Gatos do Beiral
Sabes, ainda pensei escrever-te uma carta
Enviar-te um ramo de prosas que me nascem nos dedos
Ou simplesmente fruta do quintal
Mas tive receio que não compreendesses
o Braille dos meus degredos
A forma crua como faço música com as lágrimas
Nos acordes despidos dos vinhedos
Ainda pensei se não seria o caso de te falar
pelos ramos das árvores
Pelo Às das suas copas
Se não estaríamos no tempo de fazer regressar as tropas
Mas depois, quando lavrei a terra
que se juntara em volta do meu coração
Senti que me faltava a semente do teu beijo
E sabes que eu sempre te sonhei pela boca, fio de água
Germina então comigo neste inverno, mão na mão
Tudo aquilo que sempre nos faltou afinal
Agasalha-te neste relento, neste desejo, nesta frágua
Que já mandei dizer que te amava pelos gatos do beiral
in: «O amor é um tema batido» - 2011
Era uma vez uma história começada por era uma vez
Era uma vez uma história que ainda não tinha sido escrita, por isso não começava, não se desenvolvia, nem acabava.
As personagens não eram nem principais nem secundárias, porque ainda não tinham sido criadas.
Passar-se-ia numa folha branca, num dia em que o escritor se sentasse à sua secretária, de frente para a janela de onde se avista uma outra.
Vive lá uma mulher que deseja muito ser amada, mas que a cidade esqueceu. A sua história é tão desconhecida como as razões de uma página branca desafiando quem a olha.
Está ali, à distância de uns dedos que a toquem, de um corpo que a preencha e tome. Mas o escritor não sabe disso na hora de escrever a sua própria solidão, por isso imagina histórias começadas por era uma vez.
E foi o que fez da vez em que viu um rosto belo de mulher abeirar-se da janela que fica de frente para a janela da sua escrita. Cabelos escuros, abaixo de uns ombros delicados. Seios que se adivinhavam redondos, num corpo generoso que merecia o sol naquela tarde cinzenta de inverno.
Logo a tomou como personagem, rodeando-a à distância com suas mãos abertas e seus braços longos. Sentiu-se acompanhado pela tristeza que descobriu nos seus olhos salgados e distantes, profundamente tocado por uma ternura que precisava das palavras para se cumprir. Por isso, como um pintor que pinta um modelo fortuito surgido do nada, começou a escrever a sua história.
Falava de uma mulher esquecida pela cidade, capaz de amar intensamente, mas à espera de uns dedos que a tocassem, a tomassem, despindo-a da angústia dos dias iguais.
De tão embrenhado que estava na construção daquela história que agora existia, se desenvolvia e caminhava para o fim, nem se apercebeu de uma estranha azáfama no rés-do-chão, misturada com gritos e olhos tapados de dor. Sequer de um policia correndo as cortinas da janela que ficava irremediavelmente de frente para a sua escrita.
Terminava bem aquele texto que escreveu em tributo a uma mulher que pressentiu de forma fugaz naquela tarde cinzenta de inverno. Tinha-lhe oferecido o amor, em palavras como agasalho aos dias tristes e sós de uma cidade que se esquece de partilhar afectos na sua volúpia.
Rubra era a calçada, quatro andares abaixo da eternidade.
Um filho da mãe de um texto curto de amor
Lembras-te de apagarmos com borracha da Pelikan os mais belos poemas de amor que fizemos, confessos personagens das tramas que urdimos?
Que sobrava de nós naquela página?
Lembro-me que me disseste: - Se um dia tudo for mar e não tivermos tempo para ganhar guelras, quero morrer no teu beijo…
E eu sorri, lembras-te? Acho que porque já éramos amantes e não o sabíamos.
Depois fomos um búzio.
Amanhã, quando o tempo acordar, vou estar a crescer no vaso da tua janela.
in: Texto da contracapa de «O amor é um tema batido» Temas Originais 2011
Hoje é um bom dia para te dizer
Da janela da minha alma
Avista-se a paisagem branca onde os signos se encontram
E os passos da escrita se gravam sem querer
Faz frio na página e as palavras usam cachecol ao pescoço e roupas quentes de lã
Estou junto à lareira que me traz os olhos a crepitar das histórias que m’afrontam
A aquecer os dedos no calor de um afago a arder
Teu corpo de letras estendido no meu
Tapete quente e Persa das mil memórias em que me esqueço
Parece-me que hoje é um bom dia para incendiar o amor nesta fogueira dos
segredos
Mesmo que a página não fale de ti no seu silêncio branco
Nem se tinja do teu hálito
Nem seja casulo onde me teço
Já te nomeei afinal em mil poemas
Erigi em guerra santa a mesquita do teu ventre em todos os momentos
Fiz-te um filho de palavras como quem semeia o futuro
E se cumpre no soprar dos ventos
Em ti que sou o amante no caminho da faca
Navio sem âncora nem mar
Doca seca do meu desejo de amar
Se me encontrares hoje tombado no veneno do que aqui disser
Se de angústia se fizer esta dor de não saber a quem endereçar este amor de fel
Não terá sido culpa tua nem sequer do branco do papel
in: «Os poemas não se servem frios» - 2010
A festa já tinha acabado
A festa já tinha acabado.
Não restava mais que um bêbado reconhecido agarrado às costelas do balcão.
O facto de não teres vindo, o hálito que não deixaste num trago de conversa, ou o batom que não usas.
Um poema que não se escreveu, um sorriso que não se esboçou.
Um barman que corre as portadas à noite num trago.
O lixo à porta.
Importas-te que amanhã me voltes a faltar, quer queiras quer não queiras, e eu gaste fósforos a construir castelos nesta estranha geriatria dos medos?
Que me faça de esquecido e te ame perdidamente nas ausências?
Importas-te de fechar a porta, de acender a luz, de te desnudares completamente?
Estou aqui. Onde se perdem os ventos das rosas.
Consegues cheirar quando não estás, os cheiros dos meus cais?
As asas caravelas das gaivotas?
Embarca então neste beijo que te dou de mãos arregaçadas,
E pernoita na minha dor.
in: «O amor é um tema batido» - 2011
Quintais do desejo
Sharon Stones da minha alma de saia curta bem me picam
Descruzam pernas no meu texto como se eu não soubesse o que lá existe
Já lhe chamei um búzio e ouvi nele o barulho de um porto:
De barcos que partiam mal chegados
De ruídos de sirenes, de apitos de cais, do descer chiado dos botes
Do ranger celestial dos guindastes
O vento sempre me soprou nesse barulho de mar a liberdade
Virando páginas dentro de mim
Aproveitando velas içadas nos meus dedos de mãos abertas
Mas houve vezes em que o ar se tornou insustentável até para as gaivotas
Forçadas a romper os dias pelas ancas
Foi pelos dedos que lavrei a terra a cada vez que acostei
Na enseada calma do teu corpo estendido
Ilhéu descalço onde me coroaste rei
Com as tábuas do meu barco fiz casas para te morar
Como quem cerca uma propriedade por dentro
Nesse extenso egoísmo de terra-tenência que é amar
E depois, quando foi tempo novamente de largar amarras
Derrubei as árvores que tinham nascido nos quintais do nosso desejo
Para fazer um amor que fosse capaz de flutuar
Foi por isso que ainda não cheguei da viagem ao coração de uma mulher
Perdido que estou, algures entre a partida e o caminho
in: «os poemas não se servem frios» 2010
Encontro
Encontro
Encontrou-se o vento com a neblina
Sorrateiro em páginas letais
Para copular com a noite fina
E reescrever com sémen os finais
Encontrou-se o pássaro com o céu
Mesmo tendo desaprendido de voar
Uma mulher reencontrou o seu
Por nunca ter deixado de o procurar
Só não havia lugar para os loucos
Naquela trama assim escrita
Porque muitos eram os outros
E cabia nessa trama, a desdita
Foi por isso que tiramos as máscaras
Rasgamos ao meio os enredos
E demos novos rumos às diásporas
Para trás ficaram embalsamados os medos
As bocas quase sós de tão ásperas
E os textos a nascerem-nos dos dedos
in: «Os poemas não se servem frios» - 2010
Lua morena
Havia um quarto crescente
Que a tristeza dos olhos mentia
E lençóis nos lábios de cetim
Lua incandescente e quase nua
Havia do amor um lado crente
Que o outro lado também sentia
Desejo de abraços sem ter fim
Lua incandescente e quase nua
Viagens de naves - caravelas
Em todas as viagens singelas
vaga-lume aceso no teu sorriso
Lua incandescente e quase nua
Tempo do teu tempo preciso
Quarto de luz despido nas janelas
Lua morena ao fundo da minha rua
Carta de amor a um peito aberto
Merendássemos o beijo como andorinhas de beiral. Fizéssemos ninho com fios de sol. Tivéssemos filhos de seda em casulos, bebêssemos orvalho por tisanas.
Plantássemos gerânios na boca de um lago, espreitássemos por canas a sede, disséssemos o que nos inquietava por rãs formadas em línguas.
Mandássemos vir exércitos em conchas de madrepérola, preenchêssemos os lugares com o cheiro que exalasse dos olhos da maresia
E nesse não sabermos que éramos felizes, tricotássemos um pulmão de nuvem no peito aberto que sobrasse de nós, e uma gaivota se encarregasse de levar para longe.
Depois morreríamos com o dia estendido a nossos pés, no pôr dos continentes, como ovos de tartaruga prestes a eclodir.
Das tripas coração
Para te amar piquei-me numa alcateia de cactos. Uivei como um lobo
Para te amar fiz das tripas coração, juntei cominhos à alfazema da tua boca
Para te amar colhi um segredo que não posso dizer, um confessionário triste
Um rasto de formigas, um pedaço do pão do teu ventre comido por pássaros
Na casa de chocolate, tu eras, na ombreira da porta, um beijo que parecia de mel
Um caçador que disparou sobre a avó da cegueira que não tinha idade nem arte
E depois encheu de pedras o ventre dos sonhos, Gratel cheia de garbo, porcos
Vou contar-te como me sinto: um silvo de bala, uma avó, um sonho não cumprido
E tu, capuchinho vermelho do azul dos olhos, és a lagoa mais bela da casa derrubada
A palha onde os ratos que roem o poema pelos olhos dos leitores, acasalam
E quem me dera, e quem me dera, que tu fosses destas histórias das coisas, Cinderela
Uma espécie da carochinha - quem quer casar, quem casar, com um verbo pequenino?
E eu, meu amor, minha vida, meu teatro de sonhos, fosse apenas o adjectivo mais curto:
- Só poema, só história, só personagem, só gente, só multidão, só tu, só eu
Só.