Poemas, frases e mensagens de RicardoC

Seleção dos poemas, frases e mensagens mais populares de RicardoC

Escrevo. Gosto de escrever. Se sou escritor ou poeta, eu deixo para o leitor ponderar.

O MONGE E A SERPENTE

 
O MONGE E A SERPENTEprólogo
Contam que quando andava pela Terra
O iluminado espírito de Buda
Vivia em penitência surda e muda
Um monge seu ferido pela guerra.

Acolhido por Buda, mais se aferra
À sã meditação, com que se escuda
A alma necessitada mais de ajuda,
Visto que grande angústia em si encerra.

Aquele monge à paz se disciplina,
De sorte que mais nada o encoleriza,
Mesmo se tudo em volta desatina.

Assim, quer na tormenta; quer na brisa,
Segue impassível sua dura sina,
Que a entonação de mantras ameniza.

* * *o carma
Na guerra, conduzira ele elefantes
Contra inimigos vindos de bem longe.
Nada, porém, de que ele se lisonje,
Atormentando-o em todos os instantes.

Ferido após barbáries excruciantes,
Decide, mudo e só, fazer-se monge...
A fim-de que da guerra mais se alonje
Seu coração da sua vida d'antes.

À espera da impossível redenção,
Procura compensar sua violência
Com uma radical resolução:

— "Enquanto eu respirar n'essa existência,
Nada mais morrerá por minha mão
A ter de novo limpa a consciência."

* * *o encontro
'Pós anos de silêncio e solidão,
Aquela alma culpada e penitente
Eis que encontra uma filha de serpente
Totalmente indefesa pelo chão.

De tão fraca, ele a pega com a mão
Quedando quase inerte simplesmente.
Co'os olhos em seus olhos, frente a frente,
Sem que esboçasse mínima reacção.

O monge a colocou em sua cesta
E a carregou consigo para fora
Da sempre tão quente e úmida floresta.

Já no mosteiro, a todos apavora
Como se enfim tivesse má a testa,
Tal risco que corriam àquela hora.

* * *o concílio
Buda, que às boas almas conhecia,
Pede a palavra ao povo alvoraçado:
— "Amigos, escutai cá do meu lado!
É necessário mais sabedoria..."

"Deixai-o co'a serpente noite e dia
Até que por fim todo o seu cuidado
Mostre-nos a que fora destinado
Isto o que só loucura parecia."

— "Ouço e obedeço." — disse-lhe um por um.
Assim o monge pôde co'a serpente
Viver este viver tão incomum.

De resto, vivia ele tão-somente
Como se fosse sem perigo algum
Aquela realidade surpreendente.

* * *a ophiophagus

Pelas selvas dos Gates Orientais
Já na estação das chuvas das monções,
Cobras que comem cobras são vilões
D'estas tórridas terras tropicais.

Deveras, as imensas cobras reais
S'elevam tão ferozes quanto leões
E inoculam peçonha aos borbotões
Sobre maiores e mais fortes rivais.

Espécie tão feroz, antes que nasça,
Logo era pela mãe abandonada
A não fazer dos filhos sua caça.

Serpente... Mesmo assim fora adoptada
Pelo silente monge cuja graça
Acreditara ser por ela dada...

* * *a iluminação
Dia após dia, o monge em seu cuidado
Alimentava a cobra presa ao cesto,
Trazendo camundongos que, de resto,
Ninguém mais parecia achar errado.

Tinha fé que co'o tempo do seu lado
Perderia ela instinto tão molesto
A ponto de entender do monge o gesto
E ter o seu furor pacificado.

Julgava que seria agradecida
Ao ser tratada com suma bondade
Ao longo, pois, de toda a sua vida.

Mas se ele se acercava da Verdade,
Era por via então desconhecida;
Rodeado de total perplexidade...

* * *
o nirvana

Grande demais p'ro cesto onde vivia,
A serpente s'eleva toda ereta.
Bem diante d'ela o monge jaz, asceta,
A lhe encarar nos olhos todavia.

Ameaçadoramente bela e esguia,
Eis que prepara o bote por repleta
D'uma violência própria já inquieta,
A contrastar co'a paz que oferecia:

N'um átimo, ela voa em seu pescoço...
E crava as suas presas já tristonha
Por aquele que mata 'inda tão moço.

Após, ela inocula-lhe a peçonha,
Que súbito da morte lhe abre o fosso,
Adormecendo feito alguém que sonha.

* * *o darma
Procuraram o Buda entristecidos
Seus discípulos mais a má serpente.
E pretendiam matá-la simplesmente
Depois dos factos já acontecidos.

Que, embora fossem bem esclarecidos
Sobre o valor de todo ser senciente,
Bradavam por justiça, mas somente
Buscavam a vingança dos perdidos.

E Buda disse: — "Leva para a mata
A cobra ainda viva, com certeza!"
Mas os monges: — "Jamais! É uma ingrata!!!"

Pagou tanta bondade com torpeza..."
E Buda: "Só segue ela a Lei inata:
Agiu conforme sua natureza.

* * *epílogo
"Estamos todos — Buda diz — sujeitos
À lei do Darma, isto é, Lei Natural.
Tanto um humano quanto um animal
Vive segundo seus sábios preceitos."

"E ainda que dotados de direitos,
Seres sencientes todos!... Afinal,
A luz está em ver o próprio mal
Para então renunciar a seus malfeitos."

"Pois, mais que da serpente essa maldade
— Na qual vedes traiçoeira ingratidão —
Havia sim desejo à liberdade!"

"Aos olhos da serpente, era prisão
E os cuidados no monge — a tal bondade —
A mais só e absoluta reclusão."

Betim - 20 02 2002
 
O MONGE E A SERPENTE

PASSAMENTO

 
PASSAMENTO

Há vida após a morte de quem se ama?
No dia em que morreres, meu amor,
Só peço que me mate a imensa dor
De já não me aquecer a tua chama.

À vida, com efeito, resta o drama
De existir sem sentido e sem valor.
Quem fica, fica d'esta para pior!
Falta que de saudade o povo chama…

Mas se eu ao teu final sobreviver,
Venha-me logo a morte por não ver
Um mundo sem a luz de teu sorriso.

No amor, feliz de quem morre primeiro!
Quem fica, fica a errar sem paradeiro
Desertos sem inferno ou paraíso.

Belo Horizonte - 26 05 2023
 
PASSAMENTO

AO CAIR DA NOITE

 
AO CAIR DA NOITE

Sobre as águas do rio, os ingazeiros
Avançam suas copas entre as margens
No afã de espalharem n'outras vargens
Sombrias os seus galhos sobranceiros.

Nada obstante, os lumes derradeiros
Vão apagando o verde das almargens
Ao obscurecer na noite as contramargens,
Que então se ocultam d'olhos passageiros.

Húmida, a mata à borda do caminho
Bafeja o seu frescor bem de mansinho
Em minhas faces tépidas e exaustas.

Paro e reparo o dia indo-se embora,
Ao pé da serra imensa que descora,
A ouvir dos juritis canções infaustas.

Juatuba - 13 06 2023
 
AO CAIR DA NOITE

CELESTE

 
CELESTE

Moça d'olhos azuis; sorriso aberto…
Como se na terra um pouco do céu
Me permitisse Deus — embora incréu —
Haver um anjo Seu no mundo incerto.

Talvez o céu quisesse estar mais perto
E aqui viesse ficar sem escarcéu
Na pupilas de quem sorrindo ao léu
Me iluminava o dia enfim desperto.

Ou senão porque o azul nos olhos d'ela
Um pouco do divino se revela,
Como se Deus brilhasse em seu sorriso.

Decerto, tanto azul nos olhos seus
Parecem vir do céu ou vir de Deus,
Como se fosse um pouco o paraíso.

Belo Horizonte - 01 07 2023
 
CELESTE

CALOROSA

 
CALOROSA

Abraça-me! Abre os braços aos abraços
Há tanto que esperando te envolver.
Deixa-me, ao te tocar, enternecer
Porquanto me reténs os olhos baços.

Para o bem ou não, toma-me em teus braços,
Sob pena de jamais acontecer...
E, entregues à alegria, ousemos ser
Apenas dois ladeando breves passos.

Sigamos o caminho à nossa frente
Antes que se me torne indiferente,
Que houvesse sol ou chuva por onde ando.

E esqueça n'um instante o mal passado,
Quando em teus braços eu, aconchegado,
Cuide senão de ti cá me abraçando.

Betim - 26 01 2015
 
CALOROSA

AZÁFAMA

 
AZÁFAMA

Nada senão cansaços fora o dia,
Perdido em excessivos afazeres.
Não soube hoje d'amores nem prazeres;
Sequer alguma mínima alegria...

Passo apressado na rua vazia
Tão alheio à beleza das mulheres,
Quanto de seus mistérios e misteres,
Como não desejasse companhia.

Chegado em casa, nada já percebo.
Abro a garrafa e não sei o que bebo,
N'um gesto maquinal, indiferente.

Restara-me tão-só a noite e as estrelas
Mais um silêncio insólito a envolvê-las
Para o ócio me fazer de novo gente.

Betim - 28 01 2015
 
AZÁFAMA

CÉU DE CHUMBO

 
CÉU DE CHUMBO

Tem dia que parece noite… Quando
O sol some por trás da tempestade!
Muda a face da terra a obscuridade
D'um forro de nuvens avançando…

O vento, antes revolto e depois brando,
Uiva um lamento vão de insanidade
A encher de desalento e soledade
Os cafundós baldios por onde ando…

Quase a me desabar sobre a cabeça,
Rogo ao céu que deveras anoiteça
E tudo não passar d'uma hora incómoda.

Baldo é, pois, a plumbífera atmosfera
Ganha ares de tragédia e de quimera
À medida que cobre toda a abóboda...

Betim - 16 06 2023
 
CÉU DE CHUMBO

À MEIA LUZ

 
À MEIA LUZ

Cheirava a almiscarado e cigarrilha.
Interessante, mas... Assim-assim...
Não sei que se dirá ela de mim,
Mas sua lábia má me maravilha.

Vê-la tagarelar bem peralvilha,
Convenceu-me não ser de todo ruim
Deixar-me elanguescer, ainda e enfim,
Se, a despeito de nós, a lua brilha.

Fosse como fosse, era noite clara.
Pude notar-lhe ao rosto uma luz rara,
Enquanto o seu perfume me instigava.

Então, tudo era mais belo do que era...
Nem soube diferir n'esta quimera
Quem, de facto, a mulher que ali estava.

Betim - 29 01 2015
 
À MEIA LUZ

ESPELHO D'ÁGUA

 
ESPELHO D'ÁGUA

“É belo!...” — Penso ao ver como s’espelha
O narciso que n’água se debruça
Ao vento, em divertida escaramuça,
Qual figurasse alguma lenda velha.

Alvo leque à corola bem vermelha,
Cujo contraste forte mais aguça
O olhar contemplativo que esmiúça
Quanto o reflexo à flor se lhe assemelha.

Indiferente a quanto não possuo,
Percebo-me riquíssimo, pois vejo
A imagem da beleza e do desejo.

Seja a revelação de que usufruo
Por um momento tudo o que preciso,
No garrido admirar-se do narciso...

Betim - 19 02 2015
 
ESPELHO D'ÁGUA

DE MANHÃ

 
DE MANHÃ

Por que o dia está tão bonito?
Por que tenho assim me alegrado?
Talvez porque estivesse escrito
Que estarias tu do meu lado.

Talvez porque houvesse sonhado
Ou porque me soubesse aflito...
Por que tenho assim me alegrado?
Por que o dia está tão bonito?

Talvez porque alcanço o infinito
Quando amo quem eu tenho amado
Ou em ti simplesmente acredito...
Por que tenho assim me alegrado?
Por que o dia está tão bonito?

Betim - 01 02 2016
 
DE MANHÃ

POEIRA CÓSMICA

 
POEIRA CÓSMICA

Após voltar ao pó, volta p'ro mundo
Todo aquele que um dia n'ele andou.
Volta para tornar-se algo fecundo
Ao longo do caminho em que passou.

As cinzas espalhadas n'um segundo
Contavam d'outra história que acabou,
Mas os mortos se calam do profundo
Desidério que Deus lhes segredou.

O vento que levanta longe o pó
Silva a sua monótona elegia
E deixa a solidão 'inda mais só…

Existência que no ar se dissolvia
Onde a luz zodiacal mostra tão-só
Uma nuvem de poeira ao fim do dia.

Belo Horizonte - 19 05 2023
 
POEIRA CÓSMICA

FLEUGMA

 
FLEUGMA

Em resposta aos reveses d’estes dias,
Reservo-me um silêncio indevassável.
Se passo por fleugmático ou notável,
São antes distrações que fidalguias.

Mesmo poetas têm lá suas manias…
Não me afecto, a pretexto de sociável,
Tampouco ouço algo além do tolerável
Sem revirar nos olhos arrelias.

Nada obstante, mantenho quase alheia
A face ao vai-e-vem das emoções;
Todo um desdém vazio de expressões:

É que agora no olhar se me clareia,
Senão alguma argúcia edificante,
O verso que me absorve n’este instante.

Betim - 10 05 2023
 
FLEUGMA

A TÍTULO DE POETA

 
A TÍTULO DE POETA

Isso que o poeta fala não s'escreve,
Senão em rimas duras de se ler…
Fala do que ninguém ousa dizer
E põe letras onde outro não se atreve.

Tendo a língua pesada e a pena leve,
Expressa o que melhor lhe parecer,
Depois chama de poema o que entender
Capaz de extravasar quanto conteve.

Isso que o poeta fala não se diz,
Senão no escuro e só para si mesmo,
Embora a parecer palavras a esmo…

A título de poeta, esse infeliz
Fale e escreva de tudo, sem porém,
Depois chame de poema o que convém!

Betim - 05 06 2023
 
A TÍTULO DE POETA

EGIPTOLOGIA

 
EGIPTOLOGIA

Como uma lagartixa no cimento,
Deixou quentar ao sol as suas partes:
Uma estátua improvável para as artes,
Ensimesmada em seu padecimento.

O achado pousa sobre o pavimento,
Ao largo de monturos de descartes.
E há celeuma de hipóteses e apartes
Diante da antiguidade do momento…

Esqueçam sob a terra por milênios
Depois tragam às lentes d’alguns gênios
E logo vai parar n'algum museu.

Mas muito mais do que o ouro da nobreza
A luz do artista egípcio traz acesa
Na pose inusitada que escolheu.

Betim - 07 07 2023
 
EGIPTOLOGIA

ANTIRROMÂNTICO

 
ANTIRROMÂNTICO

A vida é muito mais do que um romance
Escrito para o amor nos dar alento.
Importa antes sentir que o sentimento
E manter a alegria sempre ao alcance.

Desejo que a paixão em paz descanse
P’ra que eu possa gozar sem sofrimento.
Deixai de idealizar o encantamento
Vós que olhais o mundo de relance!

Sob pena de soar pouco literário,
Prefiro ver as coisas como são
A viver n’algum limbo imaginário.

Aviso aos dependentes de emoção:
Deixai de ler meus versos ao contrário
Vós que buscais do amor sua ilusão!

Betim - 04 07 2023
 
ANTIRROMÂNTICO

MEXERICAL

 
MEXERICAL

Paraopeba acima, diz que tem
Um lugar onde colhem mexericas.
Extensas plantações por terras ricas
Com galhas carregadas a quem vem.

É tanta fruta boa que ninguém
Se importa das rapinas impudicas,
Que os raros visitantes d’estas bicas
Em face do pomar mal se contêm!

Por estradas de chão empoeiradas,
Atravessam, afoitos, mil jornadas
Na fé de que os espera tal fartura.

Chegando lá, o esforço faz mais lindo
O pomar ao viajante ao ver, bem-vindo,
Prêmio quase tão bom quanto a aventura.

Brumadinho - 22 04 2023
 
MEXERICAL

À LUZ DE LAMPARINA

 
À LUZ DE LAMPARINA

Luz, de fio a pavio, à escrivaninha,
Enquanto a pena corre no papel,
Aquela débil chama, cujo cordel
Queimando lentamente cada linha.

Na noite mais escura e mais sozinha,
Tinha a mente febril; peito em tropel…
Escreve — sem patrão e sem troféu —
Rimas tantas quantas lhe convinha.

Arde no seu olhar a mesma luz,
Que pela escuridão a mão conduz,
N’essa ânsia de traçar letra após letra.

De sorte que ilumina o mundo inteiro
Tal luminar à guisa de candeeiro,
Quando a escrita com arte mais penetra.

Betim - 18 06 2023
 
À LUZ DE LAMPARINA

FOCINHO DE PORCO NÃO É TOMADA

 
FOCINHO DE PORCO NÃO É TOMADA

Sim, às vezes é preciso dizer o óbvio. É preciso escrever com todas as letras: FASCISTA. Digam o que disserem, não somos obrigados a deixar que o ódio puro e simples nos governe, embora entenda que muitos estejam dispostos a abrir mão de suas liberdades ou fazer vista grossa para o ataque a minorias. Também entendo que alguns considerem esse extremismo que tantos elegem seja um mal necessário para que tenhamos uma ordem social que permita às pessoas trabalhar em paz. Ainda assim, é preciso reconhecer que a justiça exercida com as próprias mãos não é justiça, sim vingança. Por mais decepcionante que a Polícia e o Judiciário possam parecer, agir sem mandado do povo, ou seja, regulado por regras e processos, é o primeiro passo para a generalização da violência e da barbárie.

No final das contas, o desejo de justiça tão louvável das pessoas será usado como opressão contra elas mesmas.

Estes que pretendem nos governar alçados ao poder por uma maioria revoltada mas superficial, não terão limites mesmo quando os factos, a verdade e o bom senso os desmentirem. Reescrevam os livros de História e queimem os de Filosofia! -- exortam eles -- reduzam os códigos Civil e Penal ao obscurantismo biblista!... -- e, sobretudo -- a arma nas mãos de homens de bem a julgar o certo e o errado e, afinal, decidir a vida e a morte...

Focinho de porco não é tomada. Não, fascistas não são melhores que os narcotraficantes que dizem pretender exterminar. O que fascistas de facto costumam exterminar são as vozes que lhes contestam e ainda as minorias pacíficas e incompreendidas -- como eram os judeus na Alemanha de Hitler -- como o hoje candidato majoritário à presidência de nossa República promete fazer com a militância LGBT. Ex-militar não é herói. Polícia que atira para matar, também não. Leis que oprimem minorias são imorais e, civilmente, precisam ser desobedecidas.

O país que eu quero, por mais piegas que isso seja, é um país guiado pela tolerância, não pelo ódio.

Agora, de consciência limpa, eu vou votar.
 
FOCINHO DE PORCO NÃO É TOMADA

A QUE ME DEIXA

 
A QUE ME DEIXA

Uma mulher despede-se n'um sonho.
Dizia ela me amar, porém partia.
E eu, tomado de estúpida apatia,
Segui de longe seu olhar tristonho. 

Desperto a devaneio tão bisonho,
Cercando cada imagem que fugia: 
O porte senhoril, a graça esguia...
Dos gestos o donaire recomponho.

Não fixei de seu rosto coisa alguma;
Sequer lembro d'um nome a ter chamado:
Ou todas as mulheres; ou nenhuma.
 
Uma mulher n'um dia enevoado:
Lembrança que à memória desarruma...
Aquela que me deixa em meu passado.

Belo Horizonte - 07 09 1997
 
A QUE ME DEIXA

SETE DE SETEMBRO

 
SETE DE SETEMBRO

D'um obscurantismo jamais visto as fotos do dia da Pátria, hoje, em Brasília: O presidente da República do Brasil acompanha o tradicional desfile da Independência ladeado por um bispo neo-pentecostal e o dono d'um grupo de mídia.

Obscurantista sim, pois remete ao tempo em que os chefes da nação se faziam acompanhar por autoridades eclesiásticas… Não poucos veículos de imprensa ressaltaram, diante das imagens publicadas, a substituição dos presidentes do Congresso e do Supremo nos devidos postos de honra d'uma república que, constitucionalmente, ainda divide o Estado brasileiro em três poderes independentes.

Ainda… A não ser que, movidos pelo simbolismo das fotografias, entendamos de vez que os poderes que o actual presidente realmente reconhece -- de modo absolutamente autocrático e ao arrepio da Constituição Brasileira -- sejam aqueles presentes nas monarquias medievais, a saber, o Temporal, da Realeza; e o Espiritual, da Igreja -- aos quais, a partir de 2019, o Brasil parece ter retornado. 

Vale recordar, por outro lado, que não apenas bispo neo-pentecostal, Edir Macedo é também dono de grupo de mídia. A elevação do empresário religioso à autoridade da República no desfile d'este sete de setembro reforça o entendimento de que Bolsonaro seja hoje, antes de mais nada, um governante ávido de domínio sobre amplos setores da opinião pública. Igualmente digna de nota a distinção feita ao também dono de grupo de mídia, o apresentador Sílvio Santos, como se a estabelecer que sua concessionária de comunicação social passe a assumir a posição de voz privilegiada d'este novo-mas-já-velho regime político.

A falta de pudor de Bolsonaro em exibir os "seus" canais de mídia eletrônica forçosamente nos leva a pensar sobre como serão os próximos meses e anos de seu governo. Vejamos: A comunicação social deverá ser cada vez mais cuidadosa se comparada à exagerada exposição que o actual presidente se impôs desde o início do ano. As honras de autoridades recebidas pelos empresários deverão se traduzir em apoio editorial escancarado em seus programas de jornalismo e entretenimento. Já dominante em amplos espaços de comunicação nas redes sociais, o bolsonarismo passará a entrar sistematicamente nos lares com seu discurso a flertar ora com o conservadorismo econômico; ora com o extremismo político na condução dos destinos da nação.

Mas mais simbólico, para todos os efeitos, é esse alinhamento explícito entre o antiesquerdismo truculento que Bolsonaro lidera e a ascensão do neo-pentencostalismo como religião e moralidade dominantes no país. A laicidade do Estado Brasileiro foi mais uma vez ignorada n'esse governo em face do projeto de poder cristianizador que as referidas igrejas procuram exercer de modo crescente na sociedade brasileira.

Ao escolher um líder religioso em lugar d'uma autoridade, o presidente demonstra desprezar o simbolismo da República bem como os princípios de nossa Constituição. 
Não nos enganemos: O futuro que se está a construir hoje, no eixo monumental de Brasília, tende a descambar n'um fundamentalismo cristão conveniente e conivente com o autoritarismo.

O Brasil que se celebra independente insiste em olhar para o passado e se desejar colônia novamente d'algum império que, sob pretexto de nos civilizar, pós-moderniza o cristianismo com vias a exercer em nome de Deus domínio sobre corações e mentes... Até que o poder central volte a ser familiar, hereditário e, afinal, absoluto.

Mas isso já são outros quinhentos.
 
SETE DE SETEMBRO

Ubi caritas est vera
Deus ibi est.