A abelha de Salvador Dalí
Por inóspitos caminhos deslizou
suas pernas cansadas
sob o sol de estio.
Entre relvas e ervas descansou,
no torpor envolvente a imaginar,
que da ampla seara ao se deitar,
desgastada das regras da razão,
voariam os deuses da imagem
numa nesga de errônea devoção,
onde tigres ferozes não mordiam
ante a dança profana surreal,
já que a abelha,
(rainha magistral)
sem saber que do mel tudo podia,
realçava a beleza e a poesia
de Dalí em sua tela genial.
por aí
o medo que tenho da solidão
é o mesmo que me afasta da multidão
e, assim, medroso polar
estreito os laços da vida
expandindo meu jeito de andar
Cavalo selvagem
Não sei decorar poemas,
pois os poemas não ficaram
para serem decorados.
Poemas não ficam.
Poemas transitam
em grandes saltos,
galopando em terras selvagens,
decorando minha sala
selada.
Não sei decorar poemas,
nem domar suas pernas aladas,
quando se lançam em disparada,
assustados.
Só sei enfeitar minha mesa de mármore,
que queima e me inferniza
quando leio poemas,
segurando em suas rédeas
desabaladas.
A esfera ofegante
Era noite e o vento assobiava
em meus tímpanos aquecidos
pelas brasas do tempo
quando o éter das horas derramou
suas gotas na esfera ofegante de minha cabeça
vadia.
Na passagem das horas
Netuno chacoalha os braços,
ondulando os peixes da desordem
em alto mar de palavras caladas,
paradas,
aladas,
fazendo crescer o silêncio
em seu ímpeto de delfim.
Incerteza
Hesitei em mandar aquela mensagem
e o laptop paralisou em frente à tela
quando pintei a óleo
o embelezamento da dúvida.
Era uma mensagem quente, caliente,
que hesitei em mandar
e meu sentimento ficou off-line
a queimar como gelo.
A mão sobre o mouse,
o dedo lesionado
e o olho ressecado,
atentos ficaram
à espera de uma ordem para
deletar a timidez,
antes que eu decidisse em ser resetado.
Arma branca
São quatro os símbolos cortantes
que gravam o teu nome no meu corpo
ardente;
são facas afiadas que reluzem o brilho do amor;
do amor que me mata
sem que haja tempo
de matar a fome.
Ataca-me como uma arma branca
deslizando,
perfurando,
cortando com contundência,
fazendo jorrar o rubro deste sentimento que não estanca.
Desarmado,
sinto as últimas linhas
de sangue que escorrem traçando
as quatro letras que me acalmam
nos instantes finais,
mas ainda vivo.
Em quatro tempos me matas
e, ferido,
sinto lacerar a certeza de que esta dor
(por mais que queiram)
não fere mais do que a falta
das facas.
Planta do pé
Munido de força e escuridão
arrasto-me pelo calçamento pedregoso
rumo à lida educativa
a professar palavras
incompreendidas.
Penoso trajeto
que realizo
sentindo quente o pé direito
a tocar a solidez do chão,
quando o salário
não dá para comprar um novo
sapato.
Sem salário,
estouram-se os calos de sangue
que se formam em meu pé,
aumentando minha coleção de calos
como bem previ em minhas palavras
proferidas sem compreensão.
Luminária
Da tarde nublada
sobrou a mordaça entediada
e os frios ventos da distância
sabatinavam minha modorra televisiva.
Não tinha sono, nem mesmo insônia.
Fui vitimado por uma lucidez irritante,
inebriado por uma coerência
que me impedia o descanso,
a fuga.
Eu desejava dormir
profundamente.
Eu desejava sonhar,
certamente.
Eu não conseguia acordar,
com razão.
Prato principal
Deixe-me passar com esta dor e amor
Não bata em seu rebento, faça-me o favor
E não pise na grama do canteiro em flor
A vida é dar ou desce e mesmo assim não dou.
Atravesse a rua e a Ponte Wall Ferraz
Resolva seus problemas, vá com todo gás
Prove da buchada, bote um pouco mais
Morreu Maria Preá e agora o que se faz?
Serve a tua carne seca e vem
Saber que teu dinheiro não vale um vintém
Serve a tua carne seca e vem
Saber que nem é teu aquilo que tu tens.
O comum das coisas
Nas casas desertas
vegeta o comum das coisas incomuns
e a rua parte os laços para que nem tudo
se perca entre os quartos,
e para que ainda haja o gosto
de se encontrar palavras.