Perguntas a Eugénio de Andrade
tenho a sangrar-me dos braços
as palavras que me atiro:
em que medida te suspendo
no tempo de me ouvires?
tenho caladas na boca
as perguntas que me faço:
em que palavra estou,
onde fiquei agarrado
às pedras do teu assombro?
tenho nas mãos
o papel com que me firo:
será o breve de um grito
o susto que me acorde?
Condição De Bardo
junto a bravura na luta
de um coração celta
em peito de gaivota
à doçura de um homem do sul
na paixão pela sua amada...
entre a rudeza do sangue
e a brandura do amor,
a minha condição de contrárias forças
me conduz por caminhos, ermos...
de montes e pedras,
sobre vales e rios,
sob sopradas nuvens
de molhados gelos
ou repentinos frios...
e se faço uma pausa na caminhada
é para ouvir o silvo do vento;
porque Ele é como a música
que me penteia os neurónios,
e é ela que me diz
para onde devo seguir.
caçados
Despe o teu corpo
meu olhar predador
que em sonhos me entretém,
em fantasias...
Enquanto assim algo
de invisível, insuspeito,
se passa sob a minha pele,
máscara impassível,
surgem da flexão
da tua cabeça, rodando,
teus olhos - surpresa,
neles se suspendendo
a imaginária caça dos meus:
porque os trazes limpos,
já desnudados.
Corpos
Teu corpo é arco
na ponta dos meus dedos
três leves polpas
na flor da minha mão
com que inflamo a manhã
no teu ventre.
mergulhado
nos teus braços
envolto em lábios,
em perfume.
em beijos,
na água do teu pescoço
brando de rosas
nos bicos doces
no peito leve.
Quando somos amor
nossos corpos são arcos
A Escrita
Naquele dia, os amigos debatiam as suas diferentes concepções da escrita:
Wirsung analiticamente iniciou:
- É verdade que por vezes questionamos o valor do que escrevemos, indagando-nos da força destes comprimidos de pensamento, do seu conteúdo em miligramas de entendimento. Desejando escrever algo de definitivo, imaginamos ilusoriamente transformar, principiar algo de novo. Assim, a escrita poderá, apenas, ser a materialização dos sonhos imperfeitos – notem que resisto à tentação de dizer “sempre”…
Álvaro Urbano, muito sucinto e minimalista, resumiu:
- É coisa fugaz e irremediável, portanto histórica.
Ana receitou, da sua experiência de vida:
- Titubeando no mundo do Intervalo, o ideal é deixar solta a Imaginação, deixar correr livre a palavra, escrever “em bruto”, directo a seguir ao pensamento.
Luciana criticamente pincelou:
- Circular pelos traços das avenidas literárias, cercadas nos campos da visão estreita dos “ismos” da moda, em escrita linear e fechada num só plano, é cavar o fosso dos intelectuais-intelectualistas, a quem o povo nunca dará o seu entendimento.
Domingos trouxe da bancada o exemplo:
- É como madeira trabalhada, pronta a ser olhada, tocada e cheirada, antes de ser arte ou utilidade.
Henrique, de olhos líquidos:
- No fulgor da palavra pura, deixamos fixar o nosso pasmo de encantamento.
Luís, de olhar iluminado:
- Na poesia da brevidade, deixamos correr o fluxo vivo de quotidianos inexplicados.
Capítulo 22 de "Lúcido Mar"
NOITE DE AMOR
Um sonho de amor,
um sonho;
imorredoiro amor,
sonho de uma vida.
Vivido sonho real;
real amor, tão vivo.
Noite de sonho,
noite de amor;
a vida num dia,
numa noite a vida.
Numa noite tanto,
numa noite tudo.
Em Amor, em espanto!
Despertar na vida,
em vivas memórias
despertando o encanto.
Amor, Estranha Palavra
tanto nos disse
o primeiro ar ao nascer
tanto nos disse o colo,
as mãos da mãe;
tanto falou o chão às nossas,
mãos gatinhando, antes dos pés
sentindo, os torrões
ou planos alisados
tanto nos disseram
bancos de várias cores,
formas e densidades;
tanto as paredes
esfolando os dedos nos disseram
tanto os muros
aos joelhos nos falaram
tanto as pedras dos caminhos
aos dedos dos pés doeram...
Sobre o Amor,
essa estranha palavra,
tudo nos disse a Vida.
Voz Minha
Oh! Voz minha não te cales,
pelo ardor do meu coração!
Que sejas Lança, sempre fales
- que me ilumines a escuridão!
De volta ao tempo clandestino,
voltou a "apagada e vil tristeza";
resta-me só a Lança da Pureza:
este puro coração de menino...
Já que a chama se apagou,
nesta jornada discreto vou,
e sigo à sombra dos anões...
Ficando nas trevas os dias,
fúteis vaidades e honrarias,
chegue a Lança aos corações!
Por Companhia
Por companhia O temos
na vida, em todos os dias.
Bem seguros seguiremos,
se o crês, Nele confias.
No destino confiantes,
por Ele acompanhados;
tranquilos caminhantes,
seguimos abençoados.
Traz sereno o coração,
com bondade e razão
- assim seja a tua Vida.
A Alma te seja querida,
que nela sempre seja dia.
Ele virá, por companhia!
Dívida
Ana tratara de trazer para bordo um equipamento indispensável, e agora explicava aos companheiros desta barca de muitos mestres e aprendizes a sua composição:
-“A farmácia essencial compreende: bisturi, tesoura, pinça de dissecção, porta agulhas, pinça de bicos finos para a extracção de corpos estranhos, duas pinças hemostáticas, seringas e agulhas descartáveis, agulhas e sedas de sutura de vários tamanhos, algodão, compressas esterilizadas, ligaduras de várias larguras, adesivo, solução antisséptica, álcool a setenta graus, ampolas de anestésico, analgésicos, colírio, protector solar, antiácido, antidiarreico.”
-“Quem vai ao mar, avia-se em terra!” – exclamou, ufano e irónico, Álvaro Urbano, sentindo-se logo em seguida bastante ridículo.
Depois de Henrique ter esclarecido quais as manobras para a recolha de um náufrago, Ana explicou ainda a técnica correcta de reanimação de um afogado.
Chapinhando em memórias que de súbito o assaltaram, o marinheiro já não a ouvia, recordando-se da longínqua planície, e do pedaço de si que nela ficara, como náufrago num pântano verde.
De olhos salgados e alma amarga, nele soava agora o tom grave e solene de uma canção alentejana:
“Eu sou devedor à terra
e a terra me está devendo.
A terra paga-me em vida,
e eu pago à terra em morrendo.”
Capítulo 18 de "Lúcido Mar"