra que vai pela pista
De camisa vermelha com a foice e o martelo
Sobre o seio esquerdo sem ser incomodada
Na cidade capitalista!

Alguém pode me dizer
Em que lâmpada dei minha última cabeçada,
Quando deixei de dar murro em ponto de faca,
Quando passei a seviciar meninos
E a me entregar a atos masturbatórios
Com meninas de dez anos?
Aquele pulha tinha razão quando disse
Que a Babilônia é o fim e o recreio de toda a vida
E que nunca fomos trombetas ou colunas de fogo
A anunciar e proteger a Éden socialista.
Agora temos apenas esta Babel sobre nossas cabeças!

Perdi-me...
Hoje, estou em silêncio
No formigueiro de concreto e asfalto,
Arranhando a languidez do azul,
Consumido por aranha sempre a tecer, infatigável,
Dominando tudo, todos com sua sombra
E ética confusas, impondo sua urdidura cruel,
Sempre disposta a ganhar mais dinheiro,
A excluir mais viventes,
A inocular outros corações...
Dia a dia, sua rede cresce,
Ramifica-se em todas as direções,
Unindo cada ser e lar,
Cada coração e alma,
Tornando irmã toda a vida
De teia que urdiu.

Já desafiei ruas e avenidas contra o conformismo,
Esquinas e arranha-céus,
Imprecando contra carros e semáforos.
Hoje, retorno de ônibus para casa,
Fraterno a todos, em conformidade,
Compreendendo inteiramente
O cansaço e a solidão de cada classe e profissão.
 
Perdido

Para amar

 
Para amar, uma mulher
Não deve ser moralista.
Não é sabido
De ninguém que,
Sendo severo juiz
De si e do mundo,
Tenha amado
E sido feliz.

Para amar, uma mulher
Não precisa do pundonor,
Pois nunca o orgulho,
A honra e o valor
Evitaram que alguém
Se entregasse ao amor.

Para amar, uma mulher
Não precisa ser justa,
Pois o amor não diz respeito
À razão, ao direito e à justiça,
Pois sabe o quanto é vão
Ser justo nas sendas da paixão.

Para amar, uma mulher
Não precisa estar certa,
Não precisa agradar, ser reta,
Pois o amor não quer qualidades,
Não se preocupa com a verdade,
Só com o querer, o corpo e o cheiro
Que lhe excitam as vontades.

Para amar, ah, mulher,
Não é necessário virtudes,
Caráter, qualidades morais,
Predicados intelectuais
Que ajudam a amar,
Mas não nos roubam o ar
Como só conseguem os sensuais
E ninguém mais.

Para amar, mulher,
É preciso apenas um rosto,
Um sorriso, um olhar,
Um jeito de ser
E de se expressar
Que só consegue ver
Quem está apaixonado.

Pois só a fantasia e a ilusão
Podem fazer, mulher,
Amar um coração.

Pois o amor é um raio
Que ilumina
O espelho d'água
De dois olhos
Onde vemos refletida
Do coração apaixonado
A própria alma.
 
Para amar

Chuva

 
Chove,
Faz mau tempo
E, no entanto,
Não há
Nuvem no céu.

Chove tanto,
Bocas, luas,
Árvores secas,
Nuas
Aos meus pés incréus.

Chove,
Torrente
Sobre minha cabeça
Sem guarda-chuva
Ou chapéu.

Chove,
Chuva forte
Ou miúda,
Chove
Guerrilhas e disputas.

Chove
De um céu mavorte
Chacinas e mortes.
Chove porque
Somos todos réus.

Chove
Contra o céu
E as gotas de chuva
Enchem-lhe o cálice
Com mares de fel.

Chove
De céus cruéis
O consumo
Que nos determina
A vida e o lucro dos cartéis.

Chove
De um céu sem céu,
Sem lua
Ou firmamento
Ao canto do menestrel.

Chove!
Chuva, queima
De pântanos
E sistemas,
Imenso fogaréu.

Chove
Dívidas, cifras
E despesas,
Chove monstros
Da chuva e da beleza.

Chove
Pouco salário,
Descontos,
O prejuízo acionário
Sobre o povaréu.

Chove
A solidão
Dos sobretudos,
O labéu de impostos
E tributos.

Chove
Contra nossos gritos
O mármore
E o granito
De vetustos mausoléus.

Chove!
Chuva – brasa,
Desespero
Que desaba
Dos arranha-céus.
 
Chuva

Quando eu morrer

 
Quando eu morrer
Me pesará a terra
E não serei
Qualquer coisa
Diferente
De seixos e pedras.

Quando eu morrer
Não sentirei mais
Qualquer carência
E ainda serei matéria,
Vida
A segregar
Purulenta.

Quando eu morrer
Não sentirei
Qualquer necessidade,
Serei apenas
A verdade plena
Da caveira.

Quando eu morrer
Deixarei de ser
O que sou:
Eu, indivíduo,
Ser fechado
E descontínuo
Para me tornar
Inorgânico
Ao todo reunido.

Quando eu morrer
Nada importará,
Quem sou,
Quem fui,
Se vivi entre amigos
Ou feras,
Se fui luz
Ou se fui treva.

Quando eu morrer
Ninguém me pesará
Para saber
Se pesei
Ou se fui leve,

Se cri
Ou se sofri,
Se neguei
E fui feliz,

Se fui algo
Além
Desse ser
Que vela,
Espera
E diz amém.

Quando eu morrer,
Certo torpor
Sentirei,
Nuvens minha vista
Nublarão
E, enfim,
Irromperei
Na escuridão.

Quando eu morrer
Nada verei,
E de tanta vida e beleza.
Não conservarei
Qualquer promessa,

O rosto vão das certezas,
O fogo da juventude
Que nos inflama
E ilude,
O gozo e a chama
Desse corpo
De vicissitudes
Que chora e ama.

Quando eu morrer,
Nada verei,
Nenhum senhor ou rei,
Prato, juiz
Que pesa e condena,

Serei defunto, matéria
Que não revela
Se vivi parco
Ou deveras,

Se fui fraco
Ou se fui forte,
Mas apenas
Que, efeméride,
Ensaiei breve ato
Para a morte.

Quando eu morrer
Qualquer coisa serei
Que não se pesa,
Algo mudo, inerte
Para alguém que reza
E acende uma vela.
 
Quando eu morrer

Eis

 
Eis a cidade dos que não pensam mais,
Dos que são apenas coisa
Que não julga ou medita,
Que não chora ou grita
Nem olha para trás.

Eis enfim a sublime verdade
Anelada por tantos,
Por monges e abades:
O ser infenso ao engano
E à maldade.

Eis o fim de toda a divisão,
De sentir-se descontínuo,
De procurar, aflito,
O que é contínuo
No seio breve da paixão.

Eis o fim
De procurar-me em tudo
E só encontrar-me em mim
Perdido, sem deus
Ou serafim.

De julgar tudo
No pensamento
E não ver que
Todo o juízo
É um punho violento
No espírito
Repleto de certezas
E tormentos.

Que todo rosto,
Seja o da deusa
Ou de um menino,
Tem o mesmo destino
Que o das nuvens
No firmamento.

Eis o fim
De toda a procura,
Para enfim nos tornarmos
Memória, lápide
Ou escultura.

Eis o fim!

Fim da imensa jornada,
Da clausura do eu,
E se tornar coisa insofismável,
Muda e quieta - breu
No espírito do nada.
 
Eis

Isto

 
Deixei de ser cego
E tudo ver
Quando nada vi
Por nada haver,

Quando percebi
Que o que existe
É, e não é
O que desejo e quero,

Quando entendi
Que se houvesse
Paraísos, cidadelas,
Eterna messe

Mataria o que existe
Pelo preço de quimeras,
Por vãs promessas
Onde tudo pereceria,

Pois tudo
Só nos é tudo
Porque detrás
De todo o manto

Só há o breu
Do nada e do escuro,
O silêncio cerrado
E o espanto

Que entretecem
O meu canto
E me subtraem
A luz, o Deus e o encanto,

Pois estar na luz
Em iluminação
É poder ver
Na escuridão.

Deixei de ser cego
Ao compreender
Que por detrás
De tudo o que existe,

De tudo que nasce,
Vive, morre
E se refaz,
Nada resiste

E é por isso
Que tudo o que existe
Não é o caos ou o que creio,
Mas ordenado e perfeito,

Jogo, dado
A erigir
O fado e a beleza
Dos Senhores de areia,

Tudo no todo
Sem centro
Ou aranha
Apenas teia,

O fora e o dentro,
Isto que tudo
Contém
E apanha,

O que chamamos
De vontades, desígnios
Mas que não passa
De algo indistinto,

Alheio,
Por isso lindo
Como bolas
Num sorteio,

Caso contrário,
Não estaríamos aqui
E nem teria visto
Tudo o que vi.
 
Isto

Poema

 
Durante horas de silêncio e sono,
De leitura e angústia,
Ante o cânone, ante incompreensível estro,
Ante confuso mundo, de tão claros enigmas,
Eu não sabia,
Mas o poema sempre esteve ali,
Qual ferida ou queixume,
Qual fruto ou negrume.
Deu o tempo e a técnica se fez no sofrimento:
- Fiat! disse algo dentro de mim
E, entre o fulgor e a escuridão, tímido, na penumbra,
Entre utopias deglutidas,
Poentas brochuras
E defuntas armas e canções
Contra os donos da ordem e do tempo,
Algo fundo revelou-se,
Fosso, abismo,
Exasperado grito
Ou simples pomo pendido.
Deu a hora e me precipitei,
Colhi o poema,
Trinquei os dentes nele
E o apreciei deveras,
Vociferado, em profundo negror
Com a boca esfaimada do mundo.
Senti sumo acre,
Sabor amaro,
Iniludível
E abismal.
Gostei
E não senti qualquer contentamento!
Hoje, ofereço-o,
Oceano ou ruína,
Fruto
Ou salto no abismo,
A quem quiser
Algo diferente do ópio, da fuga, da nuvem
E do frenesi diário e intenso,
Para sempre infenso
Às águas que afluem da memória
 
Poema

Escravo

 
A Antônio Franco Alexandre

Escravo escrevo
De tudo
Ou
De quase tudo,

De becos e tiros
De ruas e fuzis,
De largas avenidas,
Livros e vitrines,
De alvoradas e crepúsculos,
De estrelas e amplidões,
De luas e bondes,
De portos e naus
Que apontam
Magoados
No horizonte
De concreto e fastio.

Na escrita,
Nem tudo é livre
Como na fala
Que livre
Perde-se longe,
Prolixa,
Com suas pontes
Frágeis, feéricas,
Pois a da escrita
É fixa
De madeira
E prego,
Embora levadiça.

Escravo escrevo
Da escrita,
Da vida
Que o corpo mancha
E o levita
No espaço
Sintático do ser.

A palavra amiga
Súbito
Assume brusca
Estranheza
Na sintaxe
Quase estrangeira;
Quer agora
Ser ferida de beleza.

Escravo escrevo
Da escrita,
Livre de tudo
Ou
De quase tudo,

Do que não é
Obtuso, escuso,
Sujo, da límpida
Retórica de tribuna,
Escravo do que aéreo
Se espatifa
No chão úmido,
Túmido
De súbito sangue.

Na escrita,
Nada é escravo
Do corpo livre da fala.
Escrita
Que tantas vezes
Cala,
Porque nela
Não há altercação,
Interlocução,
Copiosos gritos,
Mas leitura,
Grave tessitura
E leitores
Reclusos
No silêncio.

Na escrita
Nem tudo fala,
Mas deixa
Lido,
Movediço
Na ante-sala
Da escritura –

Face marmórea
Do instável
Onde escravo
Escrevo inscrito.

Na fala
Quase nada escreve,
Inscreve-se,
Embora fóssil
Vire gramática,
Escrita escrava
Do corpo
Que foi fala.

Escravo escrevo
Proscrito da fala,
Inscrito na escrita
Em meio a tudo o que fala
E que escravo se inscreve.
 
Escravo