Poemas, frases e mensagens de Luis

Seleção dos poemas, frases e mensagens mais populares de Luis

Questiona

 
quando quiserem que acredites
questiona

se te fecharem a porta
abre-a

e quando te disserem que não há uma estrela da manhã
acende-a
 
Questiona

Setembro

 
Como eu preciso de ver os barcos encostados à muralha,
acabados de chegar, ou prestes a partir.
Quem sabe? Quem me diz?

Como eu preciso dos meus olhos na água,
apressados, com a pressa que as ondas têm...

Já devia ter ido até ao cais
a que chegam todos os barcos depois do verão.
Mas ainda não fui.

Eu aceito.
Aceito, mas não sei por que não param os relógios em agosto,
quando o mar está chão, o sol visível e a areia quente...
Quem sabe? Quem me diz?

Já estamos em setembro,
o mês em que as sombras crescem enquanto o lume se apaga.

E eu já devia ter guardado a nudez para vesti-la
para o ano que vem, quando for tempo para despir a roupa
e regressar.
 
Setembro

Prisioneiros

 
despidos,
os lábios vestem-se de palavras.

a cada uma
os olhos fitam as portas que elas encerram.

e cada frase proferida é uma chave,
como se a saliva emergisse em fios de seda branca
até que o casulo, translúcido, se fecha.

e nós lá dentro!

prisioneiros do que dizemos!
 
Prisioneiros

Estuário dos tempos

 
são inocentes os olhos que acordam
na fonte do princípio,
na origem das nascentes.

maculados os outros, que adormecem
na foz dos invernos.

no estuário dos tempos.
 
Estuário dos tempos

Perguntei-te

 
e quando eu quis cantar
disseste-me que não havia vento
que me levasse a voz.
e eu calei-me.

perguntei-te de onde corria o vento.

disseste-me que os caprichos do ar
são tão ínvios e frágeis
como livres e ágeis são as ondas do mar.
e eu calei-me.

perguntei-te de onde escorria a água.

falaste-me das gotas cristalinas,
do orvalho.
das lágrimas que se precipitam
de madrugada, tão límpidas na verdura chã.

e quando eu vi as aves brancas, suspensas no escuro
como luminárias, falaste-me no voo luminoso dos pirilampos.
e eu calei-me.

de onde vem a Luz ? perguntei-te.

do Oriente da Terra ou de Ti.
na imensidão o centro pode estar
em qualquer lugar, respondeste.
 
Perguntei-te

Aplausos e pateadas!

 
Perguntaste-me:
como podem as mil e uma noites
chegar à eternidade?
Ao dia a dia das coisas menores que fazes?
À vidinha que tens?

É simples!
Basta acrescentar histórias às histórias de Sherazade.

Como?

Contaram-me que um velho muito velho
tinha nas mãos o dom da palavra:
batia palmas e soavam discursos!
Palavras e mais palavras saltavam-lhe das mãos
e, se a conversa fosse triste, até os dedos choravam.

O velho não podia bater palmas sempre,
porque as palavras das mãos eram mais sinceras
do que as palavras que dizia quando falava pela boca.

De inverno, quanto o frio pesado lhe caía em cima,
o velho batia palmas para ficar quente
e de entre os dedos ouvia-se o Pessoa
carregado das razões, do calor e do frio
que tinha e não tinha.
E às vezes Camões: “alma minha...”

E quanto mais quentes lhe ficavam as mãos
mais quentes eram as palavras que se ouviam.

Num dia de frio, de luvas calçadas,
ouviu-se a voz rouca e sumida da Florbela
que mal conseguia sair-lhe pelos pulsos...
“Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,"…

E quando às batidas dava jeito de sapateado
e gestos de flamenco,
eram de Lorca as palavras que se ouviam.
Voz arrastada...
entre lamentações ciganas e o fado.

Num dia de calor o velho, de mãos suadas,
limpou as mãos humidas e bateu palmas para secá-las.

E Pablo Neruda saíu-lhe a cantar Tango
Viúvo, como o pai a um mês dele ter nascido.

Ah! Mas o velho também batia os pés!

Ficou famosa uma pateada no São Carlos
por conta do Castelo do Barba Azul.
Nada que se devesse ao Bartok,
que nestas coisas do canto as pateadas
vão mais para quem abre as goelas pífias
e regurgita fífias em forma de canto.

No fim do primeiro e último acto
(que o compositor foi poupadinho),
toda a minha gente pateava a Judite e ele também.

E pela manga dos peúgos saíu-lhe o Ezra fanhoso:
“Arre! Já celebrei mulheres em três cidades,

Mas é tudo a mesma coisa;

E cantarei ao sol.”

Um dia, uma criança que estava à beira do velho,
sabendo daqueles seus dons pediu-lhe
que batesse palmas e pateasse ao mesmo tempo.

A algazarra foi tanta vinda das mãos
e de baixo, pelas perna a cima e de todo o lado,
que o coitado do velho caiu por terra!

E em dois dias foi enterrado.
 
Aplausos e pateadas!

É simples...

 
é simples permanecer
na frágil amurada de um porto e na vigia de um barco
que parte sem nunca chegar

por isso
moras na orla de tudo o que os teus olhos não te mostram
e passeias sem querer saber das perfeições escondidas
 
É simples...

Todos os rios

 
sentei-me ali e olhei todos os recantos da praia
confesso que não vi cada um dos grãos de areia
nem as dunas imensas que veria se o meu tamanho fosse outro

sentei-me ali

estava como sempre estou em todas as praias
mais no sal que na terra
mais na água que no sol
quando olhei para longe e vi na linha
da fronteira celeste do mar

como se estivessem perto de mim
todos os rios do mundo
 
Todos os rios

E a família feliz...

 
Não sei,
não sei se estou velho...

Não sei se estou velho
nem se estar velho é estar como eu estou.

Há muito tempo, sentava-me no quintal
e via as brasas, as sardinhas e os pimentos,
soltarem o fumo ao calor do verão.

E a família feliz, como o prato chinês.

Não pensava no tempo assim.
Só na chuva, no sol e no vento.

E via as brasas do carvão até à cinza
e a presença de todos, como se ali estivessem
para sempre.

E a família feliz, como o prato chinês.
 
E a família feliz...

Há cidades onde

 
sempre que a noite se cala
quando cresce o sol
e a lua desce

há cidades onde
os cães passeiam os donos
e correm do futuro para o passado
as águas que o tempo dá
 
Há cidades onde

Onde fica?

 
São assim,
os desejos que invadem os homens
quando na quietude do bem estar
se sentem impelidos a fazer.

O que os move?

Há quem diga que somos feitos para ser felizes e,
felizes, deixamo-nos estar.
Quietos,
tranquilos,
na esperança de que o estado de graça fique
para a eternidade.

Há quem diga que estamos aqui para festejar a felicidade.
Conseguindo-a, ficamos nela de pousio...
sem querer que ninguém nos cultive o corpo ou
abane a caixa dos pensamentos.

E o sentido do dever?
Onde fica?

Há quem diga que fazer por dever é fazer obrigado
e que a obrigação não é sinónimo de vontade.
Agimos e fazemos quando nos sentimos incomodados:

é antes disso que está a felicidade!
 
Onde fica?

Não quis aprender

 
foram tantas as coisas que me quiseram ensinar
mas que eu não quis aprender!

quiseram que acreditasse que o mundo era como era
só por ter sido como foi.
e eu sentado com as pernas curtas, que nem chegavam ao chão,
repetindo para mim que não queria saber.

e do quadro negro, de dedo em riste,
gritavam-me que ser alguém era ser como os outros
porque os outros eram como deveriam ser.

e eu a não querer saber daquela sabedoria!

e da cátedra explicavam-me como se fazia a partir de um ponto
uma circunferência por natureza redonda,
mais um quadrilátero que até podia não ser quadrado.

e eu a não querer saber daquela geometria das figuras!

de pernas curtas que nem chegavam ao chão
tudo para mim era enfado, travessuras, imaginação.
 
Não quis aprender

Um novelo uma Rosa

 
era fina a linha que tracei
invisível aos mais desatentos

depois de fazê-la com muito cuidado
fiz dela a fronteira entre mim e o fado

fiz dela o traço entre o céu e a terra

a vida e a morte
o amor e o medo
a paz e a guerra

era um fio de seda uma teia fina
depois um novelo uma Rosa divina
 
Um novelo uma Rosa

Sabedoria

 
nas tuas mãos
o mundo

nas rugas que trazes
as sementeiras
e os arados que navegaste

na quietude
as pautas musicais nuas
das valsas caladas
que danças em silencio

ah!

escuta na multidão
a chuva que te corre no sangue

os sonhos que semeaste
 
Sabedoria

Mesmo que não estejas

 
gosto de chegar com o sol ainda baixo
quando o dia ainda não deixou de ser noite
e o perfil da terra mal se apodera do céu

na penumbra vejo tão longínquas
sempre tão vagas as nossas proximidades
que nem percebo quando não estás

mesmo assim
gosto de me sentar à mesa pela manhã
de cheirar o café com leite e o pão ainda quente

e ver-te ali
mesmo que não estejas
 
Mesmo que não estejas

Admirável mistério

 
o que tem de admirável o mundo
não é tanto o que eu não sei do mundo
mas o que eu não sei de mim

o que faz dele este admirável mistério
não é tanto ele
mas eu

porque sem mim nada seria surpreendente
nem misterioso

porque os mistérios do mundo existem
tão só porque existo
e me surpreendo
 
Admirável mistério

O piano que ladra

 
I

sei de um surrealista que traz uma cerejeira ao ombro
e mora numa corda de roupa

na cerejeira todos os dias principiam frutos
que à noite regressam às flores

II

a mulher do surrealista toca um piano que ladra

ouvem-se matilhas de acordes
quando dá concertos em família

III

o casal tem dois filhos

o segundo nasceu antes do primeiro
e ladram os dois ao piano da mãe
 
O piano que ladra

Do nada

 
criar é fazer emergir do nada!

do escuro tirar a Luz.
do silêncio harmonia.
do inolente o aroma e do insípido o sabor.

é tirar da noite o dia e do carvão o lume.
do cravo o odor.
da tua pele o perfume.
 
Do nada

Intocado

 
existe
intocado pelos sentidos um mundo
latente

que permanece ao meu lado
quando o esqueço

que me guarda o silêncio
se canto

que me pede que o sonhe
sempre
 
Intocado

O tecto

 
são aves que te habitam

de asas abertas navegam-te por dentro
à bolina da tua pele

és o tecto do universo em que elas voam

pudessem elas ausentar-se
pudesses tú soltá-las
para além do tecto que és e dessa terra que te pertence
 
O tecto