Desprezado!
Eis o Desprezado!
Um pai natal caído do trenó,
abandonado pelas renas,
sem prendas para dar ou receber.
Eis o Pedinte!
Um anjo maltratado,
despejado de uma nuvem
num soluço de tragédia.
Eis o Barbudo!
Pêlos queimados pelo tabaco,
paraíso de parasitas que o acham
mais parasita dos que eles.
Eis o Rasgado!
Com as calças, os sapatos
e o casaco a sorrirem
com suas bocas de chagas desdentadas.
Eis o Viciado!
Que se desinfecta com álcool,
ingerido para fazer efeito por dentro
e poder mover-se por fora.
Eis o Mal cheiroso!
Repugna os que o sentem
na distância de um sopro
mais vigoroso do vento.
Eis o Mal Amado!
Infecta a rua conservadora,
do bairro onde não tem
o direito de ser gente.
Eis o Vergonhoso!
Incomoda os orgulhosos
que se sentem superiores
em géneros e números.
Eis o Vadio!
Figura de gente
em forma de animal
acossado pelas moscas.
Ei-lo que se aproxima!
Deslizando no visco do seu rastro.
Guardem os vossos filhos em casa.
Tranquem as portas das moradias.
Fechem os bolsos das esmolas!
Ignorem-no!
Porque a ignorância é a protectora dos que preferem não ver.
Viagem no vento
Em silêncio,
esperando pela porta fechada
que abrirá os braços para os receber,
aguardam pela passagem de um vento tubular
que os levará para onde não querem ir.
Estes olhos, conformados, realistas,
desistiram de sonhar os sonhos da infância
onde eles se perdiam no imenso mar da imaginação,
em que a alma navegava de ilha em ilha,
procurando os segredos particulares
que cada uma delas guardava
nos tesouros enterrados pelos piratas do sentir.
Em cada tesouro havia sempre um mundo novo
pleno de cores e de cheiros desconhecidos,
habitado por gente que era bonita e interessante
e de onde não apetecia sair nunca.
Por lá encontraram estes olhos outros olhos,
que procuravam olhos amigos para partilhar
estes mundos novos e alegres.
E naquele momento, o mundo foi feliz.
Mas estes olhos não estavam destinados
a ver os outros olhos a envelhecer...
Separaram-se encharcados nas lágrimas dos olhos
que se julgavam juntos para sempre e que sem querer aumentaram o tamanho do mar que um dia os uniu.
Estes olhos juraram nunca mais esquecer os olhos que partiram...
Agora, estes olhos desfocados aguardam
pelo vento metálico tubular que os levará
como folhas varridas num jardim,
sem vontade de encararem outros olhos
igualmente deslavados que estão no rosto cansado
que habita o vulto imóvel à sua frente que lhe sorri.
Com esforço reconhecem naqueles olhos que o miram,
os olhos perdidos no antigo mar das emoções.
Reconhecem os contornos ovais e a cor de avelãs
torradas pelo sol do verão, reconhecem o brilho da determinação que sempre fascinou estes olhos que olham os outros que lhe sorriem.
Mas estão diferentes, tais como estes olhos, os outros perderama inocência e a doçura que os caracterizavam tão vincadamente.
O tempo, a vida e a distância encarregaram-se de as apagar destes olhos que se olham espantados e reencontrados.
Lágrimas correm destes olhos que durante muito tempo correram como loucos procurando os olhos que agora os foram encontrar sem que eles estivem a procurá-los.
Agora é tarde para voltarem a procurarem tesouros escondidos em ilhas imaginárias, no antigo mar das brincadeiras de crianças.
O mar já não separa os olhos que sempre se quiseram encontrar...
Esse mar já não existe...
Impressão digital de um beijo.
Inscreve na minha boca uma impressão digital,
que eu inscreverei na tua o meu sabor natural.
Pressiona em meus lábios os teus feitos cor,
duas rosas suaves, brilhantes, com traços de amor.
Saboreia lentamente o meu gosto particular,
mordo as palavras dos beijos dados no teu ar.
Refresca minha palidez com a tua pura saliva,
trocamos fluidos alegres numa atitude festiva.
Encerramos os olhos num segredo de contacto,
acaricio-te a alma com ligeirezas de tacto.
Na curva deste beijo, nas linguas encontradas,
repousam finalmente as nossas almas cansadas.
Por isso
inscreve na minha boca uma impressão digital
que eu inscreverei na tua o meu amor fundamental.
O Amor
Morri-o...
mas ele seguiu-me e estacionou o seu corpo na minha rua...
Vigilante, Expectante
pelo momento certo de
ressuscitar-me
NU
Estou nu...
sem máscara e sem par,
sem terra para me ligar,
enrugado, roxo e curvado
que não sei se morro ou se nasço
e entre o nascer e o morrer está a poesia
Estou nu...
sem identidades ou mentiras,
sem falsidades ou intrigas
simplesmente nu...
com as minhas cicatrizes, arranhões,
nódoas negras e contusões...
marcas registadas, códigos de barras.
e entre o cair e o levantar está a poesia
Estou nu
em pêlos e pele creme
segurando um sexo que treme
com secreções a pesarem em mim,
qual tela em branco, mar sem fim,
despido das opacas camadas de roupa
que tanto se curvam no meu guarda-roupa.
Nu mas vivo.
Nu mas EU
NU no céu
Para onde foi?
Para onde foi o Mar
que nem arroio já é,
e me deixou seco
esgravatando seixos da inspiração?
Para onde foi o Sol
que nem brilho tem,
buraco negro sugador de toda inspiração?
Para onde foram as Mãos
que não param de tremer
como rochedos quebrados em areias salgadas?
Para onde fui nublado
que nem Mar, Sol ou Mãos vejo,
sem pinga de tinta
no sangue da inspiração?
Pensamento
NADA ESPERO,
TUDO ALCANÇO.
Quando a lua empurra o mar...
Quando a lua empurra o mar
eu beijo água que me deu vida.
Quando a lua sorri no céu
eu acendo-lhe uma despedida.
Quando a terra se espreguiça
eu espreguiço-me com ela.
Quando a terra se emociona
eu pinto-lhe uma aguarela.
Quando o vento afaga troncos
eu sorrio de alegria.
Quando o vento corre louco
eu fico louco de poesia.
Quando o fogo dança dentro
eu acendo chamas de esperança.
Quando o fogo queima novo
eu transpiro a confiança.
Quando dois lábios se tocam
eu gotejo força de paixão.
Quando dois lábios se querem
eu entrego o meu coração.
Nasci...
Nasci,
Cresci,
Morri,
Sem que tu desses por mim.
Sonhei,
Cantei,
Gritei,
Sem que tu desses por mim.
Amei-te na sombra
Duma parede gigante
Que se punha entre nós.
- Sem que tu desses por mim.
Corri o espaço todo
À procura de alguém
Como tu.
- Não achei.
Colei-me à tua porta
Para que desses por mim.
Mas a parede cresceu
Novamente e cobriu-me
De sombra outra vez.
- Assim se passou a vida,
sem que tu desses por mim.
Choro...
Choro...
E não sei porque choro,
mas choro com vontade,
chorando porque choro.
Choro...
Porque preciso de chorar
o choro da ansiedade
de rir para não chorar.