exclusão
quis tudo nada tive
era o excluído de toda lista
um pária invisível à margem do todo
não era ninguém
e assim comecei
catando qualquer coisa à mão
bituca de cigarro e tiras de jornal
tampinha de garrafa e velho vinil
barbante e retalhos de pano
papelão e pente sem dente
radinho de pilha pifado
bobs com cabelo de mulher e tudo
um tanto de parafusos ou menos
tudo que ninguém mais quer
tudo meu só meu
tinha tudo nada me faltava
dizem que caí doente
mas doente era toda essa gente
invejosos de tudo que juntei
me atiraram em cima dum caminhão
e no hospital inventaram uma tal
de intervenção cirúrgica
um a um
tudo que juntei do nada
num passe de mágica
sumiu
removeram tudo nada sobrou
e em meio a tudo nada de mim
em lugar nenhum
tao
todas as portas são abertas
todas as curvas são retas
todos os obstáculos
meros oráculos
ao homem que sozinho
conhece o caminho
inspirado pelo belo soneto de Francisco Zebral:
http://www.recantodasletras.com.br/sonetos/3945343
e pelo Tao te Ching dos chineses
Tao significa caminho
vinho em copo de cachaça
vinho em copo de cachaça
trago suave, e os brindo
o que contém, não a taça
é o que traz à alma abrigo
clamor
o que queima em minhas entranhas
é fulgor descontrolado
que me fere, me arranha
se derrama a todo lado
sou culpado sendo vítima
desse mal que nos assola
é uma pena, pena mínima
deveria ser degola
nos deixamos abater
como gado que nós somos
pelos pastos, por lazer
uma bala e já fomos
pelos campos rio rubro
marcha quente, indecente
é um massacre e me cubro
lavo as mãos por essa gente
limbo
lá fora, sem um prazo, azul celeste...
cá dentro, pura urgência e talvez
lembrando que num dia foi-se um mês
lamento pelo adeus que vem do oeste
areia cobre os campos e mi'as vestes
sufoco mas não morro, ao invés
sou tronco desfolhado e meus pés
raízes do passado que me deste
o tempo, inclemente, passa rápido
roçando por meus galhos seu queixume
penoso, vai embora sem seu rapto
assim como a areia pelos dedos
também meu verde pasto é como lume:
acendo quando quero longe o medo
arapuca
atraído por migalhas -
foi meu fim.
hoje canto dissabores,
deus me valha!
ontem livre, qual um canto
sobre amores
por encanto vi-me preso
com mortalha
se no peso dos rancores
duma gralha
eu detive, receoso,
alguns temores
a promessa de sabores
foi-me falha
e traído na batalha
fui enfim
precisando de alimento
pros meus sonhos
tão à frente de meus olhos,
tão à frente
não importa nada mais
que tal presente
nem me acerco dessa cerca
em que me ponho
tenho sede, tenho água...
não entendes?
tenho tudo exceto o canto
ao qual te rendes
Bebendo sozinho sob a Lua
em meio às flores, um jarro de vinho
bebo sozinho, ninguém por perto
a taça elevo, convido a lua
vejo minha sombra, e já somos três
pena não saber beber a lua
e minha sombra só ficar na sua
mas serão elas minhas companheiras
de bebedeira na primavera
eu canto e a lua se abrilhanta
danço - tremula a sombra, se parte
enquanto sóbrio, fomos felizes
quando bêbado, cada um parte
possa eu rumar livre de saudade
até nos vermos na Via Láctea
Li Bo, "Bebendo sozinho sob a Lua", circa 740
adaptação minha, a partir de algumas traduções para o inglês
torcicolo
torcicolo
esse pequeno mal foi o responsável pela decadência humana
pelo estado em que nos encontramos hoje
com lama até o pescoço
sim, pois
em determinado momento na história
estávamos em plena marcha pelo progresso
admirados com os altares altíssimos
que construímos para nossa glória eterna
admirados com as mil filigranas
de irrelevâncias cosméticas
a decorar seus imensos murais
e de tanto olhar para cima, crec!
aquela dor no pescoço
aquela imobilidade
não, nunca mais
não é para nós
passamos então a olhar para baixo
para nosso próprio umbigo
para nossos próprios passos
para nossos pés imundos
para minhocas e vermes
para a pequenez que o cotidiano nos oferece
sem jamais novamente olhar para cima
ou para frente
antes fosse diabetes e deixássemos doces de lado
platéia
vida, lúdica vida
ora teatro, ora um jogo
onde tudo vale, tudo é engodo
importa vencer e domar a platéia
ganhar aplausos e marcar ponto
ninguém pergunta o porquê
para quê tanto drama e disputa
para agradar alguém que não se vê
desilusão
dizem-me que ando desiludido
olham-me compadecidos, cabisbaixos
murmuram-me afagos como quem amamenta
calado os observo de soslaio
pois é um mundo de ilusões
e quem não mais as tem, planta ou acolhe
vive em estrita dieta de ex-iludido
e é feliz na magreza dos dias