Essencialidade
Excluídas as exigências convencionais,
elididas as diferenças sociais,
suprimidas as indiferenças raciais
e vencidas as filosofias dos intelectuais,
os humanos somos animais cotidianamente
carentes apenas de contato, de olfato, de tato,
e não de sapatos, aparatos e contratos;
carentes de calor, de amor, de despudor,
e não de avião, promoção e título de doutor;
carentes de carícia, de malícia, de preguiça,
e não de influência, fluência e contas na Suiça;
carentes de paixão, de emoção, de tentação,
e não de guerra, terras e grades de proteção;
carentes de relacionamento, de cumprimento, de sentimento,
e não de isolamento, armamento e muros de confinamento,
carentes de beijo, de desejo, de gestos benfasejos,
e não de guerrilha, quadrilha e ilhas de desterro;
carentes de paz, de cantigas, de poesia,
e não de rolex, duplex, veleiros carcomidos pela maresia;
e porque ninguém é de ferro nem de água
nós somos carecedores desmedidos
de dengo, chamego, cafuné e sexo;
mas para tal, é urgente que se faça uma claúsula
que declare a permissividade de viver despido;
chega de relógios, gravata, anágua, saia, terno.
Cid Rodrigues Rubelita
Intervalos
Quando se está na fase gestatória
Há um intervalo entre a existência e a vida;
É que para a cotidiana memória
A pessoa só existe se passível de ser vista.
Quando se vive na inocência de ser criança
Não há intervalos entre as brincadeiras e os sonhos
A não ser aqueles intervalos longos
Entre a boca da noite e o raiar da manhã.
Quando se está arrebatado por uma paixão
A vida se nos apresenta pautada de intervalos.
Se não está ao alcance de nossos braços
A pessoa que a gente ama, forma-se um vão...
Que mais se afigura um abismo.
Quando a chuva pára de cair
Após uma tempestade de verão
Entre a derradeira gota e o chão
Há um intervalo em que o sol voltar a luzir.
Entre as viagens de idas e vindas
Entre os encontros e as despedidas
Há um intervalo raso de saudades infindas
Nesta intolerável ausência da pessoa querida.
Cid Rodrigues Rubelita
Te amo!
Te amo tanto,
de mais da conta;
Te amo muito
e este amor desponta,
diuturnamente,
feito sol reluzente
espargindo raios intermitentes
de encanto e afronta!
Te amo mais que tudo
que causa espanto
aos quatro cantos
deste perigoso mundo.
Te amo além do ponto
de equilíbrio racional,
com um tal
de amor natural e tonto,
que flui de meus olhos,
voz, modos e poros
que nem águas de um temporal.
Te amo assim fora da moda;
de alma, espírito e corpo
e já não me importa
a conclusão crítica dos outros.
Te amo com força descomunal,
que os sentimentos rompem a atmosfera,
que pinta nos dias meus esta aquarela,
que expõe minha felicidade no mural.
Te amo tanto
que a mim não me faz mal
nem me causa desencanto
a sua reciprocidade casual
e limitada à conveniência dos encontros.
Te amo muito além
dos termos ditos convencionais
e só Deus sabe quanto bem me faz
amar assim este alguém.
Cid Rodrigues Rubelita
Amante incondicional
Com este alarido em harmonia
se eu fosse teu bem me libertaria
dos afazeres do dia-a-dia
só para me prender sem alforria
nos prazeres deste amor
- ou seria paixão, despudor -
até quase morrer feito beija-flor
afogado na concupiscência que extasia.
Afinal, aquém do mérito da filosofia
o que é a vida, analisa:
senão um punhado de dias
imprevisíveis e enxarcados de suor
para se arcar com os ares de doutor
e o conceito de sucesso que nos dita
esta sociedade decrépita e estúpida
- e a hipocrisia que nos veda a vida lúdica -
Portanto, se eu fosse teu bem me jogaria,
cego, no teu colo de amante incondicional
e causaria incomensurável dano moral
à enfadonha e insossa monotonia.
Cid Rodrigues Rubelita
Olhos da saudade
Deste composto de carbano
encharcado de águas contidas
afloram, feito a imensidão do oceano,
olhos rasos de saudade desmedida.
Revolvem-me a um passado remoto,
os olhos da saudade,
e, com tamanha intensidade,
que até te abraçar eu posso.
Todavia, os olhos da saudade são irrequietos
e aspiram a todos lugares a um só tempo;
quando, definitivamente, tenho-te mais perto,
fecham-se os olhos e confundem meus sentimentos.
Têm a aguçada visão dos linces,
os marejados olhos da saudade;
e um poder próprio dos príncipes
e um encanto próprio da divindade.
Os olhos da saudade, arregalados,
fazem de meu coração uma estrela,
que cintila de lado-a-lado
do universo para a felicidade de tê-la.
Os marejados olhos da saudade
tranformam a minha vida
num barco à deriva;
sem ela, meu porto, minha felicidade.
Cid Rodrigues Rubelita