Poemas, frases e mensagens de britoribeiro

Seleção dos poemas, frases e mensagens mais populares de britoribeiro

Nos mares do Norte (2ª parte)

 
Ainda era noite quando sentiu o arrastar dos tamancos e a cantilena dos “Louvados” que o homem de quarto usava para acordar os pescadores. Parecia que tinha acabado de se deitar. Levantou-se estremunhado, calçou as botas, vestiu a samarra e comeu um naco de pão da véspera e um púcaro de café que o novo “moço” da cozinha tinha pousado sobre a mesa.
Preparou o baú com a merenda, foi buscar a isca para ele e para o Raposo, subiu ao convés para ajudar a arrear os doris, primeiro os mais velhos, por último os “verdes”.
O céu estava encoberto e já se adivinhava alguma névoa. Com o nascer do dia iria levantar, era costume. O Capitão Maldonado tinha-os avisado: “Todos a pescar aqui perto, ninguém se afasta. Se tocar o sino, regressem de imediato”.
Nem era preciso avisar, mesmo os mais afoitos não gostavam de se afastar do navio quando havia névoa.
O Chico aproximou o seu doris da embarcação do Raposo que lhe comunicou a intenção de pescar para lá da popa do lugre. Em poucos minutos estavam em posição, prepararam a isca, as linhas, o bicheiro e largaram os aparelhos. Estavam a pescar a menos de cem braças e quando alavam um dos aparelhos, os bacalhaus subiam regularmente à superfície, presos na armadilha do anzol, acabando a estrebuchar no fundo das frágeis embarcações.
A ligeira névoa matinal mantinha-se, o mar estava raso, quase estanhado, salpicado de pequenos doris em redor do “Senhora da Ajuda”, como a galinha vigiando os seus pintainhos.
- Tio Raposo, no aparelho que larguei por último, deu-me peixe maior. Ó Tio Raposo, está a ouvir?...
O silêncio reinava sobre as águas.
- Tio Raposo, que raio está a fazer, assim, de rabo para o ar?
Do pequeno doris do Raposo, suavemente embalado, não vinha resposta. O Chico alou as linhas que tinha na água, armou os remos e transpôs rapidamente a distância que os separava. Só via as costas do Raposo debruçado sobre o banco, como se procurasse algo no fundo do barco.
Quando encostou de bordo as duas embarcações, pode apreciar que o Raposo não se mexia e tinha a cabeça no chão. Passou um cabo de amarração e saltou com agilidade para o outro barco.
-Tio Raposo, que lhe aconteceu? – E puxou-lhe pelo casaco de oleado de forma a endireitar o seu velho companheiro.
A cabeça do Raposo pendeu sobre o peito e quando o Chico lha levantou pôde ver uns olhos abertos, mas vidrados e um fio de espuma que lhe saía da boca para o queixo. Largou-o como se queimasse, saltou para trás, tropeçou na caixa da isca, indo estatelar-se de costas sobre os bacalhaus recem-capturados.
O Raposo, sem amparo, voltou a escorregar lentamente até apoiar a cabeça no fundo do barco. Levantou-se a custo daquele leito forrado a peixe, aproximou-se do companheiro, voltou a endireitá-lo e procurou algum sinal de vida.
Tomou-lhe o pulso mas como tinha as mãos geladas, desistiu e decidiu-se a desabotoar-lhe o oleado e a samarra que tinha vestido. Tirou o gorro e encostou a orelha ao peito do Raposo, à procura do bater do coração. Não sentiu nada, mudou de posição, voltou a tentar sem resultado.
Sentia-se afogueado apesar do frio cortante que fazia essa manhã. Endireitou-se para acenar ao lugre, para avisar a situação do Raposo, e ficou pasmado com o manto branco de nevoeiro, que tudo cobria. Uma pequena brisa, na qual não tinha reparado, arrastava consigo o maldito nevoeiro.
Distraído no auxílio ao Raposo tinha-se esquecido de vigiar o céu e o mar. Que fazer? Olhou em volta, nada se via. Não tinha ouvido o sino do lugre. Já deviam ter tocado a chamar os homens e a orientá-los para a sua posição.
Os minutos seguintes passou-os num crescendo de angústia, procurando descobrir alguma referência entre as baforadas de nevoeiro que passavam. Suspendeu várias vezes a respiração para melhor ouvir um qualquer ruído que o orientasse. Nada! Absolutamente nada! Não via, não ouvia nada fora dos barcos, amarrados um ao outro.
Saltou para o seu, pegou nos remos, orientou-se pela agulha de marear que o contra mestre Antunes lhe tinha confiado. Tinham-se posicionado a oeste do lugre, pela sua popa. Se remasse para este, teria de dar com ele, pelo menos aproximava-se e ouviria o sino. Provavelmente havia mais pescadores perdidos no nevoeiro. Ou só estariam eles fora? E o Raposo que estava morto, que lhe iam fazer? Continuou a remar lentamente, levando a reboque o outro doris.
Lembrou-se do búzio que tinha na caixa sob o banco, parou de remar, remexeu as tralhas, levou o búzio à boca e soprou com toda a força. O som cavo da concha ecoou no silêncio branco que o rodeava. Esperou a resposta em vão, tornou a tocar o búzio, esperou, tocou, repetiu durante muito tempo este ritual. De vez em quando olhava para o Raposo que repousava encostado ao banco com a cabeça inclinada de lado.
Tinha perdido a conta às horas, tinha sede, bebeu dois goles da garrafa da água, não conseguia comer nada, parecia que tinha a garganta apertada. O Chico pensava na desgraça do Raposo, um homem que vendia saúde e que caiu sem dar um ai. E se o lugre não os encontrasse, que seria feito dele? Para já o frio suportava-se, mas o dia já estava a cair e durante a noite devia ficar tudo gelado. Seria ele capaz de aguentar?
Tirou as luvas, enrolou com dificuldade um cigarro, acendeu-o e soprou o fumo para o ar, vendo-o misturar-se com o nevoeiro que passava.

(continua)
 
Nos mares do Norte  (2ª parte)

Nos mares do Norte (1ª parte)

 
O Chico já andava ao bacalhau há quase três anos. Tinha embarcado como “moço”, com quinze anos e nas duas primeiras viagens foi ajudante do cozinheiro. Mas quando a cozinha estava fechada havia sempre qualquer coisa para fazer. “Ó Chico, vai buscar um novelo de fio ao porão”, “Ó Chico, vai carregar sal”, era assim todo o dia e parte da noite, restando umas magras horas para descansar na tarimba. O rapaz era magro, mas rijo e comida não lhe faltava na cozinha. Podia ser sempre a mesma coisa, mas nesse particular, era um dos poucos privilegiados a bordo.
Já fazia a “chora” tão bem ou melhor que o cozinheiro com quem tinha aprendido e não havia nada na cozinha que já não soubesse fazer.

Na terceira viagem o Capitão Maldonado, o “Ferreiro”, como lhe chamavam à boca pequena, debruçado no varandim da amurada, olhou-o com atenção quando cruzou o portaló, com o saco da roupa às costas.
- Vai arrumar isso e anda ter comigo à câmara.
- Sim, senhor Capitão – respondeu o Chico, embaraçado e sentindo-se corar, por aquela súbita chamada à presença do capitão, nenhum pescador gostava de ir, porque geralmente significava aborrecimentos.
De boina na mão apresentou-se ao Capitão Maldonado, um indivíduo franzino, muito moreno, da zona de Ílhavo, filho e neto de pescadores que se tinha alistado novo na Marinha. Estudou e foi aproveitando as oportunidades, chegou a comandar um draga-minas e quando saiu da Marinha de Guerra, tinha à sua espera o lugar de imediato num lugre, onde fez duas viagens à Terra Nova, para aprender os pesqueiros.
Daí para cá tinha comandado o “Senhora da Ajuda”, um lugre de três mastros que, com a graça de Deus e a habilidade dos pescadores, todos os anos, no inicio do Outono atracava carregado com 350 toneladas de bacalhau, nos Cais de Aveiro.

- Tu és o Francisco Gomes, de Âncora, não és? – e sem dar tempo de responder, continuou – Desta vez não vais para a cozinha. Esse borrachão do Sampaio vai ter de arranjar outro ajudante. Vai-te apresentar ao contra mestre Antunes, já tens idade e corpo para ires de “verde”.
O Chico saiu radiante em direcção à coberta da popa, onde o contra mestre dava as suas ordens. A azáfama na véspera da saída é sempre muita, tudo tinha de estar pronto antes da hora de zarparem. Os homens mais experientes passavam revista aos doris, já tinham sido calafetados e pintados, mas podia ter passado alguma deficiência. Os doris eram a principal ferramenta do pescador, o único garante da sua precária segurança, quando pescavam nas águas geladas do Atlântico Norte.
Nos paióis, as linhas, os anzóis e demais utensílios próprios da pesca à linha estavam já guardados e assim ficariam durante quinze dias, o tempo de viagem até ao primeiro banco de pesca.

Quando cruzaram a barra e deixaram para trás o cais salpicado de gente, os familiares e outros pescadores que se vieram despedir, enfrentaram um mar branco de espuma, empurrada pelo vento de sudoeste que rapidamente os afastou da costa. As primeiras horas de navegação não são de falas, todos se recolhem na saudade, na angústia de mais uma viagem, na certeza de uma vida dura e perigosa.
Como “verde”, o Chico passou a acompanhar o Raposo, um homem quase com idade para ser seu avô, que tinha por missão ensinar-lhe a conhecer o mar e os truques da pesca à linha. Quando arreavam os doris, para onde remava o Raposo, logo o Chico partia no seu encalço, sempre atento aos dizeres do velho pescador.
- Ala seguido, rapaz. Não dês puxões, que perdes o peixe. Isso, assim!
- Olhe para este Tio Raposo! É quase do meu tamanho…
- Vá, deixa-te de conversa e olha para o que fazes. Um olho no céu e outro no mar, nunca te esqueças.
 
Nos mares do Norte  (1ª parte)

Litos o traficante 2ª parte

 
O Chico continuaria a ser o seu homem de mão. Guarda-costas e intermediário entre ele e os gajos que iriam vender, que nem tinham necessidade de o conhecer. O Chico era de confiança, se é que se podia confiar em alguém.
Conhecera-o há muito tempo, pouco depois de vir viver para o Porto, era o Chico porteiro de uma discoteca na Foz. Nessa altura era um gajo que metia respeito. Apesar de não ser muito grande, era suficientemente forte para dar conta de qualquer cliente mais recalcitrante.
Depois meteu-se nos copos e foi-se abaixo, perdeu empregos uns atrás dos outros e chegou a um ponto que já ninguém o queria por perto. Uma vez arreou uma porrada num gajo que passou três meses no hospital depois de lhe retirarem um rim esmagado. Como já tinha cadastro, foi “dentro” e reencontrou-se com o Litos em Custoias.
Quando saiu, o Litos chamou-o para o ajudar no negócio, mas só lhe dizia o que lhe convinha, nada de sociedades, nem sequer sabia da oficina de restauro, nem onde ele morava. Quando queria, telefonava ao Chico de uma cabine pública, o seu telemóvel só para receber chamadas, que isto das escutas era caso sério.
Iam ser três gajos a vender e o Chico a tomar conta deles. Cada um tinha de vender vinte pacotes por dia, pelo menos, para dar algum. O mais difícil tinha sido escolhê-los mas tinha de arriscar, nunca se sabe, apesar de já os ter debaixo de olho há muito tempo.

Tinha de ir buscar um pacote, já estava combinado com o tipo que o fornecia. Iriam encontrar-se na estação de serviço da A-28 perto de Viana do Castelo. A troca seria feita nos lavabos com a maior discrição e nunca no mesmo sítio por duas vezes seguidas.
Desta vez tinha encomendado a mais, já a pensar no novo âmbito do negócio, sim negócio, que o Litos abominava os consumidores, apenas via neles uma fonte de rendimentos fácil, embora arriscada, porque quando ressacavam, descontrolavam-se e nunca se sabia o que podia surgir.
Hesitou entre levar o Ax ou o Audi que guardava na garagem, mas preferiu ir no “chaço” que dava menos nas vistas. Dissimulação era a alma deste negócio.
Saiu do Porto pela Circunvalação, percorreu a Via Norte, pouco trânsito àquela hora da tarde e seguiu pela Nacional 13 até Esposende, onde parou para beber um café e verificar algum movimento estranho.
Ninguém o seguia, entrou no Citroen e dirigiu-se à A-28, faltavam poucos quilómetros para a estação de serviço. Quando chegou à área de serviço abasteceu combustível e estacionou no parque entre os outros veículos.

Dirigiu-se à cafetaria, comprou a Bola, olhou naturalmente em volta e não fixou o olhar em coisa nenhuma, mas viu distintamente o seu contacto que parecia entretido com um problema de palavras cruzadas.
Tomou outro café, esperou um pouco e caminhou em direcção aos lavabos. Lá dentro um miúdo lavava as mãos. O Litos urinou e ao seu lado, a dois urinóis de distância o seu contacto fez o mesmo. Trocaram rapidamente dois embrulhos plásticos, o outro saiu de imediato, ele foi lavar as mãos.
O embrulho da droga no bolso direito do blusão parecia que queimava. Saiu e não viu nada de estranho, caminhou devagar para o exterior e sentiu uma picadela nas costas, a vista escureceu e as pernas dobraram-se.
Acordou algemado, no banco traseiro de um automóvel. A vista continuava desfocada e sentia as costas dormentes. Ainda viu o seu contacto, igualmente algemado ser enfiado noutro carro. Um tipo com colete azul da polícia sentou-se ao seu lado, outros dois sentaram-se nos bancos da frente e arrancaram em direcção à auto-estrada.
Já não viu o Chico sair do gabinete da administração da estação de serviço, onde tinha assistido a toda a operação através do circuito de vídeo vigilância na companhia de alguns inspectores da Judiciária.

FIM
 
Litos o traficante   2ª parte

Euclides, o comunista 2ª parte

 
Quando chegaram à Rua do Heroísmo, no Porto, o Domingos apeou-se e dirigiu-se à portaria do edifício, sendo interpelado de imediato, por um plantão da PIDE.
- Que deseja?
- Eu venho saber se está aqui um tipo de Ponte da Barca chamado Euclides, que trabalhava na barragem do Lindoso.
- E para que quer saber?
- Está ali fora o antigo chefe dele, um engenheiro, que queria falar-lhe por causa do serviço lá da barragem.
- Um momento, que vou saber. – Dirigiu-se a um telefone pendurado na parede ao fundo da salinha que fazia de recepção e falou baixo durante breves instantes. Depois de desligar, dirigiu-se ao Domingos, dizendo-lhe para entrar e aguardar na primeira sala do corredor à esquerda.
Não esperou mais de dez minutos, até que um sujeito de meia-idade, com o escasso cabelo empastado de brilhantina, fato negro e voz nasalada entrou na sala e lhe disse à laia de cumprimento:
- Então é você que quer ver o Euclides? Que é que tem a ver com ele, hein? Conhece-o de onde? Vamos lá a identificar-se.
O agente Verde puxa da carteira, tira o cartão da PSP, entrega-o ao PIDE e repete-lhe a história.
- Há quanto tempo está na polícia, hein?
- Fiz a escola e estou em Matosinhos há seis meses.
- Seis meses, hein! Sente-se aí e aguarde.

O tempo ia passando e ninguém mais se aproximou da sala onde o Domingos, só esperava que lhe dissessem alguma coisa. Lá fora o engenheiro devia estar ansioso por novidades. Ainda ninguém lhe tinha confirmado que o Euclides estava lá preso, mas também lhe tinham dito o contrário.
A sala estava aquecida e o tempo de espera dava-lhe sono. Com sorte, hoje ainda podia dormir algumas horas, até entrar outra vez de serviço. O raio do homem é que nunca mais vinha, se calhar estava a consultar o processo ou a pedir instruções a algum superior.
Quase duas horas depois, entrou novamente o PIDE na sala, entregou o cartão de identificação ao Domingos dizendo-lhe:
- Tome lá isto, desapareça e não volte a pôr os pés aqui na directoria a não ser que o chamem. Diga lá ao engenheiro, que o comunista que trabalhou na barragem está aqui e que na cela dele, ainda cabem mais um ou dois, hein. Se quiserem?...
Dito isto, virou costas e saiu tão silenciosamente como tinha chegado. O Domingos sentia-se ruborizado pela forma arrogante como tinha sido tratado, ele que também era uma autoridade e só ali estava para fazer um favor. Saiu do edifício, deixando para trás o sorriso zombeteiro do plantão, que certamente ouvira a conversa, atravessou a rua e entrou no Chevrolet do engenheiro Ogando.
- Então senhor agente, que novas me conta.
- Novas?... Eles têm lá o Euclides, fizeram-me esperar este tempo todo, mandaram-me desaparecer e ainda me ameaçaram que na cela dele havia lugar para nós, para mim e para si.
- Então não se pode fazer nada.
- Pois não senhor engenheiro, com estes tipos não se brinca…Vamos embora, que eu preciso de ir dormir e pouco falta para as seis da tarde.

FIM
 
Euclides, o comunista  2ª parte

Euclides, o comunista 1ª parte

 
Este conto é baseado em acontecimentos reais, ocorridos na década de cinquenta do século passado.

O vento chegava em rajadas, era vento de norte, o frio cortava e a rua não oferecia abrigo aos raros peões que se atreviam a sair.
O Domingos Verde aconchegou o grosso sobretudo regulamentar, que vestia sobre o blusão azul-escuro, quase negro, da farda policial. Pesava-lhe o cinturão largo, que suportava a pistola e o casse-tete, doíam-lhe os pés, depois de ter passado quase todo o turno de giro em Leça, desde a praia, até ao quartel dos bombeiros, ziguezagueando por uma infinidade de ruas.
Fez esse percurso várias vezes, só tinha parado ao início da manhã para entrar na leitaria do Esteves e tomar um galão e um pão com manteiga, não esteve parado mais de dez minutos, nunca se sabe quem está a observar, para mais, ele ainda era novo na corporação.

Ao passar junto ao gradeamento do quartel, um carro vem em sentido contrário, afrouxa e pára a meia dúzia de metros. O condutor baixa o vidro e chama o jovem polícia de turno:
- Senhor agente, uma informação. Onde fica a pensão Godinho?
- A pensão Godinho é aqui em Leça, mas, do outro lado. O senhor dá a volta e vai até à rua onde está a farmácia, sabe onde é?
- Não, eu conheço mal esta zona.
- Se seguir por aquela rua vai ter a um jardim; depois de o passar vira à sua esquerda. Essa é a rua da Farmácia. Tem uma loja de ferragens logo à esquina. Quando lá chegar, vira na… deixe-me ver, na tercei…, não, na quarta rua à sua direita, a pensão Godinho é a cinquenta metros. Não tem que se enganar, no início da rua há uma carvoaria.
- Obrigado senhor agente…, mas, eu não o conheço? Você não trabalhou no Lindoso?
- Eu também o estou a conhecer, senhor engenheiro. Trabalhei sim senhor, na barragem.
- Eu bem me parecia, quando vejo uma cara, não costumo enganar-me! Então agora está na polícia?
- É verdade, quando comecei a trabalhar na barragem, já tinha metido os papéis para a polícia, mas como nunca mais me chamavam, aproveitei e ainda lá trabalhei quase nove meses.
- O senhor agente é que me podia fazer um grande favor.
- Se puder, diga senhor engenheiro.
- Você lembra-se do Euclides, o técnico das máquinas?
- Lembro-me perfeitamente.
- O Euclides foi preso e está aqui no Porto.
- Que fez o senhor Euclides para ser preso, ele que era tão boa pessoa?
- Olhe azares da vida, não teve culpa, mas está a ser chateado pela PIDE.
- Oh diabo, então mete a PIDE? Que quer o senhor engenheiro que eu faça?
- Senhor agente, venha comigo à pensão, que eu vou lá ficar com os meus filhos e lá conversamos.
- Não posso ir já, senhor engenheiro. Só termino o serviço à uma da tarde, se quiser encontramo-nos lá às duas, duas e pouco.
- Muito bem, eu fico na pensão à espera. Até logo senhor agente… desculpe mas esqueci-me do seu nome…
- Verde, agente Verde, ao seu dispor, senhor engenheiro.
O Chevrolet negro com o engenheiro Ogando e os dois filhos, arrancou suavemente, contornou o pequeno canteiro em frente aos bombeiros e perdeu-se pela rua em direcção ao jardim. O frio continuava a apertar e por ter estado parado aquele tempo todo a conversar, tinham-lhe arrefecido ainda mais os pés. Lembrava-se que o pai do eng. Ogando, também formado em engenharia civil, fora o responsável técnico pela construção do Casino da Póvoa do Varzim.
Já passava do meio-dia e eram horas de se dirigir calmamente para a esquadra que ainda ficava longe, fazer o relatório e consultar a ordem do próximo serviço, que devia começar à uma da próxima madrugada.

Quando saiu da esquadra foi directo à casa de pasto do Aníbal, um transmontano de Carrazeda de Ansiães, com porta aberta há mais de vinte anos, uma casa muito asseada, onde comiam a maior parte dos agentes da esquadra de Matosinhos, funcionários das casas comerciais das redondezas e estivadores da doca de Leixões.
Depois de ter engolido uma jardineira fumegante, que a Laurinda lhe apresentou, dirigiu-se para a pensão Godinho, onde o esperava o engenheiro Ogando, que sem mais delongas lhe explicou.
- Pois o nosso amigo Euclides está metido em trabalhos. Tudo começou quando apareceram uns panfletos do Partido Comunista afixados numas árvores, a caminho da barragem. A PIDE foi chamada pela Guarda Republicana, andaram para lá a investigar e encontraram um desses papéis no armário do Euclides. Nem quiseram saber de mais nada. Trouxeram-no para Ponte da Barca e daí transferiram-no para o Porto, desconfio que para a sede da PIDE, você sabe onde é?
- Sei, é na Rua do Heroísmo, perto de Campanhã.
- Pois era isso que eu queria que fizesse, ia comigo à PIDE, ver se me deixavam visitar o Euclides, para lhe perguntar algumas coisas do serviço, que estavam pela mão dele. Como você é polícia, se calhar, é mais fácil deixarem-me vê-lo.
- Se é só isso, não vejo problema, eu vou consigo – diz o jovem agente, convencido do poder persuasor da farda que envergava.
- Então vamos no meu carro, que chegamos lá num instante.
 
Euclides, o comunista  1ª parte

A tentação (Epílogo)

 
O Padre Maia olhou em volta e com um gesto convidou a Conceição e a Celeste a sentarem-se. Esta continuava com o bebé ao colo e instalou-se na ponta de uma cadeira.
- Eu não sei o que dizer – começou o padre Maia, - fui apanhado de surpresa. Tenho mesmo uma filha?
- Si cura. Uma hija mui guapa.
- Mas porque não me disseste?
- Não podia. Lo prometi a mi padre.
- Prometeste a quem? Ao teu padre?
- No! Prometi a mi papá, entendes?
- Mas quem é o teu pai, Celeste?
- D. Artur.
- Qual D. Artur?
- Tu bispo, cura. Tu bispo…
 
A tentação  (Epílogo)

O gabinardo do senhor abade (1ª parte)

 
O eixo chiava de forma aflitiva. Um guincho quase animal, que lembrava o porco no estertor da morte sob a faca do matador. Lentamente, o carro puxado pela junta de vacas galegas, pachorrentas e teimosas, avançava passo a passo.
Sobre a plataforma de madeira escura, as crianças mais velhas divertiam-se com a novidade da viagem. A mais nova, ainda de colo, embrulhada no xaile de borlas castanhas, brincava com o cordão de ouro que volteava o pescoço da mãe. Com elas viajava a Rosa, criada da pensão, que viera de Coura ainda criança, para servir e fazer-se mulher.
Tinham partido de manhã, ao nascer do dia, preparados para cobrir pouco mais de duas léguas até ao Amonde, onde iriam viver nos próximos dias.
A Tia Leonarda que segurava o temoeiro de couro, fez parar as vacas com uma pancada seca da vara. Do bolso do avental tirou um naco de sabão que passou pelo eixo ressequido do carro. Logo retomaram a marcha sem mais demora, apesar dos protestos das crianças que queriam sair do carro e dar uns pinotes.
- Vamos, vamos, senão chegaremos noite dentro. Os dias são curtos… Ande lá Tia Leonarda, espevite-me estes animais!
- Já lá vamos, Dona Delfina! Os bichos ainda ficam com a língua de fora… Há anos despariu-me uma vaca por causa das pressas…
Tinham passado pela veiga da Baralha, deixado para trás a Matriz de Soutelo e atravessavam agora os montes da Esturranha. Os carvalhos, loureiros, azevinhos e sobreiros que bordejavam o caminho, corriam monte acima até às bandas de S. Pedro Varais.
O eixo já não chiava, as duas raparigas mais velhas iniciaram uma discussão por causa da boneca de trapos. Com mão ligeira, a mãe deu um tabefe a cada uma e a ordem regressou ao pequeno espaço do carro de vacas.

Estávamos em Janeiro de 1919 e a sublevação monárquica tinha-se espalhado pelo norte. Enquanto os republicanos se entretinham em questiúnculas, os saudosistas do rei tinham conspirado e aplicado um golpe audacioso na frágil ordem que tinha sobrevivido ao assassinato do Sidónio Pais.
A 19 de Janeiro, a Junta do Norte proclamou, no Porto, a restauração da Monarquia, anunciando a constituição de uma Junta Governativa. Esta era presidida por Paiva Couceiro e geraram-se focos de resistência ao poder republicano em vários pontos do País. Em Viana do Castelo, o regime monárquico foi aclamado das varandas da Câmara Municipal e a multidão reunida em volta do chafariz deu vivas ao rei.
Grupos de soltados aderentes à revolta, foram distribuídos pelas principais povoações minhotas. Gontinhães não foi excepção e um grupo de meia dúzia de soldados, comandados por um tenente, assentaram arraiais na localidade.
À falta de instalações próprias para acantonarem, optaram por se hospedarem na Pensão Âncora.

Montado no seu cavalo ruço, o regedor de Riba D’Âncora cruzou-se com aquele carro cheio de mulheres e crianças. Descobriu-se perante a senhora e seguindo caminho murmurou com os seus botões, “Mais uma família que se põe a bom recato. Como irá acabar esta loucura?”
- Dona Delfina, temos de parar no rio para o gado beber e repousar – avisa a Tia Leonarda, muito ciente do conforto dos seus animais.
- É melhor! As crianças também precisam espairecer e já estão cheias de fome.
Pararam na Ponte de Saim, puseram os pés em terra com os agasalhos bem fechados, embora o frio embora não apertasse ao fim da manhã, sentia-se a humidade no ar.
Com as crianças a correrem à volta do carro, a Tia Leonarda desengatou os animais e desceu com eles à beirada do Rio para os saciar. Deixou-os a pastar num pequeno paul da Vitória, que morava ali perto. Já era costume e a Vitória até costumava presenteá-la com algumas laranjas sumarentas colhidas no seu lugar.
- Meninas, venham comer – chamou a mãe, que abrira a sesta de verga carregada de lauto farnel; frango assado, panadinhos de vitela, um tachinho de arroz no forno, presunto, postas de bacalhau frito para a Leonarda e para a Rosa, pão cozido no dia anterior e um garrafão de vinho. A bebé iria comer papas de arroz, cuidadosamente acondicionadas na pequena marmita de esmalte. Uma pucarinha de barro com água da Fonte da Retorta, colhida de manhã bem cedo, por uma das criadas da pensão, iria mitigar a secura das crianças.
Ao longe um sino deu as doze badaladas, talvez em Orbacém, quiçá em Outeiro, que o vento estava a favor. O sol espreitou fugaz entre as nuvens que passavam apressadas. A refeição foi rápida, os animais regressaram à canga, a Tia Leonarda tornou a ensaboar o eixo. Em breve passaram as primeiras casas de Orbacém, deram a volta pelo Arnado.
Na última volta da pequena colina sobranceira ao Rio Âncora surgiu a Ponte de Tourim, tão velha que diziam ter sido construída pelos romanos nos tempos de Cristo.
Pela veiga de Tourim acima, juntas de bois puxavam os arados, mulheres manejavam as enxadas enquanto os homens podavam e atavam as vinhas, que ano após ano, se carregavam de uvas escuras e miúdas.

Em Gontinhães, na pensão Âncora, os soldados ocuparam dois dos quartos virados à rua e o tenente ficou com o quarto número um, ao cimo das escadas. Durante o dia davam umas voltas pela localidade, uma espécie de patrulha, perante o olhar curioso de uns e indiferente de outros. Quase todos pensavam que o Reino da Traulitânea não iria resistir às forças republicanas que haviam de vir de Lisboa.
O tenente Castro era um monárquico convicto, apoiante do Integralismo Lusitano e parente afastado de um dos seus mais destacados dirigentes, Pequito Rebelo.
Botas e calções de montar, dolman de colarinho direito, recentemente brunido, faziam dele uma figura elegante. Apesar da face picada das bexigas, o porte marcial destacava-se naturalmente.
Luvas de pelica, pingalim com cabo de alpaca lavrava e boné regulamentar com botões dourados, completavam a indumentária do novo representante do poder real nas terras do Vale do Âncora. A bandeira azul e branca ondulava ao sabor da aragem nos mastros da estação do caminho-de-ferro, na Junta de Freguesia e na varanda da pensão, para preocupação do seu proprietário, que não se queria ver imiscuído nas complexas e instáveis questões de regime.
Fora essa a gota de água que tinha levado que a esposa e as filhas se retirassem para o Amonde, uma aldeia próxima, mas suficientemente distante destes problemas.
- Não vá algum maluco anarquista atirar-nos uma bomba por causa da bandeira – dizia o Abel, rolando o palito que mantinha entre os dentes.
Decidiram que a pensão ficaria entregue ao Abel, à Maria Chocalha, sua sogra por parte do primeiro casamento e ao Américo, neto da Chocalha e enteado do Abel. A Delfina iria passar uns tempos ao Amonde, para a casa de uma família amiga, levando as quatro filhas e a Rosa para ajudar.
A Tia Leonarda, velha carrejona que nunca calçara sapatos, trabalhadora incansável, sempre pronta para esvaziar um copo, ficaria encarregue de levar regularmente os abastecimentos à casa dos Fulueiros no Amonde.

- Ainda falta muito, Tia Leonarda?
- Estamos a chegar. Ao virar ali em cima entramos no caminho para o fulão…
- Até que enfim, tenho os ossos maçados.
- Olha!... A senhora Maria veio esperar-nos, à beira do caminho… Ora viva, então como está tudo por aqui?
- Com a Graça de Nosso Senhor, minha senhora. Fizeram boa viagem?
- Fizemos, mas as crianças já estão aborrecidas de estarem tanto tempo presas entre os varais do carro.
- Ah… Elas já vão fartar-se de pular e de reinar pelo lugar fora – diz a senhora Maria, uma solteirona a chegar à meia-idade, dona do fulão e de mais uma mão cheia de propriedades espalhadas pela aldeia, herança dos pais e da madrinha.
- E a sua irmã Joana e o marido?...
- Lá em baixo, para as bandas do Arnado a lavrarem. Está a chegar o tempo da batata, Dona Delfina. Quem não semeia, não colhe…

Em Gontinhães, a 30 de Janeiro, a Junta de Freguesia tinha-se demitido ao saber que em Viana a monarquia tinha sido aclamada e o Governador Civil exonerado.
A Guarda Republicana estava recolhida nos quartéis das cidades e em Gontinhães o poder chamava-se Tenente Castro. A ele acorriam constantemente meia dúzia de velhos monárquicos, dando-lhe conta dos movimentos e alcovitices da terra, além das últimas novidades trazidas pelos raros viajantes que o comboio transportava.
Pelo Largo das Necessidades, renomeado de Praça da República em 1910 e que os locais chamavam apenas “Largo”, juntavam-se grupos para comentar a situação política do país e da região em particular.
- Diz-se que vem aí um batalhão de lanceiros para darem cabo dos azuis – dizia o Cannas encostado à porta da botica.
- Ora, não vão ter mais que fazer que virem de propósito para prenderem meia dúzia de rufiões, que não tem onde caírem de mortos… Ora!
- É verdade, compadre! É o que corre em Viana… Os da república querem limpar o terreno até Valença. Parece que aí a coisa está mais preta. São muitos e tem o grupo das metralhadoras com eles.
- Pois eu também já ouvi isso – intervem o João Brito, proprietário da botica, poiso habitual dos tertulianos – Meus amigos, isto ainda acaba mal… Esse Paiva Couceiro é maluco e ainda nos vai atirar para uma guerra civil. Não se esqueçam do que lhes digo!
- Eu até mandei a mulher e as crianças para a aldeia – diz o Abel, que estava recostado com as pernas estendidas no comprido banco exterior do estabelecimento.
- E fez vossemecê muito bem, senhor Abel! Ter as suas crianças com aqueles soldados todos lá em casa… fez muito bem.
- E eu vou fazer o mesmo! – diz o Manuel Presa – tenho uns primos em Lanheses, vou hoje mesmo escrever-lhes a dizer que seguimos daqui a dias.

O ambiente geral era de expectativa e muita apreensão. A cada dia que passava, circulavam os mais disparatados rumores, desde dizerem que viria uma armada inglesa apoiar a revolta trazendo a bordo o exilado rei D. Manuel II, a notícias da eminente chegada de tropas republicanas, que tudo poriam a ferro e fogo.
Os soldados da guarnição pareciam pouco preocupados e entre algumas patrulhas e umas tigelas de vinho que bebiam pelas tascas onde passavam, sobrava-lhes pouco tempo para montarem guarda ou zelarem pela segurança no caso de serem atacados. O Tenente Castro, com a interminável cigarrilha no canto da boca, mostrava o peso da responsabilidade e acusava um nervosismo indisfarçável.
- Espero ordens – dizia ele, tentando convencer-se e convencer os demais que estava tudo bem – Amanhã deve chegar um estafeta de Viana. Até novas ordens, devemos manter-nos aqui e garantir a segurança…
- E eu quero saber quem garante o pagamento das diárias – resmunga a Maria Chocalha que não ia à missa com a cara do Tenente.

Durante a noite o tempo arrefecia e só as achas de carvalho que amorrinhavam na lareira da cozinha, conseguiam manter algum conforto na rústica casa de lavoura.
A senhora Maria, como boa anfitriã, tinha cedido o seu quarto à Delfina e à filha mais nova que tinha apenas anos e meio. No quarto ao lado, dormiam a Rosa e uma das pequenas numa cama, enquanto as restantes partilhavam o outro leito.
Duas vezes por semana, a Tia Leonarda vinha trazer carne e peixe fresco, transportado à cabeça no cesto de verga. Só uma vez foi necessário trazer o carro com os animais para transportar mais roupa. As crianças sujavam-se imenso a brincarem no campo e o tempo chuvoso não ajudava para secar a roupa.
 
O gabinardo do senhor abade (1ª parte)

Uma consertina perigosa

 
A acção passa-se na década de cinquenta, em Vila Praia de Âncora, uma aldeia de pescadores do norte de Portugal. Este conto é baseado em acontecimentos reais.

O Porfírio encostou-se à parede e começou a tocar um tango na sua concertina. Era sábado à tarde, já tinham feito contas, as pescas eram poucas, mas sempre dava para o caldo.
Desde que chegara da Argentina, mesmo depois de casado com a Maria tinha por habito fazer-se acompanhar da concertina que trouxera das pampas. Não só tocava os viras minhotos, como se apaixonara pelos tangos de sabor ultramarino.
O Porfírio sabia que não demorava nada, para o povo se aproximar e dançar. Já era costume. Das ruas dos Pescadores e da 13 de Fevereiro, gente assomava às portas, as crianças corriam alvoroçadas em direcção ao músico. Com um acorde final, encolheu o fole da concertina, sorriu para a plateia e preparou um cigarro.
Da porta da loja do Anacleto, alguém o chamou, em voz alta.
- Porfírio, anda beber uma malga, para afinar essa garganta!
- Já lá vou, deixai-me primeiro tocar mais uma.
E recomeçou a tocar com a beata no canto da boca, a boina atirada para trás. Que saudades que tinha da Argentina, aquilo é que era uma terra! Curioso, quando lá trabalhava, tinha saudade da sua terra, Gontinhães onde deixara a namorada, onde estavam os amigos e os pais. Agora que tinha regressado, apertava-se o peito cada vez que pensava nas terras que deixara do outro lado do mar.
Lá tinham ficado os seus irmãos, o Justino, mais novo, quase uma criança e o mais velho, o Armindo que era como um pai para ele. Se tudo corresse bem, ainda havia de lá voltar. Trabalho não lhe faltaria, na serralharia do Armindo.

Já se dançava no largo, a maior parte eram mulheres, que dançavam umas, com as outras, os homens ainda estavam pelas lojas a conversar e a beber. Aos poucos eles iam chegando. A ver se aparecia alguém que quisesse cantar ao desafio. Talvez mais logo, quando o vinho já fizesse sentir os seus efeitos.
- Oh Porfírio, toca a Laurindinha!
- Agora vou molhar a palavra, depois toco – aproxima-se da moça e diz-lhe em voz baixa – para ti, até toco o que tu quiseres.
- Olha para ele! Tem juízo, lembra-te da tua Maria!
Com uma gargalhada, pôs a concertina ao ombro e caminhou com passos largos para a loja, com o balcão cheio de homens a conversarem animadamente.
- Dai lugar ao tocador – diz um deles, desviando-se.
O Anacleto apresentou-lhe uma malga encardida, onde sobressaíam uns desenhos vistosos e verteu o líquido escuro, contido na caneca de riscas azuis.
- Este é do bom – explica o taberneiro – foi buscá-lo a Outeiro o meu irmão, a semana passada.
- É uma boa pinga, sim senhor – diz o Firola que estava ao lado.
- Vá, bebe a malga e toca uma modinha aqui para a gente.
- Oh Tio João, hoje não, só toco ali em baixo, senão tenho que aturar as mulheres. Vinde comigo, não há aqui ninguém para cantar ao desafio?
Perante o silêncio que se seguiu, desabafa:
- Parece que tendes medo!...

Saiu e logo se ouviu o som da concertina e os primeiros versos da Laurindinha, o bailarico estava para durar, iria até ao escurecer. Ora, tristezas não pagam dívidas!
Aquelas sessões de concertina eram habituais, assim como era costume, quando não estava no mar ou a tratar das redes, ir até à fonte tocar um bocado.
A fonte da rua das árvores juntava o povo das redondezas, era abastecida pela água que vinha do Rego do Forno e ao lado, as peixeiras usavam as bancas de granito para fazerem os seus negócios.
À noite, essas bancas serviam muitas vezes de cama à Maria Amélia “do Tostão Branco”, uma pedinte, sem eira nem beira, que nunca largava sua caixinha de rapé. Triste consolo.
Era aqui que o Porfírio gostava de tocar e de fazer “olhinhos” às raparigas solteiras e não só, como a Ciana, uma mulheraça morena, bonita, quase cigana, casada e com filhos pequenos, mas que, diziam alguns, permitia algumas liberdades pela calada da noite, quando o homem estava para o mar.
O Porfírio por várias vezes a tentou seduzir, com o olhar, com músicas e quadras apropriadas, chegou a mandar-lhe uns bilhetinhos, mas a Ciana sempre o rechaçara de mau modo.
“Está a fazer-se esquisita” pensava o Porfírio, sem perder a esperança.

Um dia, na loja da Tilde da Curraca, alguém falou no nome da Ciana e o Porfírio que já tinha um copo a mais, a língua destravada e a mente embotada, exclamou:
- Essa é muito fina, não lhe serve qualquer um!
Ninguém reparou no miúdo franzino, com uns quinze anos, que estava à porta a ver os homens a jogar as cartas, que silenciosamente se retirou.
Mais tarde, já homem feito, seria conhecido pelo “Fica Firme”, era irmão da Ciana e foi à procura dela que correu, para lhe contar o que ouvira na taberna.
Quando estava mais animado ou bebia de mais, o Porfírio costumava cantar umas quadras que tinha aprendido na Argentina e que falavam da liberdade, dos pobres e dos oprimidos, dos miseráveis que tinham de labutar de sol a sol, para ganhar uma côdea de pão.
Vários companheiros já o tinham avisado:
- Oh homem, não cantes essas coisas, um dia ainda tens problemas.
- Problemas, eu? Vós tendes é medo. A mim não há quem me cale, eu canto o que quiser.
Um dia, estava no café de cima, o café Central, do Ferraz, tinham-se juntado lá para merendar umas iscas de fígado e umas pataniscas, quando o Porfírio pegou na concertina e começou a tocar. Primeiro umas canções da nossa terra e depois aquelas quadras que ele tanto gostava e que os fregueses do Ferraz ouviam em silêncio.
De súbito, entram dois “praças” da GNR, a concertina cala-se, faz-se um silêncio opressivo.
- Você, acompanhe-nos ao posto – diz um deles, para o tocador.
- Eu, porquê?
- O nosso comandante quer falar consigo.
- Mas porquê?
- Não sei, nem me interessa, vamos, à nossa frente.

O Porfírio lá arrancou à frente dos guardas, com a concertina ao ombro. Chegado ao posto, ali a cinquenta metros, se tanto, na Rua 31 de Janeiro, pediram-lhe a identificação, tiraram-lhe o instrumento e meteram-no numa cela gradeada que havia nas traseiras.
No dia seguinte acordaram-no cedo, deram-lhe um gole de café e meia carcaça, mandaram-no ir à retrete e de seguida foi para o gabinete do comandante onde, alem deste, estavam mais dois tipos à civil.
- Então este é que é o tocador de concertina? Onde aprendeste a tocar?
- Foi na Argentina, quando estive a trabalhar.
- Hum, na Argentina, muito bemmm… Terra de comunistas… e de filhos da puta!
O outro civil vira-se para o comandante e diz-lhe:
- Nosso cabo, prepare os papéis que este “pássaro” vai connosco. Vamos pô-lo a cantar para nós, já que tanto gosta.
- Sim senhor, senhor inspector. É para já! – Responde de forma serviçal o comandante, que tinha a cara picadas das bexigas e fama de aplicar castigos corporais a quem lhe caísse nas mãos. Nunca saía do posto sem um “cavalo marinho” que batia negligentemente, mas de forma ostensiva, contra a bota de cano alto.

Na rua ninguém se atrevia a aproximar-se do posto, até porque, desde a noite anterior que um guarda passeava ininterruptamente entre a esquina do Portela e a travessa do Teatro, com a espingarda a tiracolo. Porque tinham prendido o Porfírio todos sabiam, não percebiam é como os guardas tinham aparecido assim, de repente. Talvez algum bufo que estivesse no café do Ferraz, ou alguém que ia a passar e ouvisse as quadras, sabe-se lá.
Quem seriam aqueles dois homens que tinham chegados ao posto, manhã cedo, naquele carro negro e aos quais o plantão tinha “batido a pala” em sentido, seriam da secreta?
Coitado do Porfírio, em que trabalhos estaria ele metido, por causa de umas canções sem importância.
A meio da manhã, saiu do posto agarrado por um braço e meteram-no rapidamente no carro, que esperava do outro lado da rua. No Porto, já na sede da PVDE, antecessora da PIDE, deram-lhe um prato de sopa e começaram-no a interrogar.
Queriam saber tudo, onde tinha estado, quem lhe ensinara a tocar, com quem tinha aprendido os versos, quem é que lhe pedira para os tocar e por ai fora. Perguntaram-lhe a mesma coisa vezes sem conta, durante tanto tempo, que perdeu a noção. Mantinham-no de pé em frente de uma secretária, com um candeeiro virado para si, onde estavam sentados dois tipos aos quais não distinguia as feições, um fazia as perguntas o outro tomava notas num papel.
Uma das vezes que cambaleou e se lhe dobraram as pernas, um dos polícias levantou-se pegou numa cana que estava encostada à parede e bateu-lhe nas pernas. Foi como um choque eléctrico.
De vez em quando revezavam-se, saíam uns, entravam outros; uma vez deixaram-no ir à retrete, deram-lhe um prato com arroz e carne, tudo frio e com mau aspecto. Mesmo assim engoliu algumas garfadas, já não comia há tanto tempo. “Que será feito da Maria e do bebé, espero que não os tenham incomodado, já basta a aflição de me saberem preso” pensava o Porfírio, angustiado pela sorte dos seus.

Regressado ao interrogatório, voltavam as mesmas perguntas, um dos polícias tinha puxado da pistola e brincava descuidadamente com o cano da arma virado para o detido. Não lhe tinham voltado a bater, mas várias vezes o ameaçaram, se não dissesse com quem falava do Partido Comunista. Já lhes tinha dito, vezes sem conta, que nem sequer sabia que partido era esse, nem para que servia, mas eles voltavam uma e outra vez ao mesmo.
“Se quiserem bater que batam, estou tão cansado que até nem me importo”; não deu pela entrada de outro polícia na sala, que lhe pegou num braço e o conduziu pelos corredores fora, até à escadaria íngreme.
No fundo, um pequeno átrio iluminado por uma lâmpada amarelada e outro guarda que abriu uma porta chapeada a metal. Passada a porta, seguia-se um corredor ainda pior iluminado para o qual abriam mais de uma dúzia de portas, talvez mais de vinte. Abriram-lhe uma delas, reparou que tinha o número 18 gravado junto à fechadura, foi empurrado sem violência e sentiu uma volta da chave e o correr de uma tranca.

“Então isto é que é estar preso”, olhou em volta, não havia nenhuma janela, distinguiu na penumbra, um catre de madeira com duas mantas e um balde a um canto. Estendeu-se lentamente, nem sentia as pernas, os socos pesavam-lhe nos pés inchados. Fechou os olhos, não conseguia pensar, a cabeça andava-lhe à roda com os acontecimentos. As lágrimas corriam em fio pela cara até às tábuas duras do catre, deixá-lo, ele não tinha feito nada de mal. Mais tarde ou mais cedo haviam de o pôr na rua, haviam de ficar convencidos que ele gostava de tocar e cantar, nada mais.
Horas depois foi novamente interrogado, sempre as mesmas questões, agora acusavam-no de ser o contacto de um tal Armando e queriam à viva força saber do Bento Gonçalves, do Pável e de Álvaro Cunhal.
“Quem serão?” – Pensava para si o Porfírio. Perguntavam também por uns espanhóis, que eles acusavam de trazer armas para os comunistas. Repetia sempre o mesmo, dizia-lhes a verdade, eles é que não acreditavam. Quando o interrogatório terminou, sabe-se lá depois de quantas horas, levaram-no por um corredor diferente, meteram-no numa cela onde estavam mais três homens. O mais velho, homem para uns sessenta anos, perguntou-lhe:
- Trataram-te mal, camarada? Há quantos dias estás aqui?
- Estou cansado, não me deixaram sentar, doem-me as pernas.
- Há quanto tempo estás a ser interrogado?
- Não sei, acho que começaram ontem ou anteontem, já não sei.
Os outros três entreolharam-se, não precisavam de falar para compreender que aquele desgraçado estivera, pelo menos, quatro ou cinco dias a ser interrogado impiedosamente.
Ajudaram-no a deitar-se num dos beliches, taparam-no com uma manta e recomendaram-lhe que dormisse. Em princípio, tão cedo não seria novamente interrogado. Eles já sabiam como os polícias se comportavam, já não era o primeiro contacto que tinham com aqueles torcionários.

Na Lagarteira nada se sabia do Porfírio, a única informação viera pelo tenente da capitania, que foi ao posto da GNR saber o porquê daquela inesperada prisão.
O comandante contou-lhe que fora uma mulher que ao ir para a missa vespertina, ouvira aqueles versos subversivos e fora informar a guarda, que tinha capturado o agitador em flagrante, tendo de seguida dado parte do acontecimento ao agente da PVDE de Caminha; este imediatamente oficiou para o Porto, de onde se deslocaram, no dia seguinte, dois agentes para custodiar o detido, a fim de ser interrogado convenientemente.
Claro que o tenente não contou estes pormenores todos à família, limitou-se a dizer:
- O Porfírio está no Porto a ser interrogado, se estiver inocente, não tarda a aparecer por aí. Tenham calma, que tudo se há-de arranjar.
Afinal acabou por estar preso quase três meses, ainda foi interrogado mais um par de vezes, chegaram a mostrar-lhe umas fotografias, mas ele não reconheceu ninguém. Quando chegou à terra vinha mais magro, tinha perdido mais de dez quilos, notava-se principalmente na cara e nos olhos tinha desaparecido aquela alegria, que todos lhe admiravam.
Durante muito tempo a concertina esteve calada, com o tempo voltou a tocar uns “viras” e uns tangos, sem o entusiasmo de outrora.
Anos mais tarde, veio a saber por um marinheiro da capitania, a quem o tenente confidenciara a verdade sobre a prisão do Porfírio, que a denunciante tinha sido a Ciana, como vingança do que ele dissera na taberna da Curraca.
 
Uma consertina perigosa

O fim da "Macaca"

 
A “Macaca” era um barco tipo poveiro, com quilha, de seis bancos e com uma tripulação de doze homens.
O Galinhaço era o arrais e um dos seus proprietários, em sociedade com a tia Ana Rosa, viúva do Domingos Verde, que após ter naufragado na entrada do portinho, pouco tempo durou.
Dizem que foi de estar muito tempo na água, mas o desgosto daquele lobo-do-mar, foi a sua principal doença, que o levou em pouco mais de dois meses. Deixou ao cargo da mulher criar os três filhos, duas raparigas e um rapaz, a Tia Ana Rosa, de baptismo Ana Rosa Malhão Verde, após ter esgotado as lágrimas salgadas como o mar, arregaçou as mangas e tratou de garantir o sustento dos seus.
Destemida e obstinada, como sempre fora, fizera sociedade com o tio Galinhaço, pai do Amílcar e do Plácido Silva, e exploravam a meias, um dos melhores barcos do nosso portinho.

Ao fim de algum tempo, a tia Ana Rosa que apontava todas as capturas e respectivas vendas, para mais tarde cobrar e no fim da semana fazerem contas, começou a desconfiar que nem tudo era feito às claras e com o seu conhecimento.
Com ou sem razão, desconfiava que havia peixe que era desviado para ser vendido por fora, manobra que era feita com o acordo do arrais. Seria assim? Não o sabemos, mas este foi o motivo porque decidiram acabar com a sociedade.
O Galinhaço dispôs-se a comprar a parte da Tia Ana Rosa, mas ela não queria ceder ao seu ex-sócio. Como tinha boas relações com o Galinhaço, o próprio tenente da capitania veio interceder, para que a recalcitrante Tia Ana Rosa reconsiderasse e vendesse a sua parte do barco ao Galinhaço.
- É para deixar aos seus filhos, mulher! – Argumentava o tenente
- Pois é sr. Tenente, mas eu também tenho um filho e quero-lhe deixar a ele o barco. Vender, não vendo, mas se o Galinhaço quiser, compro-lhe eu a ele, pode-lhe dizer isso da minha parte.

Mas o Galinhaço, desfeiteado por aquela mulher teimosa, também ele não cedeu e após muitas tentativas de acordo falhadas pela intransigência dos ex-socios desavindos, decidiram serrar o barco ao meio, operação efectuada no portinho, perante todo a gente que quis assistir.
Depois de sorteadas as partes, calhou ao Galinhaço a proa e à tia Ana a popa, bocados que, tempos depois, começaram a ser desfeitos para lenha do fogão.
Foi este o triste fim da “Macaca” que se consumiu nas entranhas de ferro dos fogões onde fervia o caldo e que aqueciam as pobres habitações durante o rigoroso e longo Inverno ancorense.
 
O fim da "Macaca"

Nos mares do Norte (3ª parte)

 
Toda a noite tremeu de frio. De inicio ainda tentou movimentar os braços na tentativa de não arrefecer, mas chegou à conclusão que não adiantava. Manteve-se sentado no banco do meio com a samarra e o casaco de oleado bem apertados, tapou-se com a vela, mas o frio era cortante. Por mais de uma vez pareceu-lhe ouvir barulho, sustinha a respiração, virava a cabeça na direcção de onde lhe parecia que vinha o som. Pegava no búzio e soprava, soprava até até lhe faltar o fôlego.
O barco do Raposo chapinhava a meia dúzia de braças do seu, unidos pela amarra e pelo destino. Na madrugada dos mares do norte o Chico esperava estoicamente a ajuda que os seus camaradas não lhe regateariam.
- Quando a névoa levantar vou encontrá-los. Até pode ser que aviste outro barco, um dos muitos que pescam nestas águas.
O Chico não era muito dado à Igreja, nem a rezas, mas deu por si a pensar no Senhor dos Aflitos, aquele santo que estava no nicho junto ao farol, no Portinho de Âncora.
Amanheceu com a mesma névoa pousada sobre as águas e com a visibilidade reduzida a meia dúzia de metros em redor. Abriu o baú da merenda, comeu as duas postas de peixe frito, metade do pão e um punhado de azeitonas. Rematou a refeição com uns golos de água. Agora estava arrependido de não ter trazido o termos com chá quente, como faziam muitos dos seus camaradas.
Ao cair da tarde comeu o resto da merenda e preparou-se para passar outra noite gélida. De repente levantou-se e puxou a amarra do doris do Raposo. Saltou para o outro barco e tentou levantar o cadáver sem resultado.
O Raposo não se mexeu e o Chico puxou-lhe por um braço mas articulações não funcionavam, o corpo do Raposo estava rijo, parecia de madeira. Desistiu da intenção de tirar a samarra do Raposo, que já não precisava dela e a ele fazia-lhe muita falta. Regressou à sua pequena embarcação levando consigo um bocado de oleado que o Raposo tinha dobrado sob um dos bancos. Sempre lhe daria para se embrulhar nele.
A segunda noite pareceu-lhe mais curta, tendo concluído que tinha dormido alguns bocados, o cansaço era muito. O nascer do novo dia trouxe algo de diferente. O mar tinha já alguma ondulação e corria uma brisa fraca que ao fim de algumas horas varrera o maldito nevoeiro. Em vão perscrutou o horizonte, o vazio era imenso, o silencio oprimia, nem pássaros se viam. A sua água tinha acabado e fora buscar as provisões do Raposo. Tinha de as poupar, nunca se sabia o tempo que ainda tinha de esperar.

Alguns dias depois o Chico continuava sentado no banco central do seu doris. A barba começava a cerrar-se em volta dos olhos, da boca e dos lábios gretados pelo frio e pelo ambiente salgado. Há muito que a água tinha acabado, durante a noite conseguia recolher algumas gotas no oleado, mas eram insuficientes para lhe matar a sede.
O barco do Raposo continuava a baloiçar no mar ondulante, tinha dado mais cabo de forma a afastá-lo pois o corpo do Raposo já exalava um cheiro terrível à mistura com os bacalhaus pescados que acabaram por ser devolvidos à água.
Para matar a fome, tinha pescado um bacalhau, prontamente escalado e ao qual lhe devorou os lombos. Agora rezava várias vezes por dia, ao Senhor dos Aflitos e à Senhora de Fátima, uma prece para o livrarem daquela aflição. Lembrava-se muitas vezes dos pais, lá em Âncora e dos irmãos espalhados um pouco por todo o lado. Dois deles em Lisboa, outro também no bacalhau, a irmã a servir em Viana, o mais novo andava ao mar com o pai, à sardinha e à lagosta. Já os teriam avisado pelo rádio que ele estava desaparecido? Provavelmente não, só faziam isso ao fim de uma semana.
- Há quanto tempo ando eu perdido? Quatro, cinco… não, seis dias. Seis dias? Seis dias?... Onde andará o nosso barco?
E o desânimo era cada vez maior, alternava com momentos de esperança e momentos de raiva, uma raiva contra os elementos, o nevoeiro, o mar imenso. Mas uma raiva infinita contra as miseráveis condições de vida dos pescadores do bacalhau. “Ah, se em terra fizessem ideia dos martírios da Terra Nova”, pensava enquanto procurava no horizonte um mastro ou uma chaminé.
Que saudades que tinha da “chora” do cozinheiro, quando antigamente preferia comer um bocado de pão seco ou uma batata cozida, sem mais acompanhamento. Mas a sede é que o agoniava. Fechava os olhos e via a levada do Paredão no Rio Âncora, via a água a cair em cachão e via-se a ele próprio encostado à levada a brincar com a água, a beber a água pura do rio que o viu nascer.
No sobe e desce da ondulação pareceu-lhe ver a oeste um vulto branco, uma alucinação, já não era a primeira. Julgava ver um barco mas acabava por reconhecer ser apenas espuma branca na crista da onda.
- Não, não estou a sonhar, é um barco.
Levantou-se a custo e acenou na sua direcção. A distancia era muita o mais provável era passar despercebido. Tinha de lhes chamar a atenção. Pegou no oleado do Raposo em que habitualmente se embrulhava à noite, amarrou-o ao mastro e subiu-o o mais alto que pôde. Como era amarelo podia ser visto. Durante muito tempo observou com angustia o barco que seguia imperturbável o seu rumo para, após ter perdido toda a esperança, vê-lo mudar de direcção e vir ao seu encontro, depois de um largo rodeio.
O Chico caiu de joelhos a chorar, um chorar convulsivo, sem lágrimas, que lhe tirava o fôlego. Quando se levantou apreciou o barco próximo, um vapor de carga que arreou um escaler onde tomaram lugar meia dúzia de marinheiros, remos empunhados, remadas decididas levaram a embarcação ao encontro dos pequenos doris. Falaram-lhe numa língua estranha, não percebeu nada.
- Água, por favor – pediu com a voz num sopro.
Um marinheiro prendeu o doris com o croque e outro saltou a bordo. Voltou a dizer-lhe algo e apontou para o outro doris e para o vulto do Raposo.
- Morreu, era bom homem. Dê-me água…
O marinheiro agarrou o cabo lhe os seus companheiros lhe lançaram e em breve fizeram-no subir a bordo do vapor onde bebeu com avidez longos golos de água, até lhe arrancarem a garrafa das mãos.
O barco vinha de Boston e ia para Galway, na costa da Irlanda e fôra encontrado a mais de trezentas milhas a sul do pesqueiro. No mesmo dia fizeram o funeral ao Raposo, lançaram-no ao mar com toda as exéquias, já que o vapor não tinha condições para manter mais tempo o cadáver a bordo e a viagem ainda ia durar mais alguns dias.
Pela rádio avisaram o Comando Naval do acontecimento e quando atracaram, o Chico tinha à sua espera um representante consular de Portugal. Depois de vários dias à espera para lhe tratarem dos papéis, tomou num cargueiro que o desembarcou em Lisboa, uma semana depois.
No fatídico dia do nevoeiro desapareceram mais dois doris, alem do seu e do Raposo. Esses nunca mais apareceram.
Regressou a Âncora de comboio, descansou uns dias, meteu no saco alguma roupa e passou a salto, primeiro para Espanha, depois para França, onde começou a trabalhar nas obras.
Cinquenta anos depois, já reformado, mantêm-se fiel à promessa de nunca mais desafiar o mar.
 
Nos mares do Norte  (3ª parte)

Raios o partam...

 
Anos trinta, Gontinhães, uma aldeia de pescadores no norte de Portugal

A gamela encostou suavemente à areia, no portinho. Os homens saltaram para terra descalços, calças arregaçadas, chapinhando no silêncio da noite. Sem precisar de voz de comando, todos se esforçaram por guindar o barco para local seguro, onde o mar não lhe tocasse.
Os rolos, em cima dos varais, deslizavam sob o fundo chato daquela embarcação de origem galega, mas bem adaptada às rudes condições do portinho de Gontinhães.
Os bancos, ainda há pouco ocupados pelos homens que remavam, estavam agora vazios. A vela estava arrumada, não havia vento, tinham ido e vindo a remos. As redes da lagosta tinham sido largadas perto, a sudoeste do Forte do Cão, já nos mares de Afife.
Cada um pegou nas suas coisas, nos seus baús e murmurando um “até amanhã”, rumou às suas casas, depois de calçar os socos em terra firme. Já passava da meia-noite, a luz eléctrica que alumiava as ruas, tinha sido apagada. Valia a lua, que ia alta, faltavam três dias para ficar cheia, sempre dava para ver o caminho.

O Manuel Verde, o Jeitoso, arrais da embarcação, enrolou o cigarro às escuras, sem hesitações, pela prática de muitas noites, acendeu-o no aconchego da samarra, tirou um longa fumaça e observou os seus camaradas que pesadamente se afastavam. Urinou à beira de uma pilha de caixas, que esperavam o verão e a sardinha, que tanta fartura trazia à terra.
Após uma última fumaça, atirou a beata para a areia, e inclinou-se para dentro do barco, junto ao testeiro da popa, para pegar no seu baú.
Era um velho e gasto baú de madeira, que usava há mais de vinte anos, cada dia que ia para o mar. Tinha sido a sua mãe, que Deus tenha, que o tinha encomendado a um marceneiro da freguesia quando, ainda solteiro, tinha começado a governar aquele barco.
No baú levava o comer, uma garrafa de vinho e uma garrafinha de aguardente, na qual raramente tocava. Umas das últimas vezes que tinha sido aberta, foi para socorrer o tio Corisco, quando uma maregada batera de través na gamela e o velho pescador ficara encharcado até aos ossos, pelas águas geladas, daquele mês de Novembro.
A aguardente tinha sido uma bênção dos céus e tinham devolvido as cores e o ânimo àquele homem, que vestira roupa seca, prontamente emprestada pelo arrais e pelos seus camaradas, o Damião e o Tio Mala.
Dentro do baú, repousavam a agulha de marear, a sonda, os papéis do barco e uma lista dos pontos de alguns pesqueiros mais complicados, cuidadosamente embrulhados num pedaço de lona, para defesa contra a salitre e a humidade. A um canto estava uma pequena imagem da Senhora de Fátima, aquela que tinha aparecido aos pastorinhos e que invocava sempre que saia para o mar.

Ergueu o baú, pousou-o sobre a cabeça, não pesava muito, de qualquer forma a casa não era longe. Ficava no fim da Avenida, que tinha sido construída há poucos anos e que lhe dava muito jeito.
Agora já não tinha de caminhar sobre as dunas de areia, nem sobre as lajes, que apareciam aqui e ali. Pouco depois, chegou à entrada do corredor, que dava acesso à casa térrea, que fora do seu pai.
Na casa ao lado vivia a irmã, a Piedade e a entrada era comum às duas casas. Por isso, ao longo do corredor, tinham amontoado lenha para os fogões, do lado norte do Manuel, do sul, era da Piedade, deixando uma estreita passagem ao meio. O Manuel Verde abriu a cancela, deu um passo para dentro, sentiu um tropel aproximando-se e algo o forçou entre pernas.
O pânico invadiu este curtido homem do mar, que deu um berro de terror. O baú voou sobre os feixes de lenha empilhada, caindo com fragor, uns metros adiante.
Completamente atordoado, com o coração ao pé da boca, ainda viu o vulto do grande cão que fugia, também ele espavorido, pela cancela aberta.
Da sua casa, surgiu a luz bruxuleante de um candeeiro a petróleo, que a Joaquina, sua mulher segurava, enquanto apertava o xaile com a outra mão.
- És tu, Manel? Que foi isso, homem de Deus?
- Ah...Ah...Foi...foi um cão, foi um cão que me passou pelo meio das pernas...
- Cruzes diabo, que fazia um cão aqui dentro?
- Sei lá, deve ter entrado para o terreno e como fechaste a cancela, ficou cá dentro preso. Quando me viu a entrar, o bicho aproveitou para fugir. Raios o partam, que me pregou um susto de morte. E o pior, é que o baú caiu e está tudo espalhado.
- Deixa lá homem, vai para dentro e come uma malga de caldo, que a panela está no fogão, enquanto eu apanho as tuas coisas. Vá, vai-te aquecer, que deves estar gelado.
 
Raios o partam...

Litos, o traficante 1ª parte

 
Voltou a olhar para ambos os lados, não viu nada de alarmante na penumbra da rua, entregou a prata ao tipo que estava plantado na sua frente. Dele já tinha recebido os vinte euros que faziam companhia às outras notas no bolso interior do blusão. Fez sinal com a mão, e do escuro aproximou-se outro tipo que, sem qualquer conversa, lhe estendeu a nota azulada, recebendo em troca outra pequena prata.
O Litos era traficante, apenas um pequeno vendedor que mudava frequentemente de sítio de forma a passar o mais despercebido possível pela polícia. Agora estava a fazer a noite perto do Bairro do Cerco.
Lá dentro, nas ruas do bairro, o negócio fazia-se à descarada, tanto na rua como em certas casas. Havia dias que faziam bicha nas escadas dos prédios onde estavam localizados os apartamentos dos traficantes. O problema eram as rusgas que a polícia fazia de vez em quando e lá iam meia dúzia dentro.
Mesmo que acabassem por sair, já ficavam marcados e para não serem perseguidos a cada momento, acabavam por ir dando uns bitaites à bófia. O Litos evitava ao máximo as confusões, tinha começado no “mundo” a gamar auto-rádios e umas carteiras, a “passar” erva ou qualquer coisa que desse um guito para a bucha.
Por causa de um descuido esteve preso em Custoias durante nove meses, foi lá que aprendeu a arte da dissimulação e os passos certos para o negócio da coca e do cavalo. Nunca fora consumidor e ainda sentia um certo nojo só de se lembrar que uma vez tinha fumado uma pedra de haxixe e passara a noite a vomitar.
Aos poucos estabeleceu um grupo mais ou menos fixo de clientes, que ele avisava cada vez que mudava de poiso.

- Põe-te a milhas, estás a olhar para mim porquê? Andor!!!
O magricelas alto e completamente ganzado, cambaleante, virou-se lentamente, tomou balanço e afastou-se aos tropeções.
- Este não dura muito – resmunga entre dentes.
Um carro avança lentamente do fundo da rua. Ouve um assobio, era o Chico a avisar. Recua para o interior de uma porta e fica no escuro à espreita. O veículo passa, pode ser um dos carros civis da bófia, estão sempre a mudá-los.
Antigamente conhecia-os todos, mas agora é mais difícil, até lhe tinham dito que os trocavam com os carros de Lisboa.
Farto de bater com os pés no chão para aquecer e como já há mais de meia hora não aparecia ninguém para comprar, decidiu ir embora. Fez um sinal para o sítio onde devia estar o Chico escondido, que apareceu de imediato e juntos caminharam para o seu velho Citroen AX que estava estacionado numa rua ali próxima.
- Que tal? – Pergunta o Chico.
- Fraco… Fiquei com metade por vender.
- Os gajos ainda ontem encheram a ramona no bairro, é por isso que a malta se está a cortar.
- Humm… Não tem é guito. Ainda hoje o Broas que tem sempre algum, estava liso e deixou-me ficar um relógio.
- É pá, então estás a aceitar essas merdas? Já ninguém dá nada por relógios.
- Este é bom, um Seiko. Cinquenta vale sempre, pelos menos.
Deixou o Chico junto à Câmara de Matosinhos e seguiu para a sua casa que não ficava longe. Estacionou o Citroen a dois quarteirões do prédio onde vivia, meteu a saca plástica com algumas pratas debaixo do tapete do lado do pendura, fechou-o cuidadosamente e esquadrinhou a rua deserta àquela hora da madrugada.
Tinha sempre o cuidado de deixar o carro longe e não entrava em casa até ter a certeza que ninguém o estava a observar.

Subiu no elevador até ao quarto piso, percorreu o corredor suavemente iluminado, abriu a porta do seu apartamento e suspirou de alívio.
O salão à sua frente era grande, o piso em madeira impecavelmente envernizado, cortinados verdes protegiam as vidraças da enorme janela virada para sul. Tirou o blusão, escolheu uma garrafa de whisky no bar, juntou alguns cubos de gelo, preparou a bebida e recostou-se no enorme sofá de couro negro.
Esvaziou o bolso do blusão e dedicou toda a atenção à tarefa de endireitar e ordenar aquele monte de notas amarrotadas. Mais algumas semanas e deixava a rua, era a sua primeira meta, pôr alguém a fazer o trabalho de venda. Era mais seguro, ele só tinha de controlar.

No dia seguinte acordou tarde como habitualmente e quando saiu de casa foi para ir ao Gaveto, uma marisqueira onde era cliente assíduo. Depois de um caril de gambas e uma generosa dose de pudim francês, foi buscar o velho AX e conduziu até à sua oficina, numa transversal da Constituição.
O salão era grande mas estava atravancado de moveis antigos, que ele ia recuperando lentamente e que servia de camuflagem para o seu verdadeiro negócio. Era também aí que guardava a droga, que fazia as pesagens ou o corte, e como trabalhava de porta fechada ninguém o ia lá incomodar. Apenas um ou outro proprietário dos móveis a restaurar é que lhe telefonavam a saber se já estava a obra pronta.

Tinha aprendido o ofício com o Rafael, um marceneiro resmungão do Marco, sua terra natal, que ele aturara durante dois ou três anos, desde que saíra da escola, até que se chateou e veio para o Porto em resposta a um anuncio, onde pediam um aprendiz de polidor.
Conseguiu o emprego, conheceu amigos e não tardou muito a ajudá-los a aliviar alguns carros dos respectivos auto rádios, para depois venderem. Como faltava ao trabalho e muitas vezes ia para lá dormir, o patrão acabou por mandá-lo embora e ele decidiu que já chegava de trabalhar para os outros, ter de os aturar, para no fim do mês receber uma côdea.
Passou a ajudar o Tesouras, um carteirista à moda antiga, daqueles que metia as mãos nos bolsos dos lorpas e eles ainda se riam. Nada de esticões nem de facas a ameaçar, só técnica. Trabalhavam nos autocarros e na linha da Póvoa, mas tiveram de desistir dos comboios porque já estavam a ser topados pelos revisores, que avisavam os passageiros.
Um dia o Tesouras ainda levou uns tabefes, o que lhe valeu foi chegar um polícia que estava de folga e que o tirou daquela enrascada, pois já havia uns gajos que o queriam mandar abaixo do comboio.
Foi quando começou a vender erva à porta de discotecas, porque o Tesouras agora estava mais cauteloso e o que ganhavam não dava para nada.
Uma noite, quando ia passar para a mão de um cliente uma pedra de haxixe, sentiu fechar-se no pulso uma argola de metal frio, era um polícia disfarçado de cliente e ele tinha sido apanhado em flagrante.

Em Custoias ofereceu-se para trabalhar na carpintaria, onde ninguém o chateava e as horas passavam mais depressa. Depressa ganhou a confiança do encarregado da oficina e dos guardas, passando a ter uma liberdade invejável, até porque não havia risco de fuga por a pena ser muito curta.
Ainda ganhou uns cobres a servir de correio entre os poderosos e mandantes da cadeia e, acima de tudo, ganhou confiança com eles, ganhou contactos e informações que esperava serem de utilidade quando pusesse os pés na rua.
 
Litos, o traficante     1ª parte

O velho pescador

 
Era um dia como tantos outros, o velhote saiu pela porta da cozinha, pegou na caixinha da isca, meteu-a cuidadosamente no zote onde já estavam meia dúzia de chumbos, carteirinhas com diversos tipos de anzóis, bobines de fio de nylon e outros acessórios de pesca.
Pôs o zote de verga ao ombro, pegou na cana encostada à parede e abriu o portão da rua. O dia nascia triste, enevoado e húmido, muito húmido. Rapidamente o boné azul ficou pejado de pequeníssimas gotículas brilhantes. Lentamente, arrastando as botas de borracha que lhe chegavam aos joelhos, desceu a avenida marginal. Ainda tinha para uma meia hora, senão mais, para ir até à Guimbra, o sítio onde tencionava passar a manhã a pescar.
Nem apreciava de modo especial aquele pesqueiro, o que lhe agradava era o ambiente que o rodeava. Pelo caminho foi cumprimentando quem conhecia, alguns também iam pescar como ele, mas iam em passo mais ligeiro, eram mais novos. Acenou ao Berto que já estava nas pedras da ribeira com o bicheiro dos polvos. “Ainda tem mais vício que eu, não passa um dia sem vir cá abaixo” e na cara do velho esboça-se um sorriso.
Chegado à Guimbra, pousou o zote no chão e sentou-se numa pedra à beira do caminho. Agora teria de descer até ao mar e aquelas lajes molhadas eram um perigo, tinha de ir com cautela.
Admirou-se por a maré estar tão vazia; ou tinha feito mal as contas ou saíra de casa mais cedo que o costume. A pedra alta de onde costumava pescar estava desocupada, aliás, ali perto não estava ninguém a pescar, apenas duas mulheres, mais a norte, talvez a Ritinha e a filha, que deviam andar na apanha dos percebes e do mexilhão.
“Qualquer dia tenho de ir ao médico da vista, se calhar são cataratas. Ao longe vejo cada vez pior” pensou o Guilhermino enquanto preparava a cana. Primeiro colocou o anzol, depois a chumbeira, iscou com meio caranguejo e lançou suavemente para o mar à sua frente. O isco caiu perto, não mais de trinta metros, já não podia fazer aqueles lançamentos de que tanto se orgulhava quando era novo.
Uma vez apostou que lançava mais de cem metros e como tinham duvidado, logo desafiou os incrédulos para irem à praia tirar as teimas. No primeiro lançamento lançou a cento e vinte e três passos, contados pelo Ticúm que tinha os passos grandes. Quando todos já se davam por satisfeitos o Guilhermino fez outro lançamento a mais de cento e trinta passos. “Bons tempos, nessa altura ainda era novo, hoje não posso com um gato pelo rabo” e sentou-se, depois de pousar a cana, equilibrada numa fenda da rocha.
À sua volta as gaivotas ociosas, ora pousavam, ora levantavam para mais um voo preguiçoso sobre as águas cinzentas.
A névoa tinha levantado e levado com ela a humidade, mas ainda estava fresco, talvez ainda desse para tirar o casaco mais tarde. Nas pequenas poças escavadas nas rochas, a vida tinha o seu ritmo próprio. As anémonas abriam e estendiam os seus filamentos em esforço de caça, pequenos caranguejos moviam-se sem jeito, de lado, como se dançassem. Um ou outro pequeno peixe, cabozes das pedras, corriam para lá e para cá à procura de alimento.
Levantou-se, pegou na cana, recolheu a linha, voltou a iscar, lançou e sentou-se à espera. “Hoje não estão cá, ou se estão não pegam na isca. Antigamente bastava cair na água e logo o peixe se atirava”.
O Guilhermino sabia bem que cada vez havia menos peixe, a ganância do negócio estava a transformar o mar num deserto. Desde que tinham começado a usar as redes de arrasto que tudo destruíam, a sobrevivência de muitas espécies estava ameaçada. “Malditas redes, mil vezes malditas” e escarrou com força, enquanto fixava o olhar no voo rasante de uma gaivota a escassos centímetros da água.
Embora não estivesse sol, já não fazia frio e decidiu tirar o casaco e o impermeável que o tinha protegido da humidade. Assim sentia-se mais à vontade, mais livre. Era por isso que gostava de pescar, mesmo que não apanhasse peixe. Só a sensação que era estar junto ao mar, aquele mar imenso que tinha atravessado dúzias de vezes a bordo dos barcos mercantes onde trabalhara. “Vida dura, meses e meses sem vir a casa, os filhos pequenos, que nem me conheciam quando chegava”, agora podia gozar a merecida reforma e a pesca era mais que um entretimento, era uma forma de estar na vida.
A cana começou a vergar, estremeceu várias vezes e manteve-se dobrada. Com uma velocidade pouco própria para a sua idade, levantou-se e deitou-lhe a mão. Ficou tenso, ansioso até sentir mais alguns puxões dados pelo peixe no outro extremo da linha.
Durou muito tempo a batalha entre estes dois seres, um apenas queria o troféu, o outro lutava pela vida. Valeram todos os truques, todas as manhas, todas as experiências vividas.
O Guilhermino perdeu a noção do tempo que levou até trazer o peixe para junto da pedra, já nem sentia os braços de cansaço, doíam-lhe as pernas do esforço e sentia o suor a escorrer pela cara e pelas costas abaixo.
O peixe, um exemplar soberbo, veio finalmente à tona extenuado com a luta, fazendo brilhar a sua ilharga prateada. Depois de o encostar à pedra, o pescador baixou-se, estendeu a mão e enfiou-lhe dois dedos pelas guelras. Num último esforço puxou-o para seco, desequilibrou-se e caiu para trás, ficando sentado na rocha com o peixe entre as pernas.
Foi o momento decisivo, os dois contendores olharam-se nos olhos, o peixe agonizava em estertores, o Guilhermino arfava devido ao esforço. “Lá entre os teus, também és um velho como eu, se calhar ainda mais velho. Não mereces esta sorte”.
Retirou-lhe o anzol fortemente cravado na mandíbula, pegou-lhe outra vez pelas guelras, tomou-lhe o peso e voltou a pousá-lo suavemente na água.
O velho robalo ventilou lentamente, agitou-se, mas não se afastou. “Vai-te embora, és livre, não voltes a cair no engano, vai”. Com uma palmada da poderosa barbatana caudal, ganhou impulso e afundou-se majestosamente. Duas lágrimas rolavam pela cara do Guilhermino que as limpou com as costas da mão.
Levantou-se penosamente, mas com um sorriso na cara enrugada “ora, para que é que precisava de um peixe tão grande, só para mim e para a Lurdes? Ia ser um desperdício, mais vale assim”.
 
O velho pescador

O soldado que não esqueceu (1ª parte)

 
O Ernesto virou-se lentamente e as molas do velho sofá rangeram. Aconchegou a manta e coçou repetidamente a barriga. Mais uma pulga madrugadora que se passeava entre o tufo cerrado de pêlos que lhe desciam pelo peito, numa mancha contínua até aos pés.
Seriam ainda umas cinco da manhã e o frio entrava por todas as fendas existentes. Pouco adiantara ter entalado jornais debaixo da janela e na porta, se é que se podia chamar porta àquelas tábuas desconchavadas que tapavam a entrada da barraca.
Como pertences, apenas a mochila surrada onde guardava umas calças de ganga, duas camisas e uma camisola de lã, tudo oferecido pelos voluntários da carrinha amarela. Roupa interior já não usava há muito, os pés entravam e saíam nus de dentro das velhas botas, que um dia tinha encontrado junto a um contentor de lixo. Alguém que já não precisava, tinha dado a oportunidade de um pobre as aproveitar.
No pequeno compartimento, o único mobiliário era o sofá de veludo, seboso e rasgado em vários sítios, uma mesa redonda de plástico branco e duas cadeiras a condizer, certamente “fanadas” de alguma esplanada.
As “necessidades” eram feitas entre os arbustos que cresciam livremente no terreno com vista para a Serra de Santa Justa, às portas de Valongo.
O Ernesto depois de ter pernoitado ao relento em muitos vãos de porta e debaixo da maioria das pontes das VCI, tinha arranjado aquele abrigo que lhe permitia suportar melhor o frio do mês de Novembro. Pelo menos não chovia dentro, o telhado de zinco ainda estava em bom estado.
Este homem baixo que a fome emagrecera, enrugado precocemente, não ultrapassava os cinquenta e poucos anos, apesar de aparentar mais alguns. Quem o visse diria que andava pelos sessenta anos ou mais.

Quando saiu da escola primária em Torre de Moncorvo, foi aprender o ofício de serralheiro para a oficina do Salvador, que lhe deu as primeiras luzes sobre a arte de bem trabalhar o ferro.
Dois anos depois, um primo afastado da mãe aceitou-o com aprendiz na Calandra do Bonfim, no Porto, onde alugou um quarto ao cimo da Rua de Santa Catarina. Uma vez por mês, metia-se no comboio que subia o Douro até Barca d`Alva e rumava a casa paterna de onde vinha carregado com chouriços, presunto e outras iguarias serranas, que complementavam as refeições tomadas no “Marinho”, uma casa de pasto no Largo dos Poveiros. Foi também no “Marinho” que conheceu a Rosa, uma sardenta que fazia a Rua de Santos Pousada e que o iniciou nas artes de alcova.
A vida foi correndo entre o trabalho, onde já tinha a confiança do patrão, as idas ao futebol ao domingo à tarde, as horas passadas com as raparigas habituais no “Marinho” e as jogatinas de sueca numa tasca do Bonjardim, mesmo por detrás da Estação da Trindade.

Quando foi chamado para a tropa assentou praça em Coimbra, fez a recruta e a escola de cabos, deram-lhe duas semanas de férias e de seguida embarcou rumo à Guiné, a bordo do Niassa. Os dias de férias gozou-os junto da mãe e da única irmã, mais velha que ele cinco anos e que tinha casado na terra com o Evaristo, um dos três carteiros lá da zona.
Corria o ano de 1971 e o que se sabia da Guiné é que uns terroristas nos queriam roubar as províncias ultramarinas, por isso era preciso combatê-los por todos os meios e a guerra estava quase ganha.
O Niassa demorou mais dois dias que o normal para chegar a Bissau, devido ao mal tempo que apanhou nas Canárias. Quando pôs os pés em terra firme, o cabo Ernesto da Silva Martins estava mais morto que vivo devido ao enjoo prolongado.
A sua companhia estacionou num quartel dos arredores de Bissau durante alguns dias, até chegarem as Berliet e os Unimog que os transportaram até Candamã junto à fronteira com a Guiné-Conacri.
O quartel não passava de um conjunto de barracões toscos e de uma parada, tudo rodeado por duas alturas de bidões metálicos de duzentos litros cheios de terra, rodeados, por fora e por dentro, de arame farpado.

O Ernesto procurou levar muito a sério as missões em que foi envolvido e dar aplicação ao treino que tivera na longínqua Serra da Lousã. Ouviu muitas vezes as balas a assobiar sobre a cabeça, mais de uma vez teve que cavar com as mãos abrigos improvisados para se furtar aos efeitos do bombardeamento por armas pesadas, que era suposto os terroristas não terem. Viu caírem camaradas de armas e a sua companhia foi das que mais baixas teve durante o ano de 72.
Ouvia na Emissora Nacional, em ondas curtas, a propaganda do regime e as crónicas de guerra, onde se anunciava que os terroristas estavam mal armados, esfomeados e não passavam de meia dúzia de desgraçados escondidos no mato.
Sabia agora que era tudo mentira, quem se escondia no mato por detrás de paliçadas e arame farpado era a tropa portuguesa, frequentemente emboscada quando saia em patrulha.
Perdeu a moção do tempo e dos actos bárbaros a que assistiu e nos quais participou, mudou de região, a situação estava cada vez pior. Havia zonas onde já não punham os pés, nem os helicópteros se aventuravam.

Quando regressou ao continente e foi desmobilizado, retomou o seu lugar na calandra e pouco depois conheceu a Luísa num baile do Grémio de Rio Tinto. Os pais dela tinham uma mercearia e a Luísa trabalhava de costura para uma modista. Namoraram durante alguns anos, o 25 de Abril tinha passado, alugaram casa e passaram a morar juntos, após casamento civil.
O Ernesto tornara-se uma pessoa reservada, embora sociável, que dedicava a vida ao trabalho e à família. Na calandra, o patrão tinha-lhe dado uma pequena cota de sociedade, os negócios corriam bem, ganhava-se muito dinheiro com as constantes subidas de preço da chapa metálica.
A família cresceu, veio primeiro o Luís Rafael e três anos depois nasceu o André, que era a cara chapada do pai.
Um dia souberam de um apartamento à venda na Travagem, pediram dinheiro ao banco e acabaram por comprá-lo, dando como entrada os mil e quinhentos contos resultantes da venda de umas propriedades, que lhe tinham tocado por morte da mãe.
Os filhos cresceram, a Luísa largou a modista que entretanto se tinha reformado e arranjou emprego numa fábrica de confecções em Ermesinde, onde rapidamente ascendeu a chefe de linha.
O dono da calandra, que ainda era seu parente afastado, cada vez ligava menos à oficina, deixando-lhe a responsabilidade dos clientes e da produção. Ele apenas tratava das papeladas e dos bancos, era raro aparecer durante a manhã, só de tarde e nem sempre.
Quando se divorciara andou uns tempos acabrunhado, mas depois dedicou-se à boa vida e eram frequentes os comentários dos operários que casualmente viam o patrão acompanhado de mulheres vistosas, com idade para serem suas filhas.
(continua)
 
O soldado que não esqueceu  (1ª parte)

A tentação (1ª parte)

 
O Padre Maia guardou uns segundos de silêncio, abençoou os fieis ao mesmo tempo que repetia a habitual despedida, “ide em paz e que o Senhor vos acompanhe”.
Fechou a Bíblia encadernada a couro encarnado pousada sobre o altar e encaminhou-se para a sacristia. Os seus paroquianos que tinham assistido à missa, começaram a sair da igreja. Cá fora juntaram-se em pequenos grupos, que rapidamente retomavam as conversas interrompidas pelo ofício vespertino.
O sol ainda ia alto, fazia calor e a sombra projectada pelas oliveiras e pelos ciprestes do adro davam conforto aos corpos suados. Ali ao fundo, alguns homens discutiam futebol, falavam do último jogo do Benfica que voltara a perder, desta vez na Madeira, mais além, um grupo de raparigas trocava confidências sobre os namorados, aqui perto umas beatas já idosas, cochichavam sobre os rumores que davam como certo, mais um par de cornos para o Amílcar Padeiro, desta vez a mulher andaria com um tipo da Guarda Republicana, que era novo no posto.
No ambiente fresco e obscurecido da sacristia, o Padre Maia tirou os paramentos, dobrou-os cuidadosamente e arrumou tudo no armário. Penteou-se ao espelho, compôs a fralda da camisa azul de manga curta, pegou na pasta e saiu.

Ao chegar ao seu escritório olhou para o velho relógio de parede. Já passava das sete da tarde e o calor continuava sufocante. Dispôs-se a ler mais umas páginas de “O último papa” um livro que falava da vida no Vaticano e das lutas pelo poder que se travavam nos seus corredores. Estavam na moda as novelas históricas, onde a Igreja era frequentemente atacada, principalmente o Vaticano, que parecia ser povoada por monstros malignos, na pena desses escribas.
- É sempre a mesma conversa, Jesus era casado, teve filhos com a Maria Madalena, Judas afinal era dos bons, o João Baptista é que era o Mestre, que mais estes tipos irão inventar! – Falava para si o padre, enquanto procurava o marcador entre as páginas.
Algum tempo depois a Conceição, sua governanta, apareceu à porta do gabinete e repetiu o de sempre, “ o jantar está servido, Sr. Padre”.
- Obrigado Conceição.
Fechou o livro, pousou os óculos sobre ele e foi para a sala de jantar. A mesa estava posta apenas para si, a Conceição teimava em cear na cozinha, apesar de ele ter insistido várias vezes para que lhe fizesse companhia na sala.
- Não Sr. Padre. O senhor tem o tempo da refeição para pensar e eu tenho outros afazeres, nem iria comer tranquila.
A Conceição devia andar pelos setenta anos e era sua governanta há mais de vinte. Viera consigo de Pinhel, onde a Conceição já era sua governanta, depois de ter chegado aos ouvidos do bispo um falatório acerca do padre Maia e da antiga empregada.
Enquanto comia a sopa, pensou mais uma vez na Celeste, a doce Celeste que quase o fez virar as costas à Igreja.
O seu envolvimento durara poucos meses, ele era um jovem padre, tinha sido ordenado três ou quatro anos antes, quando a contratou para criada externa. Já nem estava certo se a tinha procurado ou se ela lá tinha ido oferecer-se.
Aos poucos, a confiança entre eles tinha solidificado e nascera uma paixão que em breve a levava a passar algumas noites no passal.
Estas coisas acabam sempre por se saber e os bispos têm muitos olhos e ouvidos. Alguém tinha ido com o conto, ele foi chamado à sua presença, tiveram uma conversa franca, sem recriminações, nem arrependimentos. O bispo propôs-lhe passar algumas semanas de reflexão no Seminário de Évora e prometeu-lhe que dariam um futuro digno à rapariga, na condição de ele a esquecer e não a tentar encontrar.
Acabou por concordar e quando regressou à sua paróquia, encontrou lá a Conceição a dirigir a residência paroquial.
Rapidamente percebeu que era uma mulher com um certo nível cultural e que devia encerrar um segredo qualquer, mas nem em confissão se abria. “Curioso, ela nem sequer é muito religiosa. Missa só aos domingos e nem sempre”.
Enquanto a sua velha colaboradora pousava uma travessa de bacalhau cozido e hortaliça fumegante, pensou o pouco que sabia dela ao cabo de tantos anos de convivência. O mesmo se passava com a Celeste, nunca soube nada dela, de onde viera, para onde fora enviada.
Parece que ainda estava a ver a Celeste com o longo cabelo negro apanhado num “puxo”, olhos grandes e escuros, boca bem desenhada e lábios carnudos. O corpo era forte, mas bem torneado, como só as moças do campo tem.
- Isso são coisas do passado, nem sei porque me lembro disto, já há-de estar casada, se calhar já tem netos. Já não se lembra de mim…
Acabou o jantar concentrando a atenção nas notícias do telejornal, tomou o café e foi para o centro paroquial, onde iria presidir a uma reunião da Fábrica da Igreja. Nessa noite dormiu sobressaltado e por várias vezes acordou com a sua antiga criada no pensamento.

Uma semana depois, estava no seu escritório a ler umas actas antigas das “Memórias Paroquiais” quando ouviu a campainha da porta. Passados alguns segundos a campainha voltou a tocar, levantou-se e foi atender. À porta estava uma senhora com um bebé ao colo, que lhe perguntou pela D. Conceição Andrade.
- Ela deve estar para o quintal. Faz favor de entrar e esperar um momento, que eu vou chamá-la.
Acto contínuo atravessou a cozinha, abriu a porta das traseiras e chamou a Conceição que lavava roupa no tanque.
- Conceição, está no átrio uma senhora que quer falar consigo.
- Uma senhora?
- Sim, com um bebé ao colo.
- Já vou, já vou – e limpava as mãos ao avental enquanto subia as escadas para a cozinha.
O Padre Maia voltou para o seu escritório sem deixar de passar pelo átrio e dizer à visitante que a Conceição estava a chegar.
Pela primeira vez deu atenção àquele rosto. As feições não lhe eram desconhecidas e foi a pensar nisso que retomou a leitura das actas. Instantes depois desistiu, porque o pensamento voava em círculos, cada vez mais amplos, qual falcão em busca da presa.
- Dá licença Sr. Padre? – Interrompeu a Conceição, da porta.
- Diga, Conceição.
- Eu… hum… eu, queria, hum… Não sei como dizer-lhe.
- Mas diga senhora, diga. Passou-se alguma coisa?
- Não! Quer dizer… sim. Passou. Aquela senhora que está lá fora é minha filha.
- Você tem uma filha? Não sabia, nunca me tinha dito nada!
- Pois não…
- Mas há algum problema, Conceição?
- Não Sr. Padre, mas ela quer cumprimentá-lo e mostrar-lhe o bebé.
- Então, é preciso ficar assim atrapalhada por causa disso? Mande entrar a sua filha, ande lá.
- Deus me valha, Deus me valha!
Saiu do aposento, regressando de imediato com a filha e a criança ao colo. O Padre Maia inclinou-se para poder apreciar o bebé que não teria mais de cinco ou seis meses e sorriu para ambas.
- Gracias por me receber e à mi nieto.
- A senhora esteve em Espanha muito tempo?
- Si, vivo em Espanha à mas de vinte anos, por isso hablo mas Espanhol que Português.
- E está de visita a Portugal ou veio para ficar?
- Vim tão solo mostrar mi nieto a mi madre e me vou mañana a Granada. Usted não me conhece, Cura?
- Não… bem, a sua cara não me é estranha, mas… Virgem Santíssima, tu… a Celeste!!! Tu és a Celeste!
- Por supuesto, Cura, eu sou a Celeste, se recuerda de mi.
- Como não… Assim, com o cabelo louro, já se passaram tantos anos. Casaste, tiveste filhos. Eu… Eu continuei com a Igreja.
- Si, casei há oito anos.
- Mas então, se esse bebé é teu neto, como é…
- Si, mi nieto, pero también tu nieto, hombre!
- Hum…
- Ai Jesus… - gemeu a Conceição.
- Este niño es hijo de nostra hija, Cura!
 
A tentação (1ª parte)

Carta por terminar

 
Gontinhães, Primavera de 1922

Subiu a calçada do Sol Posto, mas ao passar junto da propriedade do Teles parou arquejante. Um cansaço imenso invadia-lhe o corpo, toldava-lhe a mente. O coração batia desordenado, as pernas pesavam, o ar entrava-lhe com dificuldade no peito.
Encostou-se ao muro com o semblante fechado, procurando recobrar alento. O corpo alto e ossudo, as costas algo curvadas, a tez branca, pálida demais para quem vivia à beira mar, descreviam um jovem precocemente envelhecido. Os vinte e dois anos representavam já um fardo pesado para quem perdeu o pai ainda bebé de cueiros e a mãe três anos depois, ambos abatidos pela tuberculose.
Quando a mãe enviuvou, cedo lhe deu um padrasto, o Abel, que era como um verdadeiro pai para ele. Foi com ele e a avó Maria Chocalha que ficou a viver quando a mãe se finou, pouco depois.
A mãe que procurava recordar, mas de quem não tinha uma leve recordação para guardar. Apenas a fotografia dos pais no dia do casamento perpetuava a imagem destes seres, tragicamente ceifados pela doença implacável. Pouco depois de enviuvar, também o padrasto tinha casado com a Delfina, que o aceitou, e dele tratou com esmero, lado a lado com as filhas naturais que iam surgindo, a Bela, a Minda, a Quinhas, a Letinha, agora vinha mais um a caminho. A Delfina tinha anunciado há poucos dias que estava novamente de esperanças.

Aos poucos recuperou a respiração, mas um ataque de tosse trouxe-lhe um vómito à boca. Limpou o escarro com o lenço, uma pequena mancha encarnada tingia o pano. Já era a segunda vez que lhe acontecia.
Retomou a marcha, um passo lento, quase de velho, até aos Poços de Vilarinho por entre caminhos bordejados de giestas floridas. Sentou-se à sombra de um velho plátano, vendo à sua frente o casario que se estendia até ao mar. Lá em baixo, a beijar a areia do portinho, esperavam as gamelas da sardinha, prontas para a faina, logo mais à tardinha.
Desceu vagarosamente a Gontinhães, terra onde a Delfina e o Abel tinham uma loja e pensão de hóspedes, que era também a sua casa. As crianças brincavam no Largo do Sol Posto ao lado da pensão. Jogavam à riola, outras saltavam à corda.
- Américo, joga aqui connosco – pediu a Letinha, a mais nova do grupo.
- Sim, sim, Américo joga connosco – fizeram coro as demais.
- Agora não posso, tenho de ir tomar conta da loja e falar à avó Maria. Mais logo jogo convosco e ganho-vos a todas!
Entrou na loja fresca e sombria, sentiu-se melhor, já nem lhe ardia o peito ao respirar. Não encontrou a avó em parte alguma. Uma das criadas informou-o que a tinha visto a descer a rua em direcção à praça.
- Se calhar foi à Igreja – concluiu o Américo.
- Que queres à avó, Américo? – Pergunta a Delfina que descia as escadas, vinda dos quartos e que tinha ouvido parte da conversa.
- Nada Tia Fina, nada. Era só para saber dela.
- Américo, estás tão pálido, andas outra vez a comer pouco. Pareces um pisco! Vem comigo, vou fazer-te uma gemada com vinho fino, a ver se te dá novas cores.
- Mas não me apetece nada…
- Não sejas teimoso, tens que te alimentar. Vamos lá para a cozinha!
No dia seguinte estava a Delfina a servir os almoços para os hóspedes quando entrou na cozinha a Gracinda, uma das lavadeiras da pensão.
- D. Delfina, quando puder chegue ao lavadouro.
- Ó mulher, não vês que estou a servir os almoços… Que raio, não fazeis nada sozinhas. Afinal o que aconteceu?
- É que… bom… é melhor a senhora passar lá.
- Deixas-me em cuidados, mas agora…
- Não há pressa D. Delfina. O que é pode esperar…
- Vá lá D. Delfina, eu acabo de servir. Já faltam poucos – intervêm a Maria Ferrinha, a ajudante de confiança da dona da pensão.
Passaram à copa, subiram os degraus que conduziam ao terreno onde estavam os lavadouros. Dois tanques enormes em cantaria de granito onde eram asseados os lençóis, toalhas e cobertores da pensão, assim como as roupas dos hospedes e dos proprietários.
- Que se passa mulher, parece que te surgiu uma alma danada.
- Olhe para este lenço…
- Tem sangue. De quem é?
- Tem sangue mas é no escarro – esclarece a Gracinda.
- Cruzes, de quem é o lenço?
- Do… do menino Américo…
- Tens a certeza?
- Se tenho, minha senhora! Fui eu que abri a trouxa dele. Olhe o resto da roupa, a camisa, as ceroulas, não enganam. São do menino e aqui está outro lenço também manchado de sangue.
- Deus me valha, onde é que ele está?
O Américo foi procurado imediatamente por toda a casa, acabou por aparecer pouco depois com um cesto de figos que recolhera da figueira grande. “Está tão carregada que os galhos estão dobrados quase até ao chão” contava o Américo, enquanto pousava o cesto sobre a comprida mesa da cozinha.
A Delfina pegou-lhe suavemente por um braço levando-o para a salinha, contigua à cozinha, onde o interrogou sobre o sangue no lenço de bolso.
- Pois foi Tia Fina, já é a segunda vez que me acontece. Depois de tossir sai-me um escarro com sangue misturado.
- Ai filho, tu estás doente. Bem me parecia que a tua cor era esquisita. Já mandei chamar o Dr. Luís, mas está para Afife. Só mais logo é que regressa. Enquanto ele não chega tens de te recolher ao quarto. Pode ser doença que se pegue às crianças…
- Oh não! Às crianças não…
- Por isso, vais para o teu quarto até chegar o Dr. Luís, que eu levo-te lá o comer.

O diagnóstico feito pelo Dr. Luís Ramos Pereira foi peremptório, o mal estava instalado nos pulmões e pouco havia a fazer. Foi dada ordem para queimar as roupas de cama e escaldar e apartar a louça onde o rapaz comia.
No dia seguinte foi para o Amonde, acompanhado da avó Maria Chocalha, instalou-se na casa da sua tia Joaquina, irmã do seu falecido pai. Isolamento, ar do monte e uns remédios aviados na botica eram a única esperança.
- Talvez ainda não esteja muito adiantado. – Dizia com ar de dúvida o médico – Olha que se os ares do Amonde não o curarem, nada mais o cura.
Todas as semanas a Tia Leonarda carregava à cabeça um cesto de mantimentos e o jornal para o Américo ler. A viagem fazia-a a pé, duas léguas para cada lado, nada que assustasse esta mulher, habituada como estava a carregar feixes de lenha e outras mercadorias o dia inteiro. Na volta trazia sempre uma carta que o doente escrevia para a sua mãe de adopção, a Tia Fina como ele carinhosamente lhe chamava.
Uma vez o Abel ainda levou as crianças até ao Amonde, viram ao longe a casa e o Américo, não se aproximaram com receio do contágio.
Nem os ares do monte, nem os cuidados de quantos o rodeavam lhe valeram. Escrevia mais uma carta para a Delfina, grávida de oito meses, quando a pena lhe escorregou dos dedos. Já não terminou a frase “Deus o crie para a boa…”.
 
Carta por terminar

Esquecimento

 
Chovia de forma diluviana. As pingas batiam-lhe na cara e no blusão, escorrendo em direcção ao solo. Encostava-se o mais possível às paredes, na vã tentativa de escapar ao bombardeamento das pingas.
Ao chegar ao fundo da avenida abrigou-se na entrada lateral do Banco. Ao menos ali não chovia. Passou a mão pela cara e pelo cabelo, penteando-o para trás com os dedos. Logo se arrependeu, porque agora a água escorregava pelo pescoço, alagando o colarinho da camisa. O candeeiro de iluminação pública com a sua luz amarela de vapores de sódio, mostrava uma cortina de água à sua volta.
Quando saíra de casa, apenas a uns trezentos metros de distância, ainda não chovia e nem sequer se apercebeu da iminência da bátega de água, que se iria abater dentro de alguns segundos. Tinha sido de repente!
Tudo aquilo por causa de um esquecimento. Esquecera-se de pagar a factura da Internet e já passavam dois dias do prazo limite. Podia ser que ainda fosse possível o pagamento por Multibanco.
Voltou a perscrutar o tempo, parecia que já chovia menos. O vento é que se mantinha de sudoeste. Ia ser uma noite de temporal.
Bateu com os pés no chão, passou outra vez a mão pela cara ainda encharcada e fez o que já não fazia há muitos anos, se calhar desde jovem. Inclinou-se para a frente e sacudiu violentamente a cabeça, borrifando de água os vidros da porta do banco. Voltou a passar a mão pelo cabelo e encontrou-o mais enxuto.
Agora chovia menos, tinha a certeza, era preciso continuar, só precisava de contornar o banco até à outra entrada, onde estava a caixa Multibanco. Levantou a gola do blusão e com determinação desceu para o passeio.
Ao chegar ao destino baixou o fecho do blusão de forma a alcançar a carteira, retirou o cartão, meteu-o na ranhura, digitou o código e procurou a factura em débito. No bolso direito, no bolso esquerdo, junto à carteira, nas calças… Onde raio estaria a factura? De repente lembrou-se, pousara-a sobre a mesa da sala enquanto vestia o blusão.
Soltou uma gargalhada enquanto retirava o cartão da máquina. De regresso a casa assobiou todo o caminho…
 
Esquecimento

Agarra que é ladrão!

 
Catrapum… O barulho ecoou na noite fria de Março. Depois, regressou o silêncio. Ao longe ouvia-se o mar, em suaves investidas contra o praial.
A Tia Ana Rosa desencostou a cabeça do travesseiro, mas não ouvia nada a não ser o ressonar ritmado e tranquilo do marido, ao seu lado.
- Domingos, oh Domingos, acorda homem.
- Ah… que foi?
- Tu não ouviste?
- O quê?
- Não ouviste o barulho?
- Não mulher. Deixa-me dormir, se calhar foi algum gato no telhado…
- Não foi nada. Foi cá dentro.
- Aqui na casa? – Duvidava o Domingos Verde.
- Sim, aqui na casa. Levanta-te e vai ver na sala e na cozinha. Se calhar foi o oratório que caiu na sala.
- Raios partam a minha sorte, logo agora que estava tão bem a dormir.
- Despacha-te!
O Domingos acendeu a vela que estava na mesinha de cabeceira, vestiu a samarra sobre a camiseta e as ceroulas, caminhou até à sala. Levantou a vela para melhor enxergar, não viu nada de anormal, o oratório estava no sítio, dirigiu-se para a cozinha, repetiu o movimento da vela e disse em voz alta.
- Não vejo nada de estranho.
- Vê lá a gaveta do dinheiro?
- Está na mesma.
A Tia Ana Rosa é que não se convencia e já se levantava para confirmar. Deitou a mão ao avental que estava pendurado na cabeceira da cama e teve um arrepio. A chave da gaveta, não estava no bolso do avental.
- Fomos roubados, Domingos.
Saiu do quarto direita ao móvel onde estava o oratório, que fazia de cómoda, com três gavetas logo a seguir ao tampo e dois gavetões por baixo, onde guardava a roupa da casa.
O tampo estava coberto por uma toalha alva, que caía para a frente, escondendo a fila das gavetas.
Levantou a toalha e no lugar da gaveta do meio, ficara o buraco negro onde ela deslizava.
- Tinhas razão, fomos roubados, mas como?
- E foram ao nosso quarto buscar a chave! – Dizia a Tia Ana Rosa – Foi o barulho da janela que eu ouvi.
As janelas eram de guilhotina e nunca estavam travadas. Acenderam o candeeiro de petróleo, foram observar a janela e descobriram, do lado de fora, um par de sapatos e pegadas frescas na areia macia da rua.
- Vai chamar ajuda, vai acordar os teus camaradas, temos de dar caça ao ladrão, senão estamos desgraçados. Lá se vai o apuro da semana.
A Tia Ana Rosa é que tomava nota das contas da companha, que recebia o dinheiro da venda, contas que eram partidas ao sábado. Parte do barco, parte do arrais, o Domingos e parte de cada pescador.
O Domingos sai de casa, munido dum sarrafo que encontrara na cozinha, nunca se sabe, até podia dar com o ladrão, ali por perto.

Em breve estavam à porta de casa vários homens, dispostos a dar caça ao gatuno que lhes surripiara o dinheiro. Ele já era tão pouco e havia de acontecer uma desgraça destas, logo esta semana, que as pescas até nem tinham sido más, dera muita pescada nas costas de Montedor.
Ao observarem os sapatos achados do lado de fora da janela, um dos homens exclama:
- Eu vi um tipo com estes sapatos. Não te lembras, João? O que esteve a jogar às cartas connosco, lá na loja.
- Pois foi, ele tinha uns sapatos assim, tinha.
Tinham estado com mais alguns pescadores da vizinhança a jogar às cartas, na loja da Chocalha, até tarde e esse fulano tinha acamaradado com eles, mas não o conheciam. Pensaram ser alguém de uma freguesia próxima, que estava ali a passar um bocado, a beber umas malgas de vinho, bom vinho que a Chocalha mandava vir de Outeiro.
Distribuíram-se em grupos e saíram ansiosos, na busca daquele desconhecido. A madrugada ia alta, ainda faltavam, pelo menos, duas horas para amanhecer.
Um dos grupos, foi directamente à loja da Chocalha, ali perto, onde mais tarde haviam de construir o quartel dos bombeiros, que naturalmente estava fechada e às escuras.
Continuaram para sul pela rua e ao chegar à alvariça, onde depois o Pinheiro construiu a oficina, hoje é a Caixa Geral de Depósitos, encontraram junto a umas silvas a gaveta desaparecida. Só faltava o dinheiro, os outros papeis tinham ficado.

De regresso a casa, decidiram que dois grupos iriam apanhar os primeiros comboios pelas sete da manhã, que se cruzavam na estação de Gontinhães e iriam até Caminha e até Afife ou Montedor.
Os que foram de comboio até Caminha, apuraram que já por lá tinha passado um indivíduo desconhecido e que andava descalço. Como o olharam com desconfiança, ele tinha desaparecido.
Decidiram entrar no próximo comboio e seguir para norte. Desanimados por ninguém o ter visto nas estações seguintes, decidiram sair em S. Pedro da Torre e esperar pelo comboio em sentido contrário, para os trazer de volta a casa.
Que grande surpresa tiveram ao entrar na carruagem, ao ver entre os passageiros o tal fulano, que tinha estado no dia anterior, na tasca da Chocalha. Sem denunciarem as suspeitas que tinham, entabularam facilmente conversa com o homem que já exibia uns sapatos e um casaco novo.
Ao chegarem à estação de Gontinhães, deitaram-lhe a mão e arrastaram-no para a gare, onde o imobilizaram, enquanto pediam para irem chamar a Guarda.
O homem confessou o roubo e a audácia de ir a uma casa desconhecida, às escuras, procurar uma chave, abrir a gaveta e sair furtivamente. O que estragou o golpe, foi ter as mãos ocupadas com a gaveta e a janela ter caído, sem contar. Por isso teve de correr e deixar no local os sapatos.

Esta história foi contada, muitos anos depois, pela Tia Ana Rosa, já velhota, quando se reuniam à noite os filhos, os netos e outros familiares ou vizinhos, para tecerem o linho ou para qualquer outro trabalho.
Sabem para que servia o fio de linho que elas teciam? Era para as redes do sável. Essas redes eram feitas em linho, não um linho qualquer, mas linho do Brasil, que vinha já seco em estrigas ou seja, em molhos de fibras com dois palmos de comprimento, que tinham de ser passados pelo sedeiro.
O sedeiro era um cepo de madeira com uma espécie de pregos virados para cima, onde se batiam as estrigas, para separar as fibras do linho que eram ligadas e fiadas, para de seguida irem para a dobadeira.
Depois de dobada, saía para as agulhas e só então se fabricavam as redes. Naquela época não havia material já fabricado, tudo era feito em casa.
As redes de que vos falo eram redes volantes de tresmalho com albitanas. Em linguagem corrente, quero dizer que eram redes que pescavam à superfície, tal como as lampreeiras e que se deslocavam ao sabor da corrente.
O que fazia flutuar a rede era a cortiçada feita em cortiça segundeira, nunca da virgem e o peso que a mantinha aberta e vertical, era feito com os pandulhos, uns pequenos e esguios sacos de pano cru, cheios de areia grossa, que se apanhava no Espilrro.
Também se apanhavam sáveis com redes de algerife, redes de cerco que eram puxadas para terra nos diversos portos do rio Minho. Os primeiros portos do Minho eram o das Oliveiras, o do Baixinho e da Candosa, já a meio caminho de Seixas. Estas redes eram fabricadas em fio do norte que era mais robusto que o linho.
Pois é, falam do sável, do arroz de debulho, mas não sabiam o trabalho que dava para o apanharem. Se calhar nem sabiam que haviam redes feitas de linho.
Isto foi-me contado pelo Domingos Verde, não o do conto, mas o seu neto, o Pinga, que ainda hoje recorda os serões de Inverno, que passava na casa dos seus pais, que recorda as histórias passadas no mar, os naufrágios, as misérias, as mortes, mas também a alegria das pescarias, da fartura, da sardinha, as histórias da vida.
 
Agarra que é ladrão!

Operação Zurique

 
Esmagou a beata no cinzeiro metálico, levantou-se, sacudiu uns fragmentos de cinza na perneira das calças, passou a mão pelos cabelos e saiu da sala de fumo. Desde que tinham abolido o tabaco dos escritórios, os funcionários iam fumar à salinha onde estavam as máquinas do café e dos refrigerantes. Durante o dia a salinha raramente estava vazia e às vezes chegavam a juntar-se dois ou três que, de cigarro na mão, davam de comer ao vício e uso às máquinas.
O Paulo ainda não conseguira livrar-se dos cigarros apesar de já ter feito duas ou três tentativas que fracassavam devido à tensão do trabalho. Talvez para as próximas férias.

Quando se aproximou da sua secretária reparou que o led vermelho do telefone estava a piscar, sinal que tinha uma chamada para atender. O seu trabalho consistia em fazer análises de risco para concessão de crédito de elevados montantes, análises complexas que envolviam frequentemente figuras publicas, avaliações patrimoniais, carteiras de acções e outros valores, depósitos em offshore e mais um sem número de parâmetros que tinham de ser passados a pente fino.
Trabalhava apoiado numa equipa de investigadores e juristas experientes, que procuravam confirmar todas as declarações do cliente e ver se encontravam algum ponto fraco na proposta de financiamento apresentada ao banco.
Era raro o Paulo tratar pessoalmente de qualquer dúvida directamente com o cliente e ainda mais raro efectuar ele próprio qualquer diligência. Por norma, limitava-se a requisitar o serviço e esperar tranquilamente pela resposta.
Tinha ascendido ao departamento de crédito a grandes clientes há três anos e ganhara fama de ter faro de perdigueiro para propostas duvidosas. Esta promoção foi à sua custa e não teve ajuda de nenhum padrinho, nem de nenhuma cunha como é habitual. É verdade que para ser admitido no banco, logo que saiu da tropa, foi preciso o empurrão de um tio que já era lá funcionário.
Entrou para o departamento de câmbios, trabalhou afincadamente, teve a sorte de ter um director que o ajudou e foi subindo ao longo de dez anos até chegar à posição actual. Manteve-se solteiro apesar de manter uma relação estável há mais de dois anos com a Isabel, uma professora de História que dava aulas no Monte da Caparica.
Cada um vivia no seu apartamento, visitavam-se com frequência e saíam juntos alguns fins-de-semana. Ambos gostavam de conhecer terras novas e percorriam sistematicamente o país de uma ponta a outra. Há pouco tempo tinham começado a incluir a Espanha no roteiro das “escapadelas”. A Isabel estava fascinada com a herança árabe e com os abundantes vestígios que ainda se podem encontrar por todo o sul da península.

Ao telefone estava a secretária do Dr. Bacelar Coutinho, o Presidente do Conselho de Administração do Grupo Lusitano, que integrava empresas que iam da hotelaria, à construção de iates, passando por cadeias de supermercados, moldes de plástico e mais alguns sectores escolhidos, não por gosto ou vocação, mas por oportunidade.
Tudo o que desse dinheiro era interessante para o Grupo Lusitano e para o Dr. Bacelar, que já estava a ficar impaciente com a demora na aprovação do crédito, para a construção de uma unidade onde se fabricariam os geradores que iriam equipar as novas torres eólicas, que se multiplicam pelas cumeadas dos montes.
Bastou fazer o estudo de viabilidade, ir buscar as pessoas certas à concorrência e propor o negócio a um banco. Primeiro ainda pensou em associar uma empresa de capital de risco ao negócio, mas isso iria dar mal aspecto.
Em Portugal quando se associa uma empresa de capital de risco, pensa-se logo que mais ninguém quer financiar o projecto.
Escolheu um banco com pouco peso nos negócios do grupo, mas que manifestava claramente vontade de crescer e tinha forte apetência pelo investimento na área tecnológica.
O Paulo voltou a afiançar à solícita secretária que não tinha ainda os elementos necessários para elaborar o relatório final, mas que as informações pedidas deviam estar a chegar a qualquer momento.
Na sede do Grupo Lusitano, no oitavo piso, onde estava a administração, o Dr. Bacelar teve conhecimento que o analista do banco estava renitente e isso deixou-o ainda mais nervoso, o que era extremamente raro.
Tinha de falar com a única pessoa em quem confiava, o seu confessor e mentor espiritual. Se tivesse oportunidade falaria com ele no dia seguinte, depois da missa matinal, logo às sete da manhã. De todas as formas, iriam encontrar-se no sábado para a reflexão semanal numa das casas da Obra e teria então oportunidade de lhe colocar o problema.
Alheio a tudo, o Paulo relia preguiçosamente um balanço da Cortilusa, uma empresa do Grupo na área da cortiça. Havia ali qualquer coisa que não batia certo, apesar dos resultados da exploração serem positivos. Fora por causa disso que mandara investigar a empresa, mas até à data ainda não tinham descoberto nada de anormal.
Foi um anexo ao balanço que lhe chamara a atenção, devido a uns movimentos aparentemente banais e inocentes, mas que para ele lhe pareciam movimentos de forma a camuflar alguma operação.
Só um técnico especializado e com muita atenção, poderia dar com aquela discrepância e mesmo assim ainda lhe subsistiam dúvidas. Até podia não ser nada de grave, ele é que já estava predisposto para desconfiar de tudo e de todos, mas era preferível fazer o cliente esperar mais uns dias, por muito importante que fosse, do que ser surpreendido mais tarde com alguma fraude que lesasse o banco.

Na sexta-feira telefonou à Isabel a saber o que ela tinha decidido para o fim-de-semana, pois ele não tinha planos. Combinaram sair no sábado depois de almoço, irem até à Comporta apanhar um bocado de sol e no regresso jantavam para os lados de Sesimbra talvez no Restaurante do António do Meco. Se lhes apetecesse até podiam ficar num hotel, senão iriam até à casa dela.
O Paulo não queria a Isabel esta semana no seu apartamento para não se sentir constrangido, pois a arrumação deixava muito a desejar e ele não tivera tempo, nem disposição para tal.
O tempo estava frio mas soalheiro e a primavera tardava. Na Comporta demoraram mais tempo que o previsto e já era noite quando estacionaram a carrinha BMW em frente ao restaurante. Ambos comeram dourada grelhada, acompanhada por Muralhas, um vinho verde que a Isabel adorava.
Acabaram por ir até ao cinema no Colombo e regressaram a casa dela. No dia seguinte preguiçaram até tarde, almoçaram uns acepipes ligeiros e o Paulo despediu-se, pois ainda pretendia consultar o seu correio electrónico e rever alguns documentos.
Queria entregar aquele caso o mais depressa possível, só esperava o resultado da investigação que estava nas mãos do Dr. José Manuel Guerra, um economista mais ou menos da sua idade e especializado em operações de offshore.

Subiu ao sexto andar, meteu a chave na fechadura e acendeu a luz da sala. Cheirava a tabaco, “porcaria de cheiro, tenho de deixar de fumar, pelo menos dentro de casa” pensou, enquanto abria as janelas da sala e da cozinha para arejar.
Tirou uma cerveja do frigorífico, descalçou as sapatilhas e ligou o computador portátil que estava sobre a mesa. Poucos segundos depois o computador emitiu um bip e apareceu a mensagem “low battery” no canto do ecrã.
“Não pode ser, esteve sempre ligado à corrente no escritório e não o usei mais, será que pifou?” estes pensamentos passaram pela cabeça do Paulo que, mesmo assim tirou o carregador da mala e ligou-o à corrente.
Logo o computador arrancou e os programas correram normalmente. Ligou a Net, abriu a sua caixa de correio e encontrou-a vazia. Nenhum registo, nem dos e-mails enviados, nem recebidos, nada, parecia que tinha sido acabada de criar.
“Mas que raio se terá aqui passado?” Abriu uma pasta onde alojava os trabalhos do banco e deu logo por falta dos documentos respeitantes ao Grupo Lusitano. “Merda, mas que raio… andaram aqui a mexer, só pode ser isso”, a cabeça estava vazia e apenas ouvia o coração sobressaltado. Bebeu o resto da cerveja, sentou-se e disse em voz alta.
- Quem terá sido o sacana que mexeu nisto? Eu estive sempre perto dele no escritório.
Deixou-se ficar a reflectir nas consequências daquele contratempo e concluiu que até nem era assim tão grave. Podia pedir aos investigadores que lhe reenviassem os e-mails da última semana e o relatório conseguia fazê-lo durante todo o dia seguinte, pois ainda tinha na memória as principais conclusões.
De súbito levantou-se e abriu a porta da rua, examinou a fechadura e concluiu que não havia vestígios de ter sido forçada. Foi à estante onde guardava os CDs e teve outra surpresa, não estavam pela ordem habitual.
Apesar de ser bastante desarrumado, o Paulo tinha um conjunto de pequenas rotinas, manias por assim dizer, e uma delas era pôr sempre os CDs dos dossiers terminados, por ordem alfabética.
Não tinha ainda nenhum CD do Grupo Lusitano, mas alguém tinha lá estado à sua procura e misturara tudo. Percorreu a casa e não encontrou mais vestígios do assalto, não valia a pena chamar a polícia, iria ser uma carga de trabalhos para nada.
Ligou para o Dr. Guerra mas ele não atendeu e decidiu não lhe deixar mensagem, amanhã o apanharia no escritório e poderiam trocar impressões. Antes de se deitar voltou a examinar a fechadura da porta, uma fechadura de segurança com trancas que tinha sido misteriosamente aberta, porque ele não acreditava que quem tinha ido a sua casa tivesse escalado seis andares, isso era para os filmes do homem aranha.
Custou-lhe a adormecer, ao contrário do habitual, não lhe saia da cabeça o terem desaparecido o correio e as pastas referentes ao grupo Lusitano. Cada vez lhe cheirava pior aquele negócio e o que não passava de simples e ténue suspeita, tinha-se agigantado e era uma suspeita substancial.

Logo que chegou ao escritório foi até à salinha, tirou um café e fumou um cigarro que não lhe soube tão bem como de costume. Tentou ligar para o Dr. Guerra mas como ele continuava incontactável, ligou-lhe para o escritório que ficava numa das torres das Amoreiras. A recepcionista informou-o que também ela o procurava sem sucesso e comprometeu-se a avisá-lo logo que o tivesse em linha.
O Paulo decidiu que tinha de falar com o seu director, pô-lo ao corrente da situação e decidirem o que fazer. Por sua livre vontade esperaria pelos resultados da investigação e se o Dr. Guerra não se podia encarregar de tal dossier, outro colega o substituiria. Mas deixou para o seu director a decisão final, ele sabia que tinha de ser assim, até para sua salvaguarda futura.
O led do telefone piscou, esticou o braço e entalou o auscultador entre a orelha e o ombro enquanto acabava de escrever a frase que estava a meio.
Era o director a dizer-lhe para passar de imediato no seu gabinete que ficava no mesmo andar, mas virado para a avenida. Atravessou o corredor, cumprimentou dois colegas que discutiam os resultados de futebol enquanto aguardavam o elevador e bateu de leve na porta do gabinete do Dr. José Alpoim, que teria uns cinquenta e cinco anos, forte compleição que já albergava alguns supérfluos “pneus” e que era doido por caça e touradas.

- Entre Paulo, sente-se. Então que tal o fim-de-semana, foi à bola?
- Não, fui dar uma volta aqui por perto.
- Bem, você é solteiro, não é?
- Sim, mas…
- Muito bem! Tenho aqui uma proposta para lhe fazer, que até a mim me admira. Foi-me endossada pela administração e requer uma resposta imediata. Percebeu? Imediata…
- O Dr. Está a deixar-me atrapalhado, pois não sei de que me está a falar.
- Pois não, nem você adivinha. Bem, a proposta é a seguinte, o Paulo está disposto a aceitar um lugar de director de crédito na nossa delegação da Suiça? Claro que tem de ir viver para Zurique, mas as condições financeiras são excelentes e o trabalho é muito mais ligeiro.
- Assim de repente… Não sei que dizer Dr. Alpoim.
- Bem, eu compreendo, mas a administração quer resolver isto até ao meio-dia, sem falta.
- Mas eu tenho aquele caso do Grupo Lusitano, aliás eu queria falar-lhe disso, pois…
- Deixe lá o caso do Grupo Lusitano, vou passá-lo ao Ramiro, não se apoquente mais com isso. De todas as formas, mesmo que não aceite o lugar na Suiça, tenho indicações que irá ser transferido deste departamento.
- Está a comunicar-me que serei punido com uma transferência?
- Não, nada disso, digo-lhe que será transferido com promoção de carreira, mas nunca será um lugar tão bom como o da Suiça. Talvez para a Madeira, sabe que temos lá a zona franca e você é um homem que percebe daquilo.
- E quando é que tenho de ocupar o lugar na Suiça?
- Amanhã, o mais tardar na quarta. Está tudo pronto para o receber e já tenho aqui uma reserva em seu nome.
- Então está tudo preparado?
- É verdade, como lhe disse até fiquei admirado, mas compreende, eu não passo de um simples director de departamento, percebeu caro colega. Agora será meu colega e quem sabe quando acabar a comissão até pode vir a substituir-me.
- Muito bem Dr. Alpoim, - decide-se o Paulo - preciso de tratar de alguns problemas pessoais, podemos apontar a partida para quarta.
- Claro, claro. A partir deste momento está dispensado do serviço e só tem de se apresentar em Zurique.

Quando saiu do gabinete do seu ex-director um turbilhão de pensamentos toldava-lhe o cérebro. “Esta história cheira mal, muito mal” e regressou ao escritório, juntou os seus objectos pessoais meteu-os na pasta e saiu sem anunciar aos colegas a transferência e sem se despedir, uma exigência do Dr. Alpoim.
Quando chegou a casa, ligou de imediato para a Isabel e como ela não atendeu, certamente estava em aulas, deixou mensagem para lhe ligar com urgência.
A meio da tarde quando ela lhe telefonou e ele lhe anunciou a imposição da transferência, a reacção dela foi comedida, “agora não nos podemos ver todos os fins-de-semana, mas não podes perder esta oportunidade”, o que admirou o Paulo que esperava alguma expressão de desagrado.

Na quarta-feira apresentou-se cedo no aeroporto, fez o check-in, despachou as bagagens entrou na sala de embarque, comprou dois jornais, alguns maços de cigarros e sentou-se à espera.
Abriu o Diário de Noticias e foi percorrendo os artigos até esbarrar na fotografia de um carro irreconhecível, todo destruído, que estava suspenso de uma grua.
Dizia o artigo que o automóvel tinha sido retirado do fundo de uma falésia perto do Farol do Penedo da Saudade, em S. Pedro de Moel.
O cadáver que tinha sido retirado do interior era presumivelmente o proprietário do veículo e chamava-se José Manuel Guerra, economista, de 33 anos, residente em Lisboa.
 
Operação Zurique

O soldado que não esqueceu (2ª parte)

 
Uma manhã, estava o Ernesto a afinar uma quinadeira, quando a moça do escritório lhe veio comunicar que estavam à espera uns senhores da polícia para lhe falarem.
Desconfiando que seria mais uma estroinice de algum dos seus filhos, foi lavar as mãos, passar um pente pelos cabelos ásperos e tirar o fato de macaco.
Ao apresentarem os cartões da Judiciária viu logo que o assunto era grave. Começaram por lhe fazer perguntas do trabalho e da empresa, mas logo o começaram a interrogar sobre o seu patrão, Armando Martins Rebelo. O que fazia, com quem andava, quem o visitava, quem lhe telefonava e coisas do género. Enquanto as questões eram sobre o trabalho ainda conseguiu responder sem hesitações.
Quando as perguntas eram sobre o Sr. Armando, como ele o tratava, é que a entrevista ficou difícil e os silêncios eram cada vez maiores, acabando o Ernesto por reconhecer que pouco ou nada sabia sobre a vida privada do patrão. Interrogando os polícias sobre os motivos daquele inquérito, ouviu um seco “não podemos esclarecer, está em segredo de justiça”.
Nessa noite pouco jantou e custou-lhe a adormecer, ainda por cima o Sr. Armando não atendia o telefone, o que o deixava em cuidados.
No dia seguinte recebeu a visita de outro polícia, que lhe comunicou que o patrão estava preso em Salamanca e iria ser transferido para Madrid. Tinha sido apanhado numa operação contra o tráfico de droga, com perto de vinte quilos de cocaína disfarçados no fundo da bagageira do seu BMW 525.
A Polícia Judiciária há vários meses que andava a investigar esta rede e a detenção não foi casual, pois no mesmo dia foram apanhados mais três correios que levavam cocaína para Madrid e provavelmente para Barcelona.
Dos bancos começaram a chover telefonemas solicitando depósitos inadiáveis de forma a cobrir cheques e letras metidos a desconto pelos fornecedores.
O Ernesto estava totalmente atordoado com o rumo dos acontecimentos. O patrão preso em Espanha por tráfico de droga, a firma sem um tostão no banco e com ameaças de penhoras, a chapa estava a acabar e não havia crédito para mais, enquanto não pagassem a remessa anterior.
O final do mês passou e não deu para pagar os ordenados a ninguém. O Ernesto cada vez comunicava menos, até em casa e só quando lhe dirigiam a palavra é que respondia com uma economia notória de palavras. Não tardou a entrar em depressão, mas recusava-se a ir ao médico, apesar das súplicas da Luísa e dos filhos.
Uma noite acordou aos berros, saltou da cama com ar esgazeado e fugiu em pijama para a rua, acabando a mulher por ir encontrá-lo encolhido junto ao abrigo da paragem dos autocarros a tremer convulsivamente.
Acabou por ser internado no Magalhães de Lemos e o médico que o examinou e medicou disse à mulher que era um caso grave de stress pós-traumático despoletado tardiamente pela situação da empresa.
Esteve internado dois meses, teve alta, regressou a casa e passou a sentar-se no seu cadeirão preferido o dia inteiro, de onde saia apenas para as refeições ou na hora de ir para a cama.
Foram infrutíferos os tratamentos, o estado de ansiedade era permanente, estava silencioso durante horas para, de repente começar a berrar, tapando os ouvidos com as mãos.
A calandra fechou, foi leiloada por ordem judicial e comprada por uns espanhóis que depois de obras de adaptação montaram um entreposto frigorífico para mariscos.
O Ernesto como era sócio da empresa não teve direito a subsídio de desemprego, nem passou a figurar nas estatísticas que os políticos esgrimem diariamente.
Um dia quando a Luísa chegou a casa viu que ele não estava. Esperou até à noite, ligou para os hospitais e acabou por ir à polícia participar o seu desaparecimento.
Foi encontrado uma semana depois em Espinho e voltou a ser internado. Os períodos em casa alternavam com as fugas e com os internamentos.
O desespero da mulher era cada vez maior pois não conseguia encontrar saída para a situação. Nunca mais o Ernesto foi o mesmo, nunca mais mostrou interesse em procurar novo trabalho, nem sequer mostrava interesse na família.
Perderam as contas aos desaparecimentos até que decidiram não o voltar a procurar, na expectativa de o verem regressar voluntariamente a casa.

Tornou a virar-se, tossiu e acabou por levantar-se. Enfiou os pés nas botas, espreguiçou-se e abriu a porta. Lá fora o frio era intenso e um arrepio percorreu-lhe a espinha.
Ainda era noite, talvez ainda não fossem seis horas. Urinou encostado à figueira, regressou à barraca e comeu às escuras duas tangerinas que tinha guardado da véspera. Pegou na mochila, fechou a porta o melhor que pôde e meteu-se à estrada, em direcção a Valongo.
Os automóveis não eram muitos àquela hora e na maior parte do trajecto seguia na escuridão, pela valeta estreita até à padaria onde lhe davam sempre alguma coisa para comer em troca de despejar os caixotes do lixo da fábrica e outros biscates do género.
Na curva que antecedia a entrada para a zona industrial um automóvel aproxima-se em alta velocidade, procura fazer a curva o mais possível por dentro e embate com grande violência em algo grande e escuro na valeta, que parte o pára-brisas, seguindo-se o despiste. O automóvel acabou por se esmagar contra um grosso plátano vinte metros mais à frente. Da amálgama de ferros nem um grito, nem um suspiro, pela estrada ficaram espalhados uma grande quantidade de vidros partidos, chapas metálicas e bocados de plástico da viatura.
Automóveis pararam para prestar auxílio, alguém ligou para o 112 que acabou por recolher apenas os cadáveres dos dois ocupantes do automóvel e do peão atropelado, que jazia caído de bruços na valeta.
O agente da Divisão de Transito da PSP que preenchia o auto de notícia ficou espantado quando se apercebeu que os documentos do automóvel estavam em nome de Ernesto da Silva Martins, o condutor chamava-se Luís Rafael Linhares Martins, o seu acompanhante André Linhares Martins e ao homem atropelado, com aspecto de sem abrigo, tinham tirado da mochila surrada, um bilhete de identidade em nome de Ernesto da Silva Martins.

Fim
 
O soldado que não esqueceu  (2ª parte)