Poemas, frases e mensagens de (re)velata

Seleção dos poemas, frases e mensagens mais populares de (re)velata

«Le plus précieux de nous-mêmes est ce qui reste informulé.»

ANDRÉ GIDE, in Nouvelles Nourritures – livre II

LEME

 
As mãos tisnadas
perseveram.
Gretadas
por vendavais passados,
ainda a laceram
o sal, o sol
e os ecos mesquinhos,
aziagos,
do porto seguro
abandonado.

Mas vão.
Calam o turbilhão
da dor que as feriu
e miram o azul futuro,
refrigério desejado,
rumo a essoutro mar
que as descobriu.
 
LEME

BUSCA

 
Rola o seixo baio
ao capricho das marés.
Olha de soslaio
a rocha altiva,
tão firme no seu trono de areia
e tão alheia
à sua pequenez.
Ah, como queria a modesta pedra
descobrir-se cativa
num lugar só seu!
Mas… pobre pigmeu!
Quanto mais o mar se agita,
mais o seixo se perde
mais turva a água fica.
 
BUSCA

ESTIGMA

 
O vento norte
será sempre vento norte.
Aborrece
se é forte,
não aquece
se é frio
(e um arrepio
é coisa que ninguém merece).
Se se faz quente,
é lume ardente
na pele,
e se por um momento
mui bem se comporta
se suaviza,
se veste de brisa,
pouco importa,
continua a ser vento.
 
ESTIGMA

FACES DA LUA

 
Lá fora
a lua oferece
a cidade recortada,
estampada em paredes
de negro algodão,
e na confusão
das sombras paradas,
num marasmo que aborrece,
logo adormece
e se derrama no mar.

Cá dentro
p’la janela entreaberta
a lua oferecida
rebola, desperta,
no branco algodão
dos lençóis que se inflamam,
e ondula, aturdida,
na confusão dos corpos
que, fluentes,
se derramam.
 
FACES DA LUA

SENSIBILIDADE

 
A pele que sente
o subtil frescor
de um salpico do mar
num dia que agosto aquece,
também padece
da mansa dor
vinda de um grão de areia
que o vento arremesse.
Não há malícia,
mas a pele arroxeia
sem razão,
e desenha-se um arranhão
onde antes pousou uma carícia.
 
SENSIBILIDADE

ROSEIRA

 
É a mesma seiva quente
que nos percorre,
o mesmo lume,
o mesmo perfume
da rosa primeira.
Caídos os acúleos da distância,
vivemos a mesma ânsia
das raízes entrelaçadas,
transpiradas de amor.
Crescemos roseira,
e há mais uma flor
naquilo que somos.
 
ROSEIRA

DO LADO DE DENTRO DA CHUVA

 
Deixa-me estar
do lado de dentro da chuva,
onde as bátegas são refrigério
e não guardam mistério
os meus olhos,
pintados de arrebol.
Semicerrados,
são vidros embaciados,
de si mesmos encharcados,
por trazerem dentro a chuva,
cansados de mendigar o sol.
 
DO LADO DE DENTRO DA CHUVA

PARALISIA

 
A emoção escoa,
desbragada,
como areia fina
entre os dedos da mão,
e ao chegar ao chão
é já duro cimento
que prende o movimento
dos pés.
Mais uma vez
um pesar agourento
em derrame aflitivo
é manto infame e cinzento
que cobre aos poucos,
cruento,
o corpo enterrado vivo.
 
PARALISIA

MURALHA

 
Com seu olhar de granito
fito
na cidade estendida,
é sem farsa
que a abraça,
destemida.

Fortaleza de amor,
é por querer ser guarida
que almeja ser maior.

De si iludida,
parece que esquece
como medra,
como dói
a erosão que corrói
a sua primeira pedra.
 
MURALHA

MUTANTE

 
O que se perde
também se transforma.
É depósito azedo e ressequido
no fundo do copo partido
tão cheio daquilo que foi
e não torna.
 
MUTANTE

MARCA D'ÁGUA

 
A lágrima de mágoa e prata
desviou-se da cascata
e desaguou no papel.
Soprou-lhe o Zéfiro suave
um ar tão fresco e tão grave
que lhe secou o fel.
Como parece ilesa a folha
aos estúrdios olhos do mundo!
Mas a lágrima de prata e mágoa
já não molha, mas é marca d’água
para sempre impressa no fundo.
 
MARCA D'ÁGUA

IN SOLITUDINE

 
Sim, o dia virá,
luminoso,
rasgando o luto da noite.
Mas não tem hora marcada
esse romper da aurora,
e por agora
paira a indecisão
da madrugada.
Sim, virá o dia,
radioso,
aquecer a carne fria
da minha mão.
Mas esperar o que é certo,
mesmo que esteja perto,
também se chama solidão.
 
IN SOLITUDINE

Quisera descascar as palavras

 
Quisera descascar as palavras,
descaroçá-las,
sentir-lhes a polpa,
a acidez
(ou a doçura talvez),
espremer-lhes o sumo
num dizer vigoroso,
e no fim
ter a mestria suprema
de as pingar uma a uma
no ventre caudaloso
de um poema.
 
Quisera descascar as palavras

Sangra o silêncio

 
Sangra o silêncio,
ferido
pelas palavras apressadas,
roubadas à noite,

perdido
no labirinto crescente
das vozes surdas, abafadas,

diluído
na saudade urgente
de outras madrugadas.
 
Sangra o silêncio

NEVOEIRO

 
Brilha nas pedras da rua
o teu silêncio
em gotas de nevoeiro.
Vai caindo cerrado,
gélido e pesado,
a remoer seu triste fado
agoureiro.
Há a noite e o nada.
Chove o silêncio.
Choram as pedras
da calçada.
 
NEVOEIRO

DESNORTE

 
Gira a bússola inquieta
entre estilhaços
caída no chão frio.
Entre um sem-fim de pedaços
tenta ler o vazio
dos pontos cardeais.
E num frenesim
(rodopia mais)
conta horas a fio
à sorte
sem norte
nem pousio.
 
DESNORTE

Não me ofereças flores

 
Não me ofereças flores
de estufa,
lindas, perfeitas e iguais,
ufanamente processionais,
exigidas à terra
e que a terra dá
sem oferecer.
Leva-me a ver
as flores do campo:
toscas, de caules entortados,
são beijos p’la terra lançados
em borbotões de cor.
E como viceja
o chão tingido!
O amor que merece
é aquele que se oferece
sem ser pedido.
 
Não me ofereças flores

CONFIANÇA

 
No teu peito
tempo quebrado
sou rosa desarmada
de espinhos despida
sou flor esquecida
dos segredos das folhas
e quando me olhas
(afeição desmedida!)
sou corola aberta
de mim liberta
em ti adormecida.
 
CONFIANÇA

FRUTO

 
Agora,
que já se passaram muitas luas,
que as minhas raízes são as tuas,
que meus ramos terminam em ti,
sei enfim que é hora
de dar de mim novamente
e recolher nova semente
nas mãos onde flori.
 
FRUTO

COÁGULO

 
A palavra desliza
espessa e lenta
na veia da mão.
Engrossa e aumenta
e sedimenta
em silente ebulição.
Sem um verso que a liberte,
tenta, porém, não avança,
mesmo inerte não descansa,
e só sai quando rebenta.
 
COÁGULO