Para onde ides, Poeta?
Poeta, o que pensais de mim
Que de tão pouco ser me apronto a ser
Mapa de cobra, um sorriso que sobra
Sem um outro para o ver?
Poeta, onde procuro os vales e o cheiro da terra,
A verdade que ela encerra
E os sons dos mistérios que me pronunciam a alma?
Dai-me os silêncios e as vidas que eles poupam,
Tirai-me as velas, sinais em que eles se arroupam
E mostrai-me Deus nos arrepios das palavras!
Poeta…
Onde estais senão dentro de um corpo
E fora dele em cima da pele onde o mel das abelhas
É troco do suplício em que meus artifícios voam
Enquanto o vento é a vontade do meu instinto?
Onde estais quando os rios são só rios
Quando o quente é só o sol ausente
E o que sorrio a tempestade gelada
Amparada pelo âmago friorento?
Poeta, onde estais quando a esperança é fogo sem lume,
Quando a dor não se vê nas feridas
Ou quando a nuvem é só uma mancha no céu?
Onde estais senão em mim
Que não o encontro nem nas vísceras nem nos escombros
Onde um dia encontrei um peixe azul?
Poeta…
Porque sois quem sois quando um corpo não o suporta,
Quando a porta cai pelo próprio peso dos sons
Que do silêncio descem, ficando eu nu?
Onde ficais quando o toque é morte
E a sombra a sorte dos demais que habitam
Ruas que me cruzam, psicologias que me fitam?
Poeta…
O vosso beijo é um cortejo que ferve flores que em mim embalam,
Tambores de fogo que em mim estalam,
Neblina que me eterniza o sonho…
Do amanhã que é um misto de emoções cobardes,
Um grito que em mim arde,
Um rito cujo esconderijo é mito do absurdo,
Onde vos procuro na luz e invejo na cruz
E pergunto:
“Para onde ides poeta?”.
A Acomodação das Coisas
Tudo na minha cidade
Se acomodou.
As coisas acomodaram-se às coisas
As coisas às pessoas
As pessoas às coisas
E a elas mesmas..
Decidi deixar a cidade
Mas sem antes pôr tudo de pernas para o ar
Queria vingar-me da monotonia das coisas
Incendiar a nula sede das relações
Pretensiosamente inventar o ódio..
E, porque não, o amor..
Sou turista da destruição da minha cidade
Nunca tudo fora tão pacificamente belo
Nunca fora tão impossível de partir..
Contudo tão inevitável..
(Tirei uma última fotografia
E parti)
O Postal
O Postal
Estou a escrever um postal
A enviar pelo correio nacional
Para uma morada ao calhas
Para uma mulher que o leia
Para uma pessoa que com sorte
Nunca conheceu o amor.
Vai para uma morada daquelas
De que há muitas, de nome vulgar
Vai assim subtil mas eficaz
Para essa mulher que como eu
É assaz deprimida mas confiante
De que o amor existe.
O amor, o verdadeiro amor
Nunca é coisa convencional..
O verdadeiro amor está num postal
Num postal com destino incerto
Porque incertos os alvos e flechas
E tudo o de verdadeiro radiante.
Estou a escrever um postal..
Um lindo postal, com flores, com tudo o belo
É para uma Ana, para uma Joana, para uma Susana
É para alguém que se reconheça nele..
(A minha missiva será breve, mas a missão não é leve
O postal pesa quilos, o meu coração vai atracado..
O meu verdadeiro amor vai nele.
Eu *rasurado* penso que *rasurado*
Enfim, tu entendes *rasurado*
tu *rasurado* encontras-te numa espécie de galáxia e eu..
*rasurado*
*rasurado*
É muito importante que..
*rasurado*
(informação confidencial)
E assim o meu postal fez uma viagem
Ambiciosíssima e feliz
Qualquer tentativa é feliz..
E era uma parte de mim que saía
Enquanto aqui chegavam ar fresco e pensamentos,
Sentimentos de que o meu amor
Havia deixado a sua base militarmente..
Com ordens expressas para voltar.
(Fase de sentimentos
Dias, noites, dias, noites.. passam..
*rasurado* - confidencial)
Vinte e três de janeiro de dois mil e sete
Um postal chegou, três meses depois..
O meu amor, o meu amor atracado num postal, volta agora..
Instantaneamente..
Num postal que é claramente de mulher
Perfumado nas pontas, delicada e acrobatamente escrito..
Eu, tal como tu, tenho vivido *rasurado* .
As tuas palavras *rasurado* dispostas naquele papel curioso de coragem..
*rasurado*
A honestidade que *rasurado*
*rasurado* .. é uma disponibilidade sentimental que..*rasurado*
E sim, percebi que os nossos perigos
Coincidiram e..
*rasurado*
(informação muito confidencial)
O candeeiro da imaginação
As luzes apagam-se
o candeeiro da minha imaginação
não tem mais energia
Dos poemas só restam os escritos
que perdem progressivamente
a sua validade.
As ideias são todas vãs
só se mantém uma coisa vivendo-a de novo
quem consegue viver tudo de novo?
ninguém.. ninguém..
Por isso, o que somos hoje se calhar só hoje somos
amanhã somos sobras
somos a energia que sobrar
no candeeiro da nossa imaginação.
Felicidade
A felicidade estraga-me.
Principalmente quando é momentânea
Como é, aliás, quase toda a forma de felicidade.
É triste viver sabendo que nada é garantido.
É triste e cansativo não poder fechar os olhos nunca.
Ir vivendo é ir morrendo.