Questiona
quando quiserem que acredites
questiona
se te fecharem a porta
abre-a
e quando te disserem que não há uma estrela da manhã
acende-a
Setembro
Como eu preciso de ver os barcos encostados à muralha,
acabados de chegar, ou prestes a partir.
Quem sabe? Quem me diz?
Como eu preciso dos meus olhos na água,
apressados, com a pressa que as ondas têm...
Já devia ter ido até ao cais
a que chegam todos os barcos depois do verão.
Mas ainda não fui.
Eu aceito.
Aceito, mas não sei por que não param os relógios em agosto,
quando o mar está chão, o sol visível e a areia quente...
Quem sabe? Quem me diz?
Já estamos em setembro,
o mês em que as sombras crescem enquanto o lume se apaga.
E eu já devia ter guardado a nudez para vesti-la
para o ano que vem, quando for tempo para despir a roupa
e regressar.
Prisioneiros
despidos,
os lábios vestem-se de palavras.
a cada uma
os olhos fitam as portas que elas encerram.
e cada frase proferida é uma chave,
como se a saliva emergisse em fios de seda branca
até que o casulo, translúcido, se fecha.
e nós lá dentro!
prisioneiros do que dizemos!
Estuário dos tempos
são inocentes os olhos que acordam
na fonte do princípio,
na origem das nascentes.
maculados os outros, que adormecem
na foz dos invernos.
no estuário dos tempos.
Perguntei-te
e quando eu quis cantar
disseste-me que não havia vento
que me levasse a voz.
e eu calei-me.
perguntei-te de onde corria o vento.
disseste-me que os caprichos do ar
são tão ínvios e frágeis
como livres e ágeis são as ondas do mar.
e eu calei-me.
perguntei-te de onde escorria a água.
falaste-me das gotas cristalinas,
do orvalho.
das lágrimas que se precipitam
de madrugada, tão límpidas na verdura chã.
e quando eu vi as aves brancas, suspensas no escuro
como luminárias, falaste-me no voo luminoso dos pirilampos.
e eu calei-me.
de onde vem a Luz ? perguntei-te.
do Oriente da Terra ou de Ti.
na imensidão o centro pode estar
em qualquer lugar, respondeste.
Aplausos e pateadas!
Perguntaste-me:
como podem as mil e uma noites
chegar à eternidade?
Ao dia a dia das coisas menores que fazes?
À vidinha que tens?
É simples!
Basta acrescentar histórias às histórias de Sherazade.
Como?
Contaram-me que um velho muito velho
tinha nas mãos o dom da palavra:
batia palmas e soavam discursos!
Palavras e mais palavras saltavam-lhe das mãos
e, se a conversa fosse triste, até os dedos choravam.
O velho não podia bater palmas sempre,
porque as palavras das mãos eram mais sinceras
do que as palavras que dizia quando falava pela boca.
De inverno, quanto o frio pesado lhe caía em cima,
o velho batia palmas para ficar quente
e de entre os dedos ouvia-se o Pessoa
carregado das razões, do calor e do frio
que tinha e não tinha.
E às vezes Camões: “alma minha...”
E quanto mais quentes lhe ficavam as mãos
mais quentes eram as palavras que se ouviam.
Num dia de frio, de luvas calçadas,
ouviu-se a voz rouca e sumida da Florbela
que mal conseguia sair-lhe pelos pulsos...
“Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,"…
E quando às batidas dava jeito de sapateado
e gestos de flamenco,
eram de Lorca as palavras que se ouviam.
Voz arrastada...
entre lamentações ciganas e o fado.
Num dia de calor o velho, de mãos suadas,
limpou as mãos humidas e bateu palmas para secá-las.
E Pablo Neruda saíu-lhe a cantar Tango
Viúvo, como o pai a um mês dele ter nascido.
Ah! Mas o velho também batia os pés!
Ficou famosa uma pateada no São Carlos
por conta do Castelo do Barba Azul.
Nada que se devesse ao Bartok,
que nestas coisas do canto as pateadas
vão mais para quem abre as goelas pífias
e regurgita fífias em forma de canto.
No fim do primeiro e último acto
(que o compositor foi poupadinho),
toda a minha gente pateava a Judite e ele também.
E pela manga dos peúgos saíu-lhe o Ezra fanhoso:
“Arre! Já celebrei mulheres em três cidades,
Mas é tudo a mesma coisa;
E cantarei ao sol.”
Um dia, uma criança que estava à beira do velho,
sabendo daqueles seus dons pediu-lhe
que batesse palmas e pateasse ao mesmo tempo.
A algazarra foi tanta vinda das mãos
e de baixo, pelas perna a cima e de todo o lado,
que o coitado do velho caiu por terra!
E em dois dias foi enterrado.
É simples...
é simples permanecer
na frágil amurada de um porto e na vigia de um barco
que parte sem nunca chegar
por isso
moras na orla de tudo o que os teus olhos não te mostram
e passeias sem querer saber das perfeições escondidas
Todos os rios
sentei-me ali e olhei todos os recantos da praia
confesso que não vi cada um dos grãos de areia
nem as dunas imensas que veria se o meu tamanho fosse outro
sentei-me ali
estava como sempre estou em todas as praias
mais no sal que na terra
mais na água que no sol
quando olhei para longe e vi na linha
da fronteira celeste do mar
como se estivessem perto de mim
todos os rios do mundo
E a família feliz...
Não sei,
não sei se estou velho...
Não sei se estou velho
nem se estar velho é estar como eu estou.
Há muito tempo, sentava-me no quintal
e via as brasas, as sardinhas e os pimentos,
soltarem o fumo ao calor do verão.
E a família feliz, como o prato chinês.
Não pensava no tempo assim.
Só na chuva, no sol e no vento.
E via as brasas do carvão até à cinza
e a presença de todos, como se ali estivessem
para sempre.
E a família feliz, como o prato chinês.
Há cidades onde
sempre que a noite se cala
quando cresce o sol
e a lua desce
há cidades onde
os cães passeiam os donos
e correm do futuro para o passado
as águas que o tempo dá