Poemas, frases e mensagens de Paulo Leminski

Seleção dos poemas, frases e mensagens mais populares de Paulo Leminski

Ali

 
ali

ali
se

se alice
ali se visse
quanto alice viu
e não disse

se ali
ali se dissesse
quanta palavra
veio e não desce

ali
bem ali
dentro da alice
só alice
com alice
ali se parece
 
Ali

Aviso aos náufragos

 
Esta página, por exemplo,
não nasceu para ser lida.
Nasceu para ser pálida,
um mero plágio da Ilíada,
alguma coisa que cala,
folha que volta pro galho,
muito depois de caída.
Nasceu para ser praia,
quem sabe Andrômeda, Antártida,
Himalaia, sílaba sentida,
nasceu para ser última
a que não nasceu ainda.
Palavras trazidas de longe
pelas águas do Nilo,
um dia, esta página, papiro,
vai ter que ser traduzida,
para o símbolo, para o sânscrito,
para todos os dialetos da Índia,
vai ter que dizer bom-dia
ao que só se diz ao pé do ouvido,
vai ter que ser a brusca pedra
onde alguém deixou cair o vidro.
Não é assim que é a vida?
 
Aviso aos náufragos

A poesia é um inutensílio

 
A poesia é um inutensílio. A única razão da poesia é que ela faz parte daquelas coisas inúteis da vida que não precisam de justificativa porque elas são a própria razão de ser da vida. Querer que a poesia tenha um porquê, querer que a poesia esteja a serviço de alguma coisa é a mesma coisa, por exemplo, que você querer que um gol do Zico tenha uma razão de ser, tenha um porquê, além da alegria da multidão. É a mesma coisa que querer, por exemplo, que um orgasmo tenha um porquê. É a mesma coisa que querer, por exemplo, que a alegria da amizade, do afeto, tenha um porquê. A poesia faz parte daquelas coisas que não precisam ter um porquê. Pra que porquê?
 
A poesia é um inutensílio

Razão de ser

 
Escrevo. E pronto.
Escrevo porque preciso
preciso porque estou tonto.
Ninguém tem nada com isso.
Escrevo porque amanhece.
E as estrelas lá no céu
Lembram letras no papel,
Quando o poema me anoitece.
A aranha tece teias.
O peixe beija e morde o que vê.
Eu escrevo apenas.
Tem que ter por quê?
 
Razão de ser

eu confesso

 
parem
eu confesso
sou poeta

cada manhã que nasce
me nasce
uma rosa na face

parem
eu confesso
sou poeta

só meu amor é meu deus

eu sou o seu profeta
 
eu confesso

Bem no fundo

 
no fundo, no fundo,
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nosso problemas
resolvidos por decreto

a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela -- silêncio perpétuo

extinto por lei todo o remorso,
maldito seja quem olhar pra trás,
lá pra trás nã há nada,
e nada mais

mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos saem todos passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas
 
Bem no fundo

Poetas Velhos

 
Bom dia, poetas velhos.
Me deixem na boca
o gosto dos versos
mais fortes que não farei.

Dia vai vir que os saiba
tão bem que vos cite
como quem tê-los
um tanto feito também,
acredite.
 
Poetas Velhos

Se

 
se
nem
for
terra
se
trans
for
mar
 
Se

Aço e Flor

 
Quem nunca viu
que a flor, a faca e a fera
tanto fez como tanto faz,
e a forte flor que a faca faz
na fraca carne,
um pouco menos, um pouco mais,
quem nunca viu
a ternura que vai
no fio da lâmina samurai,
esse, nunca vai ser capaz.
 
Aço e Flor

Um homem com uma dor

 
um homem com uma dor
é muito mais elegante
caminha assim de lado
como se chegasse atrasado
andasse mais adiante
 
Um homem com uma dor

fazia poesia

 
fazia poesia
e a maioria saía
tal a poesia que fazia
fazia poesia
e a poesia que fazia
não é essa
que nos faz alma vazia
fazia poesia
e a poesia que fazia
tinha tamanho família
fazia poesia
e cada tábua que caía
doía no coração
fazia poesia
e fez alto em nossa folia
fazia tanta poesia
que ainda vai ter
poesia um dia
 
fazia poesia

Três Metades

 
Meio dia,
um dia e meio,
meio dia, meio noite,
metade deste poema
não sai na fotografia,
metade, metade foi-se.

Mas eis que a terça metade,
aquela que é menos dose
de matemática verdade
do que soco, tiro, ou coice,
vai e vem como coisa
de ou, de nem, ou de quase.

Como se a gente tivesse
metades que não combinam,
três partes, destempestades,
três vezes ou vezes três,
como se quase, existindo,
só nos faltasse o talvez.

[do livro Distraídos Venceremos]
 
Três Metades

O Paulo Leminski

 
O Paulo Leminski
é um cachorro louco
que deve ser morto
a pau e pedra
a fogo a pique
senão é bem capaz
o filho da puta
de fazer chover
em nosso piquenique
 
O Paulo Leminski

tudo que eu diga seja poesia

 
moinho de versos
movido a vento
em noites de boemia

vai vir o dia
quando tudo que eu diga
seja poesia
 
tudo que eu diga seja poesia

Epitáfio para alma

 
aqui jaz um artista

mestre em desastres

viver com a intensidade da arte

levou-o ao infarte deus

tenha pena dos seus disfarces
 
Epitáfio para alma

Minifesto

 
ave a raiva desta noite
a baita lasca fúria abrupta
louca besta vaca solta
ruiva luz que contra o dia
tanto e tarde madrugastes

morra a calma desta tarde
morra em ouro
enfim, mais seda
a morte, essa fraude,
quando próspera

viva e morra sobretudo
este dia, metal vil,
surdo, cego e mudo,
nele tudo foi e, se ser foi tudo,
já nem tudo nem sei
se vai saber a primavera
ou se um dia saberei
que nem eu saber nem ser nem era

[do livro Distraídos Venceremos]
 
Minifesto

Profissão de Febre

 
quando chove, eu chovo,

faz sol, eu faço,

de noite, anoiteço,

tem deus, eu rezo,

não tem, esqueço,

chove de novo, de novo, chovo,

assobio no vento, daqui me vejo,

lá vou eu, gesto no movimento
 
Profissão de Febre

Desencontrários

 
Mandei a palavra rimar,
ela não me obedeceu.
Falou em mar, em céu, em rosa,
em grego, em silêncio, em prosa.
Parecia fora de si,
a sílaba silenciosa.

Mandei a frase sonhar,
e ela foi num labirinto.
Fazer poesia, eu sinto, apenas isso.
Dar ordens a um exército,
para conquistar um império extinto.
 
Desencontrários

O par que me parece

 
Pesa dentro de mim
o idioma que não fiz,
aquela língua sem fim
feita de ais e de aquis.
Era uma língua bonita,
música, mais que palavra,
alguma coisa de hitita,
praia do mar de Java.
Um idioma perfeito,
quase não tinha objeto.
Pronomes do caso reto,
nunca acabavam sujeitos.
Tudo era seu múltiplo,
verbo, triplo, prolixo.
Gritos eram os únicos.
O resto, ia pro lixo.
Dois leões em cada pardo,
dois saltos em cada pulo,
eu que só via a metade,
silêncio, está tudo duplo.
 
O par que me parece

Eu

 
eu
quando olho nos olhos
sei quando uma pessoa
está por dentro
ou está por fora

quem está por fora
não segura
um olhar que demora

de dentro de meu centro
este poema me olha
 
Eu

Paulo Leminski Filho
( 24/08/1944 — 07/06/1989)
Autores Clássicos no Luso-Poemas