Poemas, frases e mensagens de poetavoador

Seleção dos poemas, frases e mensagens mais populares de poetavoador

Tu sabes deitar a noite pela boca

 
Tu sabes deitar a noite pela boca...
beijo-te.
e sabe a liberdade o pássaro que encontro
no teu corpo.

Sabes deitar a noite pela boca
aquele vagabundo é um engolidor de flores
e tu pisas a terra
e há um jardim dentro dele.

Deitar a noite pela boca
é a tua magia...
O sol é um pássaro que te levanta a alma.

Ainda é cedo
morrer com o rio
e rir com o pássaro á janela
do grito da tua boca.
Lobo•
 
Tu sabes deitar a noite pela boca

gatos entre paginas

 
De repente estalas os dedos e aparece um gato, não parece ter sido assim que apareceu o mundo, mas acredito que cada um tenha uma fórmula pessoal e credível para fazer surgir do nada ou do que se julgue mais insignificante um mistério ou algo tão prodigioso como um dia de chuva num domingo incolor. Que faria um gato num dia de chuva saído dos teus dedos trémulos andando aos ziguezagues na folha amarrotada? Sabes que essas criaturas andam nos telhados, cada um tem o corpo que o destino lhe deu ou a habilidade que mais se ajuste ao circo da vida. Há quanto tempo andas instavel, sabes o motivo que faz os gatos e os ratos e as serpentes sacudirem as pedras e tentarem aparecer no sonho dos homens? Não sabes... é estupido o que vais dizer, não acreditares no amor porque o vento levou todas as pétalas da tua flor, um caminho de espinhos parece um limite incontornavél mas se olhares o teu sorriso quanta porção de coisas importantes escondes, quanta mentira impões á tua natureza. Não creio que seja a serpente que mata, és tu que o fazes porque não sabes habitar o seu mundo, não tomas cuidado até onde podes ir e a todo o lado podes ir com precaução. A tua fantazia, toda ela dentro de uma chavena de chá, não julguem que o trabalho dos pintores, artistas e contadores de histórias, não é uma coisa séria e respeitavel, são estas coisas que fazem com que o homem não imite o leão que devora o veado. Não está comprovado se o leão come o veado por ter fome ou por não o suportar. A filosofia não é um pacote de bolachas, enquanto rezavas apareceu o gato a espreitar sorrateiramente da cortina, os gatos das folhas de papel sabem rezar, e tu abres a boca como se o mundo tivesse sido criado com espanto, que surpresas nos reservam o mundo animal, imaginas as nações unidas dos ruminantes, dos roedores, dos abutres, não sei se o mundo assim fica mais lógico mas também assim como está precisa de concerto. Mostra-me as tuas mãos, olho-as como se me olhasse a um espelho e me quizesse certificar da minha aparencia, para cada situação uma respiração, uma roupa, somos todos loucos, todos fingimos um papel, precisamos de uma certa quantidade de ego para que não seja demasiado caotica a nossa existência. Vou afirmar mais uma vez que gosto dos teus gatos, parecem-se muito aos gatos de um certo pintor catalão, gatos infantis que andam á chuva e se são pretos parece que os vamos encontrar na guerra ou no funeral da nossa avó. Tu deixas-te cair para trás, lembro-me desse exercicio teatral, tu tocavas-me o rosto, escrevias-me no rosto muito suavemente e na sala a musica do filme e a mulher de todos os homens e os homens conservadores a tentar boa impressão com a entoação banal do amor livre. Apanho-te a conversar com um gato, os dois sentados numa cadeira de palha, gostas de xadrez e de um charuto depois do jantar, estas comodidades muito bem imaginadas graças ao esforço que a pobreza provoca na nossa capacidade empreendedora. Aquele pintor que como tu, pinta estrelas e gatos e que põe bailarinas e poetas afogados no azul e no amarelo ele que vagueia ainda nas ruas, que se transforma em sete vidas, em tantas cores, muitas perguntas, tantas que vai ser difícil voar... não chores, repara no gato que está ao teu colo, podes fingir que tens a existência sentada ao teu colo, ajoelha-te e pede-lhe perdão pelos teus pecados, não permitas que a dor te tape os olhos, o sofrimento não é uma diversão, não estás na lista de espera para trabalhares como um santo no céu. Não estás no céu, nem estás numa pastelaria a mexer a massa dos bolos, nem julgueis que se deixares de ser a harmonia que há no céu e na terra, no cão e no gato, no barro que faz o criador e que lhe coze a palavra, porque a alma dos homens é um forno a lenha e sabe muito bem comer o pão no forno da alma dos homens e sabe ainda melhor rezar os salmos e ouvir os sinos na torre e tu pões as tuas mãos á volta do meu pescoço. A minha vida também precisa de concerto, a minha vida parece um armário desaparafuzado. Que achas que posso fazer? Dona Maria Das dores uma espírita encarnando a escumalha dos subúrbios, pessoa versátil em ciências e bolsos ocultos, não tem sorte com a minha desgraça, tenho o azar de ser muito pobre e a sorte de não ser, nem assim tão rico, nem assim tão estúpido. Há pessoas muito dentro das coisas, muito elevadas no saber, na consciência e na pureza da alma. Aquele que desenhar como uma criança mesmo que tenha um passado criminoso ou que ainda sejao mais feio homem das cavernas se desenhar como as crianças será curado de todas as doenças e de todas as alergias, isto também vem escrito no salmo dos gatos, na parabola do senhor aos roedores do templo. Aquele que tiver um queijo e não o dividir mesmo que o tal seja muito pequeno e a fome muito grande não será digno de uma casa limpa, viverá entre os vermes e será lançado no lixo do mundo para todo o sempre. Os roedores do templo não escutaram estas ensinanças, tinham as orelhas tapadas com bocados de queijo. Tu estás sentada perto do fogo, olhas muito fixamente para mim, queres perguntar-me algo com os olhos, depois perguntas se tenho medo de ti? És esquizofrenica paranóica, o teu marido é um pouco violento quando bebe, tu pedes-me um cigarro, digo-te que não fumo e tu mais uma vez revelas que só sabes fazer gatos e anjos e também gostas de fazer pessoas. Houve momentos que fazias os teus poemas mas a tua mão treme e tu que não sabes guiar as palavras ficas a olhar em volta como se as palavras andassem de mesa em mesa como se esse modo que tens de me olhar os olhos fosse uma história, um acontecimento, uma noticia da vida que é dos outros mas nós gostaríamos que fosse nossa porque pensamos sempre que a nossa vida é a mais vazia. Não sabemos de que coisas falam os pássaros, se eles tivessem a vida tão vazia como nós julgamos ter a nossa, nós e eles seriamos feitos da mesma conversa e da mesma rotina, nós e eles no linho dos mesmos lençóis nos deitaríamos. Certo que somos pobres, mas é mais a pobreza de o pensarmos, não nos faz bem a resignação, tu de cabeça cabisbaixa acendes uma vela, há a sombra do gato a trepar a parede, tu mostras-me os teus desenhos, num certo sentido são muito adultos, não sei explicar muito bem, pareces uma criança a tentar ser a vida demasiado responsável e no entanto eu imagino o gato dos teus desenhos ou o gato dos telhados ocupados nos seus negócios. Tu estás nua dentro da tua casa e do teu quarto, o espaço que habitas é uma roupa, vejo-te da minha janela, com os meus olhos acrescento outras linhas ás arestas que o contornam. De repente estalas os dedos e aparece um gato, não parece ter sido assim que apareceu o mundo, mas acredito que cada um tenha uma fórmula pessoal e credível para fazer surgir do nada ou do que se julgue mais insignificante um mistério ou algo tão prodigioso como um dia de chuva num domingo incolor. Que faria um gato num dia de chuva saído dos teus dedos trémulos andando aos ziguezagues na folha amarrotada? Sabes que essas criaturas andam nos telhados, cada um tem o corpo que o destino lhe deu ou a habilidade que mais se ajuste ao circo da vida. Há quanto tempo andas instável, sabes o motivo que faz os gatos e os ratos e as serpentes sacudirem as pedras e tentarem aparecer no sonho dos homens? Não sabes... é estúpido o que vais dizer, não acreditares no amor porque o vento levou todas as pétalas da tua flor, um caminho de espinhos parece um limite incontornável mas se olhares o teu sorriso quanta porção de coisas importantes escondes, quanta mentira impões á tua natureza. Não creio que seja a serpente que mata, és tu que o fazes porque não sabes habitar o seu mundo, não tomas cuidado até onde podes ir e a todo o lado podes ir com precaução. A tua fantasia, toda ela dentro de uma chávena de chá, não julguem que o trabalho dos pintores, artistas e contadores de histórias, não é uma coisa séria e respeitável, são estas coisas que fazem com que o homem não imite o leão que devora o veado. Não está comprovado se o leão come o veado por ter fome ou por não o suportar. A filosofia não é um pacote de bolachas, enquanto rezavas apareceu o gato a espreitar sorrateiramente da cortina, os gatos das folhas de papel sabem rezar, e tu abres a boca como se o mundo tivesse sido criado com espanto, que surpresas nos reservam o mundo animal, imaginas as nações unidas dos ruminantes, dos roedores, dos abutres, não sei se o mundo assim fica mais lógico mas também assim como está precisa de concerto. Mostra-me as tuas mãos, olho-as como se me olhasse a um espelho e me quisesse certificar da minha aparência, para cada situação uma respiração, uma roupa, somos todos loucos, todos fingimos um papel, precisamos de uma certa quantidade de ego para que não seja demasiado caótica a nossa existência. Vou afirmar mais uma vez que gosto dos teus gatos, parecem-se muito aos gatos de um certo pintor catalão, gatos infantis que andam á chuva e se são pretos parece que os vamos encontrar na guerra ou no funeral da nossa avó. Tu deixas-te cair para trás, lembro-me desse exercicio teatral, tu tocavas-me o rosto, escrevias-me no rosto muito suavemente e na sala a musica do filme e a mulher de todos os homens e os homens conservadores a tentar boa impressão com a entoação banal do amor livre. Apanho-te a conversar com um gato, os dois sentados numa cadeira de palha, gostas de xadrez e de um charuto depois do jantar, estas comodidades muito bem imaginadas graças ao esforço que a pobreza provoca na nossa capacidade empreendedora. Aquele pintor que como tu, pinta estrelas e gatos e que põe bailarinas e poetas afogados no azul e no amarelo ele que vagueia ainda nas ruas, que se transforma em sete vidas, em tantas cores, muitas perguntas, tantas que vai ser difícil voar... não chores, repara no gato que está ao teu colo, podes fingir que tens a existência sentada ao teu colo, ajoelha-te e pede-lhe perdão pelos teus pecados, não permitas que a dor te tape os olhos, o sofrimento não é uma diversão, não estás na lista de espera para trabalhares como um santo no céu. Não estás no céu, nem estás numa pastelaria a mexer a massa dos bolos, nem julgueis que se deixares de ser a harmonia que há no céu e na terra, no cão e no gato, no barro que faz o criador e que lhe coze a palavra, porque a alma dos homens é um forno a lenha e sabe muito bem comer o pão no forno da alma dos homens e sabe ainda melhor rezar os salmos e ouvir os sinos na torre e tu pões as tuas mãos á volta do meu pescoço. A minha vida também precisa de concerto, a minha vida parece um armário desaparafusado. Que achas que posso fazer? Dona Maria Das dores uma espírita encarnando a escumalha dos subúrbios, pessoa versátil em ciências e bolsos ocultos, não tem sorte com a minha desgraça, tenho o azar de ser muito pobre e a sorte de não ser, nem assim tão rico, nem assim tão estúpido. Há pessoas muito dentro das coisas, muito elevadas no saber, na consciência e na pureza da alma. Aquele que desenhar como uma criança mesmo que tenha um passado criminoso ou que ainda sejam mais feio homem das cavernas se desenhar como as crianças será curado de todas as doenças e de todas as alergias, isto também vem escrito no salmo dos gatos, na parábola do senhor aos roedores do templo. Aquele que tiver um queijo e não o dividir mesmo que o tal seja muito pequeno e a fome muito grande não será digno de uma casa limpa, viverá entre os vermes e será lançado no lixo do mundo para todo o sempre. Os roedores do templo não escutaram estas ensinanças, tinham as orelhas tapadas com bocados de queijo. Tu estás sentada perto do fogo, olhas muito fixamente para mim, queres perguntar-me algo com os olhos, depois perguntas se tenho medo de ti? És esquizofrenica paranóica, o teu marido é um pouco violento quando bebe, tu pedes-me um cigarro, digo-te que não fumo e tu mais uma vez revelas que só sabes fazer gatos e anjos e também gostas de fazer pessoas. Houve momentos que fazias os teus poemas mas a tua mão treme e tu que não sabes guiar as palavras ficas a olhar em volta como se as palavras andassem de mesa em mesa como se esse modo que tens de me olhar os olhos fosse uma história, um acontecimento, uma noticia da vida que é dos outros mas nós gostaríamos que fosse nossa porque pensamos sempre que a nossa vida é a mais vazia. Não sabemos de que coisas falam os pássaros, se eles tivessem a vida tão vazia como nós julgamos ter a nossa, nós e eles seriamos feitos da mesma conversa e da mesma rotina, nós e eles no linho dos mesmos lençóis nos deitaríamos. Certo que somos pobres, mas é mais a pobreza de o pensarmos, não nos faz bem a resignação, tu de cabeça cabisbaixa acendes uma vela, há a sombra do gato a trepar a parede, tu mostras-me os teus desenhos, num certo sentido são muito adultos, não sei explicar muito bem, pareces uma criança a tentar ser a vida demasiado responsável e no entanto eu imagino o gato dos teus desenhos ou o gato dos telhados ocupados nos seus negócios. Tu estás nua dentro da tua casa e do teu quarto, o espaço que habitas é uma roupa, vejo-te da minha janela, com os meus olhos acrescento outras linhas ás arestas que o contornam. Outro dia houve uma inundação na rua onde moras, moras num bairro judeu, és a única negra que lá habita, a tua avó costuma dizer que os Judeus cheiram a dinheiro, a tua avó sabe das vidas dos que emigraram para o continente Americano, das coisas que houve faz uma história de encantar, as partes tristes ficam na emoção acentuada das palavras, nem sempre essas palavras são verdadeiras, mas a poesia também é subjectiva como os teus gatos na folha de papel,os gatos no discurso politico, nas conversas antigas de namoro á janela. Os teus pensamentos, a importância pessoal deles é que seguram os teus pés, não vais ficar em desconforto, precisas de uma estrutura na tua vida, de uma convicção que sustente a tua razão como os ossos que não deixam cair o teu corpo. Tu tens de afirmar a tua verdade pessoal, tens de vencer essa angustia, quando estás angustiada vestes um personagem sem papel, tu pareces um gato com muitas vidas, tu não consegues tomar conta desse barco. Que é o amor? Não sei se o barco levou o amor, não sei se abris-te as mãos e fizes-te de propósito para ele fugir. Gritas, os teus pulmões estão cheios, as guerras duram há tanto tempo e tu ainda não encontras-te a expressão adequada para a tua revolta. Ela pensa que é um anjo; Na verdade ser se anjo não é doença nenhuma. A doença do mundo é haver falta de de sonhos, de paixões fortes, de enganos tão absolutos como verdades sem discussão. Não quero discutir se és um anjo, não é por isso que vou deixar de guardar o melhor gosto, nunca se sabe quanto tempo fica, ter algum poder é melhor que não tentar nada. Ela declarou-me o seu amor impossível. Estava preocupada. Perguntei-lhe se tomava os medicamentos, reparei que estava com muito medo, tomou a minha mão, com a outra desenhou na folha do caderno um anjo.
o nosso amor vai ter de acabar! Estas foram as suas palavras, havia nelas uma entoação triste. ela perguntou-me o que pensava eu da maldade humana? Não tenho respostas para me vestir, fica a saber que eu não sou uma máquina, não serve de nada ficar na margem e não ter uma onda forte, também preciso de quem leia o meu grito. O amor tem a porta aberta ou o amor é a direcção que eu ainda não tenho. Quero muito aprender, não faz mal se tu renunciares, há muito tempo que preciso de renunciar a certos gostos que não me ficam na língua que isso me vai fazer sentir mais em união. Existem os paraísos do engano, os que proclamam a verdade absoluta ou o amor eterno, afirmar que não nos vamos perder, que tudo está garantido... e que espaço ainda fica para sermos livres, vai embora, ter-te conhecido foi uma armadilha, ameaçaram-me de morte e eu sei agora que a solidão é uma protecção, fica longe, não quero mais os teus gatos e os teus anjos, vou subir na árvore e ficar anónimo. Regressei ao meu estado solitário, as linhas que escrevo não são para ti. Olho as mães que levam as crianças á creche e que as esquecem. Cheira a pão e a pneus queimados. Penso na colorida praça de Palermo e nos juízes mortos pela máfia, há criminosos mortos sem distinção. Vai-te embora, não sou o Cristo das tuas visões... não vou deixar que me leves á praça publica, agora vou ficar tomando atenção ao céu. Oiço o galo cantar e em procissão passa o meu corpo e eu sigo o meu corpo e o vento que lhe sopra. A rapariga do cinema está no cortejo, tudo parece um filme, sou um ser anónimo e é uma sensação sem definição certa. Vou sentar-me no chão, por mim passa o homem cego e o cão, passa uma fila de ciclistas e as mulheres da vida perfiladas no passeio, não quero saber de nada, não há nada pior que um crime misturado com a chuva, voltar a nascer tem de ser uma coisa muito bem pensada, é melhor ficar por aqui, não pretendo ficar conhecido, a minha fotografia no jornal não gostaria de ver, sou um ser invisível, hei-de ter o meu lugar na rua e na mesa, hei-de ter o meu lugar nos sonhos e nas aspirações. Vou merecer um amor digno... Nos dias em que não apetece vou deixar-me ir. A poesia acontece assim, fria como um fio de navalha. É possível fugir, você quer resolver esse enigma, não causa espanto a sujidade dessas almas. Como são pobres os que habitam a aldeia do lugar comum. É verdade que uma pessoa nunca se prepara e por isso a morte chega sem avisar. Nós somos como as vacas levadas ao matadouro, no momento em que descobrimos o melhor pasto há-de haver uma faca a esquartejar-nos. Você insiste na mesma pergunta: Se acredito no amor, o amor é como o gato que pode cair do telhado. Olhe parece que inventei um proverbio, fique sabendo que as minhas duvidas são do tamanho de um monte de palha, você acende um fosforo e arde tudo

lobo 07
 
gatos entre paginas

Maria Puta de Lisboa

 
Maria puta de Lisboa
Estou a pensar que significa voltar a ver-te, sempre te encontro quando chove e o fumo do café se parece a um génio. Apetece-me chorar e não sei porque o faço. É me indiferente as gotas de limão que usas ou o golpe que fazes nas veias para que me comova da tua solidão. Agora eu finjo, todas as formas de teatro me foram úteis para ficar nas ruas onde me vendia. A minha família desejava que a minha vida fosse tão imaculada como um cu virgem. Estou a pensar que tu não podias ficar, a mentira faz mexer os pés. Os livros mentem, as obras de arte também e eu levanto o tampo da sanita e cago esta presunção de festas com champanhe e os prémios dos escritores importantes. Estou a pensar que todos os dias vêem Deus e eu pergunto-lhe como se lhe perguntasse as horas, se ele gosta das putas, se ele ama as putas acima de todas as coisas. Estou aqui embrulhada em histórias fingidas, pensei consultar um psicólogo, eu Maria, natural de Bragança, violência no corpo e na memória, não tenho filhos, não tenho homem e aqui estou a contar esta minha odisseia a que dei o nome, Maria puta de Lisboa.

Acabei de chegar á capital, na terra de onde venho o trabalho é pouco e o senhor Januário prometeu-me um lugar de corista no teatro, para ele eu era um talento de corpinho feito, ele dava ares de muitos conhecimentos, conhecia ministros jogadores de futebol e passado quase um ano divido um velho quarto com um travesti, a Rosário que é sero positiva e dá á força toda no cavalo. Atirada á rua ganho a vida a fazer broches dentro de ferraris e outros carros de marca, ás terças feiras canto o fado vadio numa taberna, o senhor Januário, o chulo, dizia que eu havia de ser o orgulho de minha mãe. Na taberna onde canto o tal de fado vadio conheci um poetas que quer escrever para mim, ele é um velho doce. Eu não sei o que ele escreve, mas se o que ele escreve for o sorriso dele vou gostar do que escreve. Na estante do meu quarto tenho alguns livros. Só não gosto de livros católicos, as igrejas só servem para dormir; quando olho a virgem que tem o meu nome e vejo as pessoas a darem-lhe moedas, digo-lhe que na rua ganhava mais e que o pecado é uma treta, basta fechar os olhos e tudo se converte em virtude. Pego na mala e apanho um táxi, estou no ano de 89 da janela do táxi vejo uma carrinha da policia com putas lá dentro, muitas vezes me encontrei na mesma situação, sentia-me uma vaca dentro de uma camioneta, sinto os pés doridos, peço para parar uns minutos numa farmácia, o empregado parece um alfaiate a tirar-me as medidas.
- Que quer?
– Tenho os pés doridos.
- Aqui tem.
- Quanto é?
– 250 escudos.
Depois volto para o táxi e passados uns minutos estou em casa. O prédio é velho e cheira a mijo de rato. A entrada não tem luz por isso subo as escadas com cuidado, acendo o isqueiro e vejo restos de seringas espalhadas, Rosário está na casa de banho a cortar o cabelo, houvesse uma musica flamenca, a voz de camaron da ilha.
- Há café grita-me ela
– vou para a cama.
- Estás bem?!
– sim e tu?
fiz dinheiro para a dose e para os cigarros.
- Amanha é dia de pagar a renda.
- Eu sei antes de sair deixa a minha parte debaixo da porta do teu quarto.
- Está bem, até amanha.
Rosário costuma ir ao domingo ao cemitério, diz que ai tomar chá com a alma da sua avó.
- Ó rosário as almas não bebem chá.
- Se cheiram incenso porque não podem beber chá.
- Não se pode fazer nada com os mortos.
´- Só morre aquilo de que não se gosta.
- E que coisas morreram para ti?
– sei lá eu!
– bem vamos abrir uma garrafa.
- Vamos beber o sangue das nossas vidas.
- Á saúde
– á saúde.

Rosário por causa da sua doença se encontrar nas últimas teve de ser internada, eu mudei de casa, uma assistente social arranjou-me um trabalho de recepcionista na santa casa da misericórdia. Agora moro numa casa com quintal, moro eu e o meu gato. Ontem recebi uma carta da minha mãe, como pensa que eu trabalho no teatro pede que lhe envie entradas para ir ver a revista, eu escrevo que vou viajar, que vou em tournée, mas prometo-lhe que quando regressar lhe ofereço as entradas. Ofereço-lhe também um estojo de beleza. Na última carta contava-me que o meu pai lhe batia, não conseguia parar de beber. O pai de rosário também batia na mãe e quando esta era pequena por diversas vezes a tinha violado. Faz uma semana que ela morreu. Agora imagino que está a beber chá com a alma da sua avó, ontem enquanto escutava a musica do amolador vinha-me ao pensamento que a morte tem a musica da chuva, pensar isto não aquece o coração, se ela agora aqui estivesse tentaríamos recomeçar. Ou talvez seja uma desculpa para se fugir aquilo que tinha de ser vivido, rosário tu nunca amas-te ninguém, mas também nunca foste amada por ninguém ou não houve tempo para que descobrisses as coisas que demoram tempo. Penso ter-te conhecido bem, mas não estive na tua pele, as nossa dores são coisas muito nossas e não existem medidores capazes. Podia escrever-te uma carta, mas não há o correio das almas. Tenho o gato sobre o meu colo, limpo uma pequena lágrima ao seu pelo e fico quieta como se eu fosse ele e o mundo tivesse parado. A nossa vida é um muro branco que apetece sujar ou simplesmente tornar o seu aspecto uma coisa mais autentica do que era antes, podemos imaginar um homem de fato branco, um tipo como o senhor Januário que está podre e parece casto nas finas maneiras de se insinuar no primeiro encontro, ele está filiado num partido de direita, tudo o que foi construído ilegal, toda a sua riqueza pessoal se fez na angariação de mulheres e no tráfico de droga. Agora veio a lume o seu envolvimento no lado escuro do futebol. O senhor Januário terá sempre a protecção dos seus padrinhos, a família politica não o vai deixar cair em desgraça. Ninguém está limpo, eu tento recomeçar, não é sempre por motivos pesados que vamos parar aquilo que outros adjectivam de pior. O pior pode ser a moral, a religião, o pior pode ser não se conhecer o lado escuro e levar-se com luz demasiado forte nos olhos. Agora me lembrei que são poucos ou nenhuns os retratos de infância, parece que o vento leva a infância como leva os papeis do chão, parece que leva as roupas do corpo, o gato parece que me percebe, ele é o meu homem, o meu amor verdadeiro, imagino que espalha a cinza da lareira sobre os meus cabelos, parece um ritual ortodoxo, finjo que sou a madalena apedrejada nos prédios e nos centros comerciais e que ele é um Cristo ágil se escapando para os telhados perdoando aos homens que caem na tentação de representarem demasiado bem o amor. O meu trabalho decorre normal, costumo encontrar por perto o velho poeta, costumamos conversar um pouco, as nossas conversas são o assunto dele que é a poesia, fala-me do luís Pacheco que é um poeta surrealista que anda a comer dos caixotes do lixo e que é o poeta mais puta de Lisboa, ele e o cesariny são todos a melhor puta de poesia. Conto-lhe que ás vezes escreve, o meu sonho era o teatro e ele elogia-me a voz, que tenho uma garganta de água tão cristalina como a garganta do sol. Eu desato a rir e bebo o meu café. Olho a rua e lembro-me que tenho de passar pela mercearia da rosa e comprar comida para o gato. O velho poeta olha-me e toca-me as mãos e parece que acrescenta vida, vida verdadeira aos anos que julgava ter perdido, tenho umas rugas mas sinto-me bonita, quando recordo certas passagens penso que foi um comboio rápido que passou e a memória parece uma árvore que caminha e depois desaparece. Não sei se tu acreditas no amor, é preciso não recusar a entrada do sol, a minha mãe parece a figura em forma de escuridão. Não é capaz de uma lágrima, não sabe fazer um sorriso verdadeiro, podia convida-la a passar aqui uns dias, mas estar com ela ainda vai representar muita tralha de vida que não gostaria de voltar a confrontar, não queria velhos ódios. Quando eu resolver vou visitá-la ou envio-lhe dinheiro. Seja como for não queria insistir na tentativa de me sentar á mesa fingindo a madalena bem comportada da sagrada família. A ideia de ter contas a ajustar foi a muito. O amor não se fabrica, isto não o posso dizer á minha mãe, parece que estar aqui, ter família, enfim faça-se o que se fizer tenha-se o que se tiver é da nossa responsabilidade. Podia dizer que cada um tem de pagar as suas contas, mas a indiferença é uma conta elevada, fingir que os outros não existem, que as nossas questões são só nossas torna mais agudas as nossas dores, vou tentar não magoar a minha mãe, tentar não representar demasiado bem. Vou preparar uma comida rápida e vou sair onde há uma feira do livro, vou caminhar um pouco a pé, outro dia passei por um padre, depois ele entrou no elevador e eu disse para mim que era só carregar no botão e estava no céu, ele tinha um ar bastante conservador, se calhar pensa que os elevadores são obra do diabo, eu estava com vontade de me despir á frente dele, de o provocar, a tentação também está num elevador, o padre parece que tem trinta anos, é magro de cara, uma cara de palerma, se eu fosse o Cristo havia de cair da cruz de tanto rir. Agora vou arrumar um pouco a casa, é mais difícil arrumar a vida, fiz um arranha céu de loiça, tantos os dias que fiquei sem vontade de arrumar ou lavar, a vantagem de viver sozinha ou a desvantagem, quero contar-vos que o poeta me tem feito propostas de casamento, não de um modo directo mas dá a entender, eu já tive muitos homens e ás vezes não sei se há muita diferença entre ser-se puta ou ser-se domestica, parece que somos todos grandes putas. Até tu digo eu ao meu gato. Se eu escrevesse um livro podia ser sobre a prostituição no reino animal. Vou pois arrumar a casa. Depois ponho-me a dormir, o gato costuma adormecer comigo, imagino ele a ter os meus sonhos e eu os dele, eu a ter os sonhos dele vou andar a cheirar a peixe e ele vai cheirar a puta, um gato a cheirar a puta. Ainda estou a pensar no velho poeta, vou encontrar-me com ele e se ele falar embora disfarçadamente em casamento vai ficar a saber que sofro de uma doença incurável que faz os homens infelizes. Ainda tenho uma alma de puta, não é pelo dinheiro dos homens, é pelos segredos deles, na cama apanham-se muitos segredos de estado, o casamento é uma regra e eu quero dar-me selvagem, perceber a mentira e a ilusão dos homens. Sei que exagero em relação aos homens, sei que quando nós mulheres nos demoramos com eles, quando permitimos que saia de dentro deles aquele orgulho de nos conquistarem como quem conquista o mundo, acho que as mulheres são conquistadas pela solidão deles. Lembro-me de um cliente meu que pagava para falar da mulher e dos seus dois filhos, dizia que amava tanto a mulher que não a conseguia tocar, fizera com ela amor apenas duas vezes, depois pagava pela conversa e pelo sexo, outro dia vi-o de longe, estava com a mulher e os filhos, as crianças eram bonitas, penso que eram felizes, naquele dia fazia muito sol, ouvi-as gritar e parece que aquela vida se misturava no brilho do sol, era o sol a gritar com a vida, a pedir mais uns sorrisos, mais uma réstia de vontade. Olho á minha volta, parece que o rio afunda o passado, parece que me apetece uma sinfonia e que uma profunda tristeza é o vicio dos dias. Faz meses que a rosário morreu, de seu verdadeiro nome Alberto, ainda tenho na minha mala de mão alem do verniz e do batom uma fotografia dela, sei que quando a mesma foi tirada tinha 14 anos, está vestido com uma saia escocesa e parece que tem na expressão dos olhos vontade de dançar, quando era criança andou a aprender ballet com uma professora russa, como a família não tinha muitos recursos, uma senhora pagava-lhe as aulas, passados uns dias a senhora foi atropelada e o ballet ficou esmagado nas rodas de um carro. Quero eu dizer, atropelou-se uma grande oportunidade ou quem sabe a sua vida não seria o que tinha de ser, rosário tu eras uma pobre e já te imagino a dançares em pontas com o desequilíbrio do mundo. Agora raras vezes encontro o velho poeta, ás vezes está sentado nas escadas da basílica da estrela, anda sempre com um caderno, já tentei ler a sua letra, parece caligrafia de médico, disse-me que esteve para estudar medicina, pensou ser médico dos olhos, confidenciou-me que gosta de olhos azuis, que gostava de ser o médico do mar e de tratar os olhos azuis do mar quando lhe aparecesse a doença da tempestade. Eu fico a olhá-lo, parece que os poetas são pessoas difíceis, as palavras não são simples como as raízes que ficam na terra e dão sem explicação flores á disposição dos nossos olhos, despeço-me dele e apanho o eléctrico, vou descendo a rua e reparo no fumo que sai de uma chaminés, parece a fábrica das nuvens, se calhar vai chover, depois fecho os olhos e adormeço um instante. A cidade movesse em mim tão íntima e indiferente como as palavras fora dos livros e das pessoas. O poeta acena-me o acenar das suas mãos ondulam como asas e eu dou uma gargalhada e o mundo interior ri e desato a chorar. Era como se tudo aquilo que tentasse reconstruir desabasse, acho que não quero reconstruir coisa nenhuma, acho que não quero voltar ao começo, sempre que me apaixono, sempre que penso em alguém, sempre que fecho os olhos vejo mais nítido dentro de mim e ao mesmo tempo não percebo nada. Escrevo-te esta carta, na verdade ainda é um rascunho, o cesto dos papéis tem outras, parece que são bocados de vidas rasgadas, rasgadas mas não apagadas, a memória é uma doença que não se cura. Ontem lembrei-me daquela tarde de Maio em que tentei o suicídio, lembro-me de ouvir a rosário contar que me fez beber azeite e que depois até parecia que tinha vomitado a criação, devo ter expulsado muitos demónios. O velho poeta quando lhe contei esta passagem da minha vida diz que a morte faz subir a febre á vida, eu penso que morrer é uma fuga, pelo menos aquela encenada pelas nossa vontade. Sei que não tenho respostas, sei que do outro lado não existem segredos desvendados, filosofias á parte é dentro de ti e de mim para o mal e para o bem. Eu Maria, nascida em Bragança, te dedico estas palavras e um dia se nos encontrar-mos vamos lembrar ou vamos esquecer, ou fazer o que for melhor para que o chão não nos puxe os pés•
lobo 05
 
Maria Puta de Lisboa

Quando te pões absoluta aos meus pés

 
Quando te pões absoluta aos meus pés
O que é que entra nos olhos, o que é que adormece e o que é que desperta. Há muito tempo havia uma lua mais brilhante que as outras luas, tu tinhas a mão sobre um corpo adormecido e o poema era uma estrela a flutuar na água desse corpo pássaro vagabundo e pobre.
O que é que entra nos olhos, o que é que adormece e o que é que desperta. Depois da morte ainda se pode voar, ainda a terra tem o fogo e os lábios o beijo guardado para os guerreiros. O que é que entra nos olhos, o que é que tu respiras quando me amas, quando te pões absoluta aos meus pés.
Lobo 06
 
Quando te pões absoluta aos meus pés

Os esquecidos da terra

 
Os esquecidos da terra

As ruas que se esquecem

ou os esquecidos da terra

As aves que voam e os homens prostrados na indiferença de outros.



Tu nunca saberás o quanto eu preciso que me olhes...a certeza nunca será suficiente para deixar de morrer.

Não sei se olhando o mar terei a sua força, olha para ele, repara no que falta para o amor verdadeiro preencher a solidão das palavras húmidas.

As ruas que se esquecem

ou os esquecidos da terra.

Tu nunca saberás o quanto eu preciso

dessa tua incompreensão.



É por esse caminho que chegamos

ou são os nossos braços apertados

como o universo dentro do nosso corpo.



lobo 07
 
Os esquecidos da terra

Agora que me ponho sol

 
Agora que me ponho sol
Agora que me visto e que me ponho sol
agora que me sinto rio e me finjo de nuvem
Agora que me ouves e que te oiço e que o coração tem agua tão profunda
como se fosse um poço.
Agora que me sinto perdido e sou mesmo assim o sentido de ser o irmão de todo o universo.

Agora que me visto e que me ponho sol
agora que pões batom nos lábios e lês os livros sábios para não chorares de solidão

Agora que me ouves e te oiço e que as palavras não são nada depois de se dormir.

Agora que nos sentimos tão de perto e caminhamos longe como se a vida fosse outro projecto outra direcção.
Agora que estamos e somos o que sentimos e o que criamos.

Agora que nos damos quando não temos nada
agora que a nossa liberdade é um grão pequeno e o amor é tão grande numa mão fechada

Agora que me visto e que me ponho sol
agora que sorris e que choras e que tocas acordeão para imitar a primavera

Agora que bebes o vinho e cheiras a roupa dos poetas
Agora que me sentes e que me sinto
agora que o corpo me cansa e a lua me abandona
Agora que tu estás e nós seguimos de viagem

Agora que nos abraçamos quando as palavras não são nada

Agora que nos sentimos e temos confiança
havemos de ter o mar para nos guardar

Agora que este verso não rima e eu te o dedico como se fosse mel

Agora que me deslumbras mesmo sem luz

Agora que somos natureza e somos nus

Agora que me visto e que me ponho sol

Agora que me sinto rio e me finjo de nuvem

Agora que não há perfume e que os olhos são suaves

Agora que este verso não rima e tu escreves na alma como se não houvesse tempo nem agua para humedeceres os olhos.

Agora que o rio caminha nos homens como o Deus agua no deserto dos olhos

Agora que estamos perto e caminhamos longe

agora que nos damos e não temos nada e que mesmo assim possuímos o tesouro de ter um coração a bater

Agora que me visto e que me ponho sol

Agora que me sinto rio e beijo o teu rosto de nuvem

me sinto abençoado como os pássaros que zelam as arvores.

Agora que me visto e te espero como se fosse a noite sem segredos

Agora que tenho medo da solidão e desespero de ter sede de beber amigos

Agora que estou contigo e somos sem compromisso e sem lei

Agora que os meus olhos te querem e te choram

Agora que estamos amigos e que nos vestimos de sol se a noite nos abandonar.

Agora que nos deslumbramos mesmo sem luz.

Escrito em canhos de Meca e dedicado a Cláudia

lobo 06
 
Agora que me ponho sol

As tuas mãos na parede do quarto

 
Fechas os olhos. As tuas mãos na parede do quarto como a tapar os olhos do mundo. A aranha olha os olhos penetrantes do gato, tu preguiçosamente ergues o livro, escolhes um poema e lês num mastigar de batatas fritas com óleo. Estás a fazer as malas, arrumas tudo, até a água do mar se coubesse. Vamos os dois numa viagem de sonho, espero que não seja uma viagem de sonho e o preço de pesadelo. Estás muito bonita, tens o fecho do vestido desabotoado, gosto do movimento de desabotoar, é o movimento de fazer voar os dedos nas tuas costas, elas são estreitas como montanhas.
- Encontrei uma foto!
- Uma foto?!
- Da minha caixa de chocolates.
Era uma marca de chocolates do tempo da busca do ouro na América, se no mar a profundeza fosse chocolate, quem sabe se isso não seria o petróleo da fantasia.
Arrumas tudo a uma velocidade que parece estarmos numa cena de um filme mudo. Está a chover, daqui a duas horas parte o nosso avião, dás os últimos retoques nos olhos, pões os braços á volta da minha cintura e exclamas que o amor é uma ilha.
Estamos na gare de embarque, na minha cabeça surge uma canção nostálgica, o aeroporto não é um cabaret mas eu imagino que as canções tristes fazem voar a alma.
- Achas que a alma dos Franceses é triste pergunta ela?
- As almas são todas iguais – não são todas iguais, há quem não tenha alma, ou tenha uma alma desfeita pela chuva. Tu aproximas os teus lábios, tocam-se e parece que podia ter sido assim o despontar da natureza. Entramos no avião, se aquele momento não fosse a conquista do mundo... tu olhas os meus olhos, parece que vês um filme, olhas-me fixamente, pergunto-te o que vês?! As montanhas respondes tu passando os dedos por cima deles.
- Por cima da montanha dos teus olhos uma alma solitária.
 
As tuas mãos na parede do quarto

Vamos começar no vicio

 
Vamos começar no vício
antes de começar no corpo

E vamos antes fazer o escuro
antes de acontecer o precipício.

E do escuro e do precipício
Fazer o princípio da fórmula do amor no corpo

Vamos começar no vício
antes de começar no corpo.

Fazer a ferida antes do prazer
e a maresia antes da vida.

Vamos fazer o vício na margem dos olhos e os olhos depois do ritual.

Vamos começar no vício antes de começar no corpo e vamos fazer no eu antes de começar no outro.

Vamos fazer o vício
antes de ficar perdição. E vamos começar no corpo
antes que seja mar.

Vamos fazer no escuro
antes que seja humano. E vamos começar no concreto antes que seja plano.

Vamos começar no vício antes de começar no corpo.

Lobo 05
 
Vamos começar no vicio

Agora estamos apagados.

 
Agora estamos apagados. O rio ou a ave do céu tem a nossa memória, é o silêncio que guarda a nossa fotografia, nós estamos na praça, um cravo no cano da espingarda e o grito mais livre de todos os tempos. Tu olhavas os meus olhos, sabias todas as canções e de punho erguido afirmavas o pão nosso de cada dia, novas palavras para os livros, a esperança de desejar os filhos, o nosso trabalho era como o nosso amor, o calor da terra que semeamos, o mar que mexemos como os nossos dedos entre os cabelos. Há quanto tempo... olhas o retrato amarelecido, um amarelo dedos de cigarro e lá está o teu jovem filho e tu imaginas que está a sangrar, estás por dentro daquela agonia, o teu filho era livre, todos somos livres quando temos o trabalho da poesia dentro de nós. Não tens respostas mas podes inventar perguntas acerca do que vem depois da morte. Tu vestes o teu filho de pássaro mas sabes que ele é apenas homem, um homem morto numa guerra e em todas as guerras tens um pretexto para não deixares fugir a vida, a tua vida ou a vida de cada um de nós não é apenas o nosso corpo, as coisas em nós bichos e flores. Tens febre, um calor de peste e de lixo. O LSD não está na tua colecção farmacêutica, o médico receitou-te uma caixa, apagas-te vestígios do Vietname, da guerra colonial, a tua caixa de musica, facas que cortam... onde fica o mundo melhor?! Perdeste um filho e a natureza perde litros de sangue e tu espumas da boca. Não era espumante Francês essas gotas nos lábios houve uma revolução no teu corpo, o teu corpo e a terra parecem a mesma matéria, não foi só por causa da miséria também a solidão te fez quebrar certos conformismos, não podemos ser espectadores da morte dos outros, da vida que já não vivem, essa tua pele queimada dos dias em que o trabalho do campo parecia uma eternidade dos infernos, andavas com dores no corpo, uma dor quando te baixas-te para apanhar aquela carta. Debaixo da tua saia passou o vento, o vento também tem olhos, também diz indecências. Tu não sabes explicar o teu sofrimento, sempre sofreste calada, quando o teu homem te despia parecias uma flor a ser desfolhada, brutalmente como se tu e a terra servissem para o mesmo, olhas o quarto do teu filho, um prato vazio na mesa, parece que o cheiro dele ficou nas tuas roupas. A tua tragédia é esse vazio que como um espaço de corda se pendura em ti, um peso grande que sufoca. Este novo tempo que tens agora ao dispor, esta liberdade de pessoas a sair das prisões e o medo a sair das casas, esse tempo conjugado no teu momento de despertar, estamos todos adormecidos, a revolução trouxe de volta uma essência condicionada, a infância no estado animal e puro, o caminho da liberdade selvagem, o lado imoral e impuro. A tua tragédia é esse vazio que como um espaço de corda se pendura em ti, um peso grande que sufoca, este novo tempo que tens agora ao dispor, esta nova liberdade de pessoas a sair das prisões, o medo a sair das casas, o tempo conjugado no teu momento de despertar. Estamos todos adormecidos, a revolução trouxe de volta uma essência condicionada, a infância no estado animal e puro, o caminho da liberdade selvagem, o lado imoral e impuro, é preciso ir ao fundo, transportando e recusando todo o passado para trazer à superfície um sentido primordial. Tu estás ainda suja de culpa, no teu ventre há um corpo conformado, um corpo que não grita que não deseja sair para a luz. O teu animal feito de gestos imediatos ainda não se soltou. Quando soubeste da morte do teu filho estavas cheia de vinho, depois esperneaste como uma égua, planando sobre os teus olhos um fumo, uma visão de Hiroxima, o período azul de Picasso. Tu és uma camponesa, a poesia é uma camponesa como tu mas mais esclarecida nas suas dores. Agora sentes que não foi só um filho que te mataram, aquela esperança de que todos somos iguais, donos da nossa vida, do nosso pão, do nosso corpo, tu que no fundo do teu ser sabes o caminho, esse caminho que é o amor por mais que te indiquem a resignação, o fatalismo fabricado pela religião.
Lobo
 
Agora estamos apagados.

Nas tuas mãos

 
Nas tuas mãos

As palavras não servem o corpo. Não existem deuses , nem criaturas nuas com as roupas espalhadas no dorso dos cavalos. Não esperes a perfuração da faca nos olhos do tempo, nem tragas gestos demasiado simples para o fogo da espera. Haverá outro caminho, lábios cerrados para legitimar a terra, ela e os homens o mesmo cansaço, a mesma lua sobre os telhados, a musica comum do que estão aprendendo a conhecer-se.

Lobo
 
Nas tuas mãos

A ultima ceia do marinheiro de Veneza

 
Trago-te aos pés o cansaço, também com os olhos se observa a viagem que a morte faz. Tu escutas o movimento da máquina de costura, na tua cabeça, na tua memória de infância parece o cavalo de ferro. O teu pai está deitado, parece que tem os olhos vazios colados ao tecto, tu imaginas que as sombras no quarto são uma banda desenhada. Sais do quarto e fumas um cigarro, aquele fumo é a alma dele, não tens boas recordações, tu parecias um peixe fresco cheio de sangue a flutuar nas paredes do quarto. Agora não estás por aqui, encontras-te uma árvore que num dia de nevoeiro e sob o efeito de calmantes te recebeu de braços abertos, ias ao volante de um carro comprado em segunda mão. Não sei o que viste naquele momento! Nas nuvens cinzentas por de trás das montanhas ficava o colégio católico. A vida apagava-se como se tinha apagado o ar severo do teu pai. Naquele lugar soprou um vento de tal modo forte, que a revista de banda desenhada que estava no banco traseiro voo para a rua. A tua alma levava os olhos do marinheiro de Veneza, tu gostavas que fosse ele o teu pai, que tivesse havido tempo para o recomeço. Nunca te contaram uma história, nunca te deram um beijo verdadeiramente molhado e verdadeiramente profundo. Foi muito demorado o tempo que os bombeiros levaram a chegar ao local, o sol era muito forte, com muito cuidado pegaram no teu corpo, não era o momento mas o marinheiro apareceu-te. Tinhas receio de lhe dares as mãos porque estavam frias. O som do mar e o aroma da comida árabe chegou-te ás narinas. Estavas morta, não sentias nada, ou sentias que era a primeira vez que voavas na vida. O teu marinheiro tinha a barba de uma semana, com as tuas mãos de morta não é possível sentires a sua pele escarpada como a rocha. Tu não te queres encontrar com o teu pai, a tua alma podia ficar sentada nas dunas e tu de olhos muito fechados andas-te em volta do mercado, entras-te invisível no café do alfarrabista, não era o vento, era o vento a desfolhar o livro dos piratas, ainda havia o cheiro da agua ardente no ar das Caraíbas. A atmosfera da cidade era de um cinzento pálido como se a cidade fosse uma actriz a maquiar-se e a esconder-se atrás de uma cortina de intrigas. Olhas-te as nuvens, como seria o céu se fosse um livro de banda desenhada, seria possível falar com Deus sobre banda desenhada?! Tu olhas-te o fumo que saia da fábrica, parecia o bule onde a coruja bebe o seu chá, o marinheiro de Veneza contou que é preciso cuidado com os chás, tem de ser bem fervidos para que nenhum pedaço de aventura caia no precipício da angustia, o louco Rapustine com o gume da sua faca está á espreita para desferir o golpe no momento em que te sentires segura, ele está escondido com o pé na linha da primavera a recitar o alcorão. O teu pai tem muitas formas, tu o associaste ao louco Rapustine, achas que o teu pai inventou a máquina de matar a infância. Queres descer á terra, ouvir o grito único e implacável da vida no ventre a dizer que te ama, do teu filho a chorar quando lhe batias como se bate na vida que não tivemos. E tu ouves a balada do mar salgado, que coisa estranha estar-se perdido no meio das nuvens, tu te sentarás na mesa da última ceia ao lado de Maria Madalena, o teu marinheiro de Veneza partilhando o pão e o vinho. Quem é que sabe do encontro de Cristo com corto maltese?! Aparentemente não há frio nem calor, o teu marinheiro desceu das nuvens como o profeta que vê para além das montanhas. Os desejos da alma misturam-se com os desejos do corpo. Tens saudades do teu vinho. O professor inexistência fuma o seu cachimbo de ópio e tu de repente te apercebes que não tens roupa. O teu marinheiro sorri, tu não tens um espelho á mão, passa por ali uma legião de anjos super heróis: O mágico madrake, o fantasma, a miss Marple, a Lúcia, a madre Teresa e Alcapone carregando uma cruz. Gostavas que te oferecessem uma caixa de chocolates, pintarias a cara cor de terra, depois sentavas-te a desfolhar a aventura do escorpião do deserto. Há uma criança magra e um cão, a mãe do teu herói é uma cigana de Malta, tu lês as mãos a essa criança, ela abandona a tua imaginação e tu entras por uma porta, não vais encontrar o monstro se não o fabricares. Durante a ceia conversou-se sobre aquele penalty duvidoso, Maria Madalena disse que os pastéis de nata estavam pouco doces e o gordo obelix pediu água benta para borrifar o javali. Tu olhas-te para eles e ao mesmo tempo para os esboços de Leonardo um pintor muito conhecido do grande público. O teu marinheiro descalçou os sapatos e tu e ele dançaram em cima da mesa e tu rodaste a saia que bateu ao de leve na jarra do vinho sujando a toalha de linho. O teu marinheiro cheirou-te os pés, o velho Leonardo continuava a pintar e o gordo obelix continuava a trincar a sua perna de frango sob o olhar reprovador de alguns, pois que era sexta-feira santa. Tu de repente reparas-te que eras a única que estava nua, ninguém sabia da tua presença, Maria madalena roía as unhas e tinha umas conversas fúteis, a moda de Paris e o cheiro dos queijos italianos, parecia que aquele lugar era uma representação falsa do céu ou na catequese tinham-te enganado. Estavas sentada na atmosfera, não sabias para onde iam os heróis da banda desenhada quando morriam e agora vias o celebre repórter tintim a baptizar o seu cão milu na água da chuva e o celebre cowboy da tua infância a disparar estrelas da sua pistola. Com a mão afastas-te uma nuvem negra, parecia ter patas, podia ser uma formiga e tu pensaste em trabalho e também em coisas doces e debaixo das patas dessa nuvem formiga contemplas-te o mar azul como os olhos de coleóptera. Tu olhas o mar e tentas o desequilíbrio para a terra. Acordas! A espreitar á janela a fumar o seu cachimbo de ervas aromáticas está o capitão relâmpago, parece que é a tua primeira vida, apetece-te ir á lua, comer javali e ter ao teu lado o enigmático sorriso do marinheiro de Veneza.
lobo 07
 
A ultima ceia do marinheiro de Veneza

Os poetas da chuva

 
Os poetas da chuva
que bebem o silêncio amargo como sangue
ás vezes bebem a noite
dentro do corpo dos homens pobres.

Escrevem poemas na lama da terra
são peregrinos de caminhos desertos
e deserta também a palavra
do amor que não cantam mais.

Os poetas da chuva
que cantavam com a natureza
agora choram com ela
para consolar os homens sem paisagem

Os homens tristes
que escrevem com fome seus poemas
uma fome enorme
que a terra há-de escutar
como se neles a madrugada
fosse um grito mais urgente que as palavras

lobo
 
Os poetas da chuva

Os velhos poetas

 
Costumo olhar os velhos, imagino o planeta dos velhos. Cesariny o velho poeta aquele que põe as palavras no lixo, os cães a bocejar e as crianças do bairro cagadas até á medula. A poesia é esta vida escandalosa, a casca da fruta no meio da rua e dos ratos e do queijo e do vocabulário que nos mastiga os ossos. Os poetas, os velhos poetas gostam de se coçar, a caneta coça o papel e o rio se coça na margem da terra e os velhos poetas continuam a ser almas divertidas e tristes como uma gota de chuva sobre a montanha gigante. Quando o poeta era criança o seu poema era a sua forma de adormecer, agora dorme pouco e bebe até esgotar a paciência das palavras. Com quantos homens dormiu Cesariny? Lisboa é a sua cidade, a sua puta mais íntima e mais desejada. Que bom seria não haver significados, não haver coisa ou sujeito para desejar e que tudo o que está no exterior fosse o orgasmo que nos fizesse tremer o corpo, mas já que me desejas que isso não seja um limite para me possuíres como a raiz que sobe ao tronco da árvore e que depois vai ter com os homens á paragem do autocarro e lhes come o pão e o livro que trazem no bolso. Disseram-te que o poeta era sujo, sabes que a primavera cheira a sujo e que os gatos se sujam no carvão e nas flores. A melhor e a poesia mais profunda anda na encoberta luz das almas infelizes, a saudade é um privilegio das almas infelizes. Um dia as almas infelizes serão anjos. Nós lemos nas folhas de Outono o interminável diário dos que não encontram rumo na vida. Abris-te as mãos, as mãos como quem cava a terra e arranca um molho de dias e de cheiros e de gotas húmidas, depois vai pela margem limitada entre o pesadelo e os olhos semifechados daqueles que ainda não conseguiram adormecer. Os velhos, todos os velhos são poetas, isso vê-se nos olhos, no modo malandro de mexer a anca, de fazer batota ás cartas, de dar uma descompostura á vida. Cesariny é desses poetas, um poeta muitas vezes sem comida, sem dinheiro, com a roupa do corpo vestida muitas semanas. Mas os jornais e os críticos precisam desta poesia marginal, destes poetas um dia apanhados mortos no trilho do eléctrico, num dia desses de chuva em que um raio de sol atravessará o crânio desses poetas rodeados de gente e de estúpidas pombas. Um dia sua excelência o Senhor presidente da republica chamará á sua residência oficial o velho poeta Cesariny de Vasconcelos e lhe entregará a medalha de serviços prestados á pátria. A fome e a incompreensão é um serviço prestado á pátria. A pátria se faz de gente a morrer nas guerras ou nas valas comuns dos teatros e das tabernas. O velho poeta Cesariny que agora deve andar pela casa dos noventa e tal, poeta e pintor com dentes todos na cara para se rir do mundo receberá das mãos do senhor presidente a medalha do infante com honras de musica e percussão oficial, champanhe, peidos e muitas bandeiras. Os velhos poetas os poucos que há, que os poetas e o vinho, são os anos que dão paladar. Deixei fermentar o vinho e a poesia, deixei-os fermentar no buraco do ventre e no buraco escuro da noite e nos olhos daqueles que andam sem pensamentos a rasgar cadernos e livros e a partir a montra das livrarias e a dormir com as meninas e com os meninos com os cabelos húmidos de gel, e um dia vão nascer meninos revolucionários, que vão gostar de gel nos cabelos e de ler os livros repudiados. As crianças cultas não mais brincarão com bonecas, nem com carros de corrida, nas escadas do prédio, nos elevadores, nas escolas primárias as crianças farão sexo, vão aprender musica, poesia, ciências sexo e matemática. Se encontrarem uma lágrima no rosto dessas crianças sabem que são a nova geração de poetas surgidos das nuvens, dos ramos das árvores, das chaminés dos comboios a vapor, no guarda vestidos, em todos os sítios a poesia se cheira se come e se caga e não digam que não é bom o que cagamos porque também a porcaria do que comemos é ela por ela. Voltando á poesia, aqueles que organizam funerais e honras de morte aos poetas, os pobres coitados dos poetas que na lapide ou na biografia terão de ter uma tuberculose ou uma doença sexualmente transmissível, é difícil que um poeta conte uma anedota com piada, mas como pode esta vida desgraçada nos fazer rir. Cesariny é capaz de ser destes poetas, se ele ainda estiver vivo, se ainda gostar de escarnecer, se ainda tiver a língua afiada gostarei de saber que ainda veste as palavras de peixeira e que abana o cu a fazer tremer Lisboa
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Desejar é não ter a eternidade

 
Desejar é não ter a eternidade, é ter fome como um lobo esfomeado de luas e nudez. Não me desejes! Desejar é ter os olhos sobre um corpo e o amor não tem nada e o amor é este absoluto céu e esta absoluta terra. Desejar é não ter a eternidade. O desejo são as palavras e as palavras são sempre pequenas e inúteis.

Lobo Junho 2009
 
Desejar é não ter a eternidade

Histórias do cinema piolho

 
Gostava de fazer um filme... mas fico-me pelo gosto, pela tentativa de me imaginar a filmar a outra parte da vida, converter um homem sujo que cheira a merda de esgoto no mais cândido anjo que me leva pela mão a escutar o som das caixas de musica e a guardar debaixo da língua o sabor do vodka e do sangue pré menstrual. O meu medo, o meu terrível medo de tudo seria o suficiente para me libertar do sentimento de culpa, criaria personagens do mais fraco que a condição humana oferecesse e tu olhando os olhos deles, o andar deles, a língua que falam e o coração que lhes treme verias em mim o Deus que não sou, o cavaleiro invencível a cortar medos como quem corta cabeças. Quando posso vou ao cinema. Lembro-me do cinema piolho que ficava no bairro do bosque, lembro-me que o ecrã era um lençol velho e que num certo filme de aventuras as pulgas saltavam como as ondas do mar. Ficava tão embebido no filme que nem sentia as picadas perfurando-me a pele, no velho cinema lembro-me que ficava com o corpo preso á cadeira quando passavam aqueles filmes indianos e eu imaginava uma alma perfumada a tocar-me num modo de não me tocar. Naquela altura o cinema era só um pacto com a minha imaginação, a senhora que voava no chapéu de chuva era tão jovial e alegre como a moça que vendia algodão e mostrava as meias de seda aos olhares gulosos dos pequenos pedreiros que se roçavam nas cadeiras fantasiando coisas que não estavam no filme. A primeira vez que a paixão me entrou na vida como rebuçados entrando no bolso tinha eu 17 anos, eu não costumava falar com os meus pais, a minha vida era muito secreta, escrevia poesia em folhas de papel pardo que roubava na mercearia e encontrava-me ás escondidas á porta do tal cinema piolho com o caderno dos poemas debaixo do braço e ela depois achava-me um chato, eu que tinha medo de a magoar com o prazer escondido dos meus desejos e ficava semanas a remoer porque carga de água não a tinha beijado. Na próxima vez o argumento ia mudar, as minhas mãos no seu corpo, mesmo que corresse o risco de levar um estalo, parecido ao gongo que certo homem semi nu toca antes de começar o filme. Anos mais tarde num outro cinema da cidade fui com o meu pai ver o que dizia ele ser um filme pornográfico, o senhor chamava-se Pasolini, o meu pai era um homem severamente católico e só os primeiros anos da revolução fizeram cair uma certa rigidez de comportamento, aquele filme eram as mil e uma noites, umas mil e uma noites onde me imaginava num tapete com as freiras do colégio da cruz da areia, eu a fazer sexo com elas, a esfregar-me no corpo delas como batatas na gordura do óleo. Costumava refugiar-me no cinema quando fazia gazeta ás aulas, sabia muito mais sobre a vida dos actores e dos realizadores do que a matemática e as formulas químicas e aqueles nomes todos das ciências naturais que tinha de decorar. O corpo da Sofia loren era a melhor das ciências naturais. O cinema era aquela parte visionária da minha poesia, usava um sobretudo cheio de remendos, nos bolsos guardava caixas de medicamentos, na escola trocava cromos de futebol e diferentes marcas de drunfaria. Certa noite fiquei escondido na sala de projecção, passei a noite a dormir, eu e o projeccionista que tinha trabalhado num circo italiano, contava que tinha conhecido felini, que tinha doze mulheres e que já fora forte como Hércules. Havia tardes, principalmente as de inverno em que só havia eu e meia dúzia de gatos pingados, havia um tipo que cheirava ao chulé e quando o homem da lanterna o quis expulsar jurava a pé juntos que era o Charlot a causa daquele cheiro e o pessoal assobiava comentando que também era o Charlot que se punha aos peidos por causa de comer os atacadores. O meu pai trabalhava numa fábrica onde se fabricavam peças para o interior dos comboios, por a tal fábrica ter fechado fui viver com a minha avó para uma zona muito perto da Espanha, fiquei um ano sem escola e lembro-me de passar por lá um homem com uma caixa de musica e uma máquina de filmar, nesses dias a igreja do lugar ficava vazia e houve até um certo domingo de Páscoa em que não houve a paixão de Cristo, mas a paixão de gina, conto ainda que levei uma tareia da minha avó, uma mulher que tinha lutado contra os mouros ainda Deus não tinha ideia de filmar o mundo. O cinema não seria a minha vocação embora me imaginasse a filmar as nuvens, a filmar o teu corpo como uma pintura de Miguel Ângelo, filmaria os meus eus carregados de solidão, estava chateado da minha poesia, resolvi inscrever-me num grupo de teatro, tudo era do pior, o encenador que naquele tempo era chamado de ensaiador era cheio de tiques, era um anjo loiro a dar ao rabo e a escrever piadas mais mal cheirosas que o cu. O divertido daquilo tudo foi a minha primeira experiência como saltimbanco, se conseguisse estar a fazer o pior cinema já ficaria contente, mas sabia de muitos filmes que tinham sido peças de teatro e muitos livros que eram costurados de vida. Por alguns momentos podia escapar á autoridade paterna e não teria de ouvir a minha mãe sobre a apresentação dos meus cadernos repletos de recortes poéticos, eróticos e hereges. O cheiro do velho cinema, a recordação do velho televisor a válvulas que não se aguentava nas canetas e o meu pai a dar murros na mesa por não conseguir ver o futebol parecia eu um personagem órfão num filme de pobrezas e gargalhadas, eu magro e esguio como um desenho animado. Foram muitas recordações do cinema que consolaram a minha fome de pão. A fome de Charlot era a minha fome, a lágrima de busten Keaton, era a minha lágrima. Agora sinto que o cinema não me envergonha da minha solidão. Vejo o cão sarnento e escuto o martelar da chuva e parece que aquela serenata se renova passados estes anos. O cinema essa alma que existe em todos os olhos, ajudou-me na construção de uma certa e protectora mentira que me salvou o ego e o orgulho. Lembro-me de ser o cinema a máquina de apagar medos, cada murro que o Trinitá dava no bandido era eu a imaginar-me a bater no velho professor que dormia com a cabeça sobre a secretária e por cima daquela cabeça de porco, um Cristo nu a chorar e a verter sangue. Abençoado Trinitá que te vingas por mim, acho que terei poupado muito dinheiro em psicanalistas e psiquiatras, mas verdade verdadinha o Trinitá deixou mal a minha reputação de intelectual. Os músculos e a força desse herói na verdade não me ajudaram a esquecer as humilhações da escola, da família, do mundo social. Tentei escapar pela porta do riso, procurei na filosofia e mais tarde num certo tipo de cinema compreender como era possível filmar a poesia, como o cinema é um jogo, morre-se quando se perde, ganha-se quando se renasce. Gostava de morrer na escuridão de uma sala de cinema, certa noite sonhei que o Marlon brando estava a puxar-me e me mostrava o lodo que havia nas almas e eu gritava-lhe que tinha um medo pavoroso de um certo tio que se lambuzava desde os olhos aos pés, parecia um mafioso, um homem que desejava poder apagar da memória. Os cinemas deviam ser como as igrejas, a gente podia lá ir rezar, quando fugi certa vez da tropa refugiava-me numa igreja, era uma igreja velha, os cabelos do Cristo estavam a cair, tinha tomado uns comprimidos, via o Cristo e a virgem com as caras desfiguradas, pareciam leprosos, perguntavam-me o que fazia ali e eu perguntava se havia vinho, se eles gostavam de cinema, se as cadeiras de madeira do cinema império tinham sido feitas por José o carpinteiro?! Dormi por lá algumas vezes, outras ia a um velho cinema abandonado olhar uma cadela que tinha tido cachorritos e eu imaginava que eu era o vagabundo e ela a dama, um dia encontrei-a morta a ela e aos cachorros, tinha havido uma briga de traficantes de heroína, nessa noite chorei tanto que senti vontade de cortar os pulsos, senti vontade de correr todas as salas de cinema, de suplicar que me deixassem entrar num qualquer filme, que o velho hitch me deixa-se entrar na casa abandonada e eu pudesse morrer em paz. Estou aqui perdido nestes pensamentos, a imagem dos cães ensanguentados, da chuva torrencial, dos olhos dela que se cruzam com os meus como o relâmpago se cruza com o céu. Foi breve o romance e longa a solidão e para meu consolo ficou a recordação de a possuir, de a ter nas minhas aventuras e fantasias, de ser um vagabundo de cinemas, de tendas de circo, ficou-me o consolo de a inventar sempre que as luzes se acendiam, o poderoso cinema acendeu dentro do meu corpo essa força, esses movimentos, essas imagens, canções e palavras flutuando como água no olhar dos personagens, neles estava a minha coragem a minha cobardia. Sinto-me um D Quixote, sinto-me um velho mineiro buscando ouro, mas sou um pobre preto oriundo de uma família de escravos que nasceu com o dom para a improvisação e que dança tão rápido como uma locomotiva ou como as multidões correndo velozes graças á velocidade da máquina de projectar. Acreditava que a sala escura do velho cinema seria a minha casa, o filme esse não teria intervalo ou apenas um que fosse para te ir buscar. Por segundos sairia da sala e correria rumo a um futuro onde estarias com esses teus olhos pretos, dava-te as mãos e entrava contigo sorrateiramente ao som dos dias da rádio. Depois sentávamo-nos á mesa como uma família judia e o nosso avô tocaria violino ou fugiríamos do velho Alcapone tão assustados como num primeiro amor em que nos sentimos entre o abismo e o paraíso. Tenho frio, visto a gabardina e penso naquela história que aconteceu em Lisboa do homem que matava prostitutas, uma delas foi morta naquele cinema onde uma vez dormi, Lisboa tem um silencio, as águas do rio dormem e respiram como os homens, há na verdade uma pausa na narrativa que faz mover qualquer coração, qualquer pensamento. Alguém desce umas escadas, uma sombra de suspense suspensa nos olhos... há um silêncio, certamente não é dos inocentes.
Lobo
 
Histórias do cinema piolho

Ela era quente

 
Ela era quente, convinha que fosse quente e que os seus olhos fossem eléctricos como um fio da palavra no cume da montanha onde te vejo cair e na tua morte vejo a morte da cidade e a paixão dos homens da cidade e é plural a definição de homem com cidade. Ela era quente, toquei-lhe no ombro e vi que tinha as asas de um anjo e que atraia os homens e os esfaqueava com o caule das flores e que dormia nos táxis velhos e que vestia o sobretudo dos poetas e que sabia os poemas que cheiravam a cão e ás chaminés das fábricas de Nova York. Ela era quente e quando mexia as ancas as ervas dos muros e os velhos do jardim e as bichas e os paneleiros e os que tiram fotografias e abusam das crianças que posam nos postais e que choram de fome e são os senhores que os comem com a língua do dinheiro frio. E tu continuas quente com uma corda no pescoço e a Coreia não é um céu azul, nem Paris é um Cu. Ela era quente e por cima do seu ombro eu cantei a marcha dos pássaros e depois a sombra desmaiando nos muros era o cemitério dos mortos a voar e tu no teu discurso sublinhas-te que os mortos não podiam voar e eu disse-te que era o espírito que só existe nos livros dos poemas e nas cordas da guitarra dos subúrbios. Olhei por cima do teu ombro, vi o corpo imóvel pendurado no alto do arranha-céus e vi que os teus dedos telegrafavam e o sangue caia enquanto chupavas os dedos e a máquina de filmar trabalhava sozinha com o corpo a cair-lhe em cima. Um suicídio em directo. Uma flor em directo a pedir água no noticiário das oito.
A flor era mãe de um soldado um pobre sem destino e que havia de ser morto e não conhecer o destino de morrer e de se apaixonar. Olhei-te por cima do ombro e lá estava o rio e os pregos a boiar na água dos pneus e ele o homem do talho cortava o sexo porque uma vaca lhe fora infiel. Agora chora e não vende carne infiel e mijasse como um atrasado mental que dá o cérebro para o transplante dos hambúrgueres.
Uma vaca passeava de hambúrguer por nova york e por cima do teu ombro essa cicatriz esse dedo marca digital na revista. E nova york é dos cães e Paris é das vacas e os Árabes são os donos das pedras e dos muros e os capitalistas compraram as praias e alugam cronómetros para que o sexo se faça discreto e rápido como o copo de água que se bebe num gole. Olho-te por cima do ombro e a cidade é uma festa e os homens vão cinzentos subindo e descendo as escadas e choram e riem e um dia não o fazem e quando não se faz morresse. se não queres morrer ama e se queres amar mesmo morre, se não é mentira todos os dias, a mentira de nascer e acordar.
Abre as pernas mesmo que seja só um dia, uma borboleta desflorada estará comigo neste sonho de te ver em nova york a gemer.
Por cima do ombro onde o rio bebe o esperma da borboleta que acasalou com o poeta.
Lobo 05
 
Ela era quente

O entendimento completo da morte

 
Fico suspenso na água
a noite cheira a rosas e o milagre da pobreza
é deixar cair o incógnito perfume dos olhos.

Suspenso na água e de patas penduradas no hemisfério

tento refazer o mundo. É este o sinal para accionar as transformações do corpo.

Suspenso na água vejo os meus olhos
e não são os olhos que vejo
mas a água.

Não ter segredos é simples
o mistério de morrer é esperar e entre o mistério do que se espera
e o inesperado de não se saber onde ficaram os olhos nós tentamos e o tentar é a imperfeita conjugação de pensar que qualquer coisa é a sensação particular das coisas comuns.

Não ter rotina é morrer as coisas comuns fazem falta á paixão.

Fico suspenso na água e de pernas para o ar imagino-me um poeta que recita uma canção na sola dos sapatos velhos. Aquele barulho, aquele andar da multidão que parece que mexe, que parece que anda e que muda de posição quando parece estar a despir a terra e a terra fica nos sapatos como a musica nos dedos ou simplesmente como a respiração que se vai do corpo.

Fico suspenso na água
a noite cheira a rosas bravas
existir é ter cuidado e ter cuidado é desfolhar o amor e não ter cuidado é a única atenção que o amor precisa para se equilibrar pois nunca se sabe como os homens se equilibram e contudo sabemos que encontram uma certa firmeza.

Assim o mar
assim o amor e todas as coisas misturadas.

Os homens livres e os outros e as mulheres para que não se diga que falta uma cor.

E é sempre a natureza esse milagre
essa transformação do cisne feio
no amor verdadeiramente universal e poderoso.

Não há nada que o amor não faça

para espantar os homens comuns e esse é o milagre do amor e isso é não entender nada e ter no entanto uma qualquer admiração que fosse o entendimento completo da morte.

lobo 08
 
O entendimento completo da morte

Anda alguêm a desacertar o relógio do mundo ou foi encontrada uma mulher morta com semen nos olhos

 
Anda alguém a desacertar o relógio do mundo ou foi encontrada uma mulher morta com sémen nos olhos – I Estou na rua das lágrimas com chuva; subo a montanha e do cimo de uma nuvem vejo um pássaro. Acredito que ele é Deus, criador do horizonte e do céu que se vislumbra dos olhos dos poetas vagabundos.Cai do ventre para a cidade, Lisboa abriu-me os olhos; tenho a cidade e o rio, tenho as palavras como sangue, a cair do corpo dos livros, para o silêncio das ruas. Conto-te que a poesia se atravessou qual um barco no mar do destino. Tu não acreditas no destino; olhas o branco de um muro e vês apenas linhas e agarras nelas como se faz com os gestos, assim uma outra forma de natureza. A natureza é a mãe de todas as danças, fala ela todas as línguas e tu tens o segredo de fazer mexer todos os órgãos da vida. A terra, o fogo, o elemento solidão, elemento corrosivo das paixões que faz crescer noutra direcção o nosso primeiro fôlego de existência, o princípio da nossa história. Todos temos dentro de nós um oceano, todos possuímos um peixe colorido. Em nós flutua a cal, o cimento, o barro vermelho e o ferro que levanta os guerreiros enfraquecidos. Na cidade havia um rapaz que dormia na gruta dos comboios, olhava o céu e desenhava como um Deus criança o azul seda que cobre os anjos da cidade pobre. Muito tempo a olhar as pedras, a sentir os automóveis velozes e a mão do vento a fechar os olhos dos velhos moribundos. O rapaz que desenha como uma criança é oriundo de uma ilha, todos somos uma ilha, a nossa ilha é o medo dentro de nós e tantas coisas que nem sempre são laminas ou cinzas que ardem nos olhos com lágrimas. Tu perguntas se tenho um sentido, se existe a luz e se a escuridão é aquele princípio que faz adormecer. A semente que brota da terra não tem respostas para te dar. A terra está nua, tu não reconheces a nudez dela, não é apetecível como a das mulheres. É necessário transformar o barro vermelho na forma curva das palavras, é importante regressar á energia que dá fogo ao coração e talento aos operários que transformam a força, naquela vontade, que nos protege a nós cidadãos comuns de certos rituais de sangue. É esse sangue que o artífice usa para expressar na pedra e no ferro e noutras matérias orgânicas o motivo de ser da ciência e da política, a razão de haver frutos nas árvores e espíritos vestindo os corpos e haver ódios e paixões ricos e pobres e toda a classe de criaturas que o cinema produziu tão frias e verdadeiras como a morte.

A eternidade é o momento que o criador dos céus e da terra transformou no jogo da sua solidão pessoal. Como pode ser possível o criador guardar a solidão das suas criaturas nos cinco dedos da sua mão humana?! O realista conhecido nesta rua como o mais convicto dos materialistas não acredita na eternidade. Ás mesas serve-se o pão duro e o vinho azedo; assim é a guerra; uma terra vermelha e um céu azul de fazer cair os olhos no filme trémulo da paisagem. O realista não acredita que haja um espírito a mexer as águas, nem crê num criador capaz de fazer fenómenos. No fim desta rua há um polícia gordo que guarda as portas do céu. Por guardar a rua, não pode estar ás portas do céu. Entre as portas do céu e as portas da morte fica uma lavandaria, própria para a lavagem das palavras sujas. O realista o que defende a teoria da não existência de Deus pergunta a todas as criaturas presentes na assembleia se alguém viu olhos nos olhos o ultimo silêncio das criaturas? Ninguém ou quase ninguém, soube responder; houve um rapaz surdo-mudo que na linguagem gestual contou que quem criou o mundo o fez fugindo á palavra, tinha que optar entre o poder da criação e o desgaste da linguagem. Como nesta rua existem crentes em Deus, ouvimos que ele fez os montes e os vales, os vales pareciam sinais de pontuação costumava dizer o senhor João professor de português crente em Deus. A Rosalinda conhecida por gorda e apelidada também por “serviços secretos” diz que a gramática é assunto do diabo. Ela diz existir a gramática das tentações. São seis da tarde hora de ponta, o rapaz negro pinta de vários tons a gruta dos comboios, ele tem o estilo inconfundível das crianças e não é por fazer deste modo que tem de aguentar o desprezo de um qualquer natureza morta, esses que passam arrogantes, sem cheiro de imaginação! Merecem eles o gozo de seus cães e de seus gatos e das pulgas que pulam no colchão dos enfermos. Enquanto as pulgas saltam, o avião cai a pique no meio do urinol, não sei se isto vem descrito no livro de fiados ou no manifesto surrealista publicado na cidade de Paris em 1924.Ando a passear no jardim público, por lá há uma estátua que guarda todas as dores, todos os velhos mendigos urinam seus litros de vinho e cerveja e num repuxo acertam na boca aberta do ilustre. A estátua que guarda todas as dores, lembra-me a minha velha máquina fotográfica capaz de esconder a idade dos homens e revelar as rugas na pele dos dinossauros. O realista, homem da ciência e do cálculo pensa que o calor do ouro pode mudar a natureza e deturpar a verdade exacta das coisas. Não é garantido que o ministério da poesia e dos malabarismos tenha sido inaugurado. O carteiro entregou os convites na residência oficial do Dr. Jorge enjaulado nos seus deveres de presidente da selva pátria. O presidente espreitou da janela e condecorou o pára-quedista com a grande lágrima do crocodilo cobarde. O realista diz que o crocodilo cobarde não existe, opinião diferente tem o algibeira descosida o alfaiate desta rua e guardador de rebanhos quando criança. Discutiram eles sobre o crocodilo cobarde e foram dar á criação do universo e no meio veio á recordação aquele garoto tão cheio de sol que desejara com muita força ter uma nuvem para levar na mão no caminho da escola. Na sua inocente distracção foi apanhado pelas rodas de um carro de bois e morreu. Enquanto eles discutiam e no meio metiam os carros de bois com as nuvens e a morte de um rapaz cheio de sol o mundo fazia as suas armadilhas. Esta expressão escutei-a de um jovem Marroquino a quem as musas lhe haviam dado o poder de negociar com o profeta a venda de alcatifas para a decoração do paraíso. Penso eu que as alcatifas levantam pó e com o bater das asas dos pássaros muitos problemas respiratórios podem acontecer. O realista a propósito do bater de asas que levantam pó lembra a vinda do rei envolto numa cápsula de nevoeiro.

Parecia ficção cientifica comentava ele. O rapaz que desenhava como as crianças, que injectava nas veias a morte, essa que parece ter um sorriso feliz, sabia que o criador tanto existe na folha de um papiro, como no interior de uma velha lagarta de guerra. Exista ele ou não ficamos agradecidos á terra por nos dar uma certa dose de luz e uma certa dose de escuridão, essa escuridão íntima desenhada em lençóis de linho. Aqueles que dormem no frio das pedras, que nos últimos dias bebem o caldo de galinha no hospital público não conseguem chorar, nem sorrir, nem sabem explicar as dores que tem. O realista andou a circular pelo mundo, viu os gordos do império e os magros que a ele se submetem. A moral e a Ética não existem, existe o corredor da morte, uma grande nação terrorista e uma grande besta a trabalhar nos jornais, nas televisões, nas rádios... esta nação é uma ideia vazia. Mas o melhor é pegar uma flor, ela não é uma ideia vazia, ela cheira o perfume dos homens. Na gruta dos comboios anda um temporal, é uma peste que já dura á vários dias, alguém se vai lembrar de que há uma intenção terrorista no criador das coisas ou na natureza. Seja o criador das coisas ou seja lá quem for parece que anda por ai uma coisa que faz desacertar os relógios do mundo. Que absurdo comparar o criador a um fabricante de relógios. Este comentário foi proferido por um pastor evangélico que anunciava a salvação como se Deus tivesse andado pelo mundo a apregoar detergentes Como se chama. - Pastor Lucas De onde é? - Estados unidos Já adivinhava que havia em si algo estranho! - Estranho?! Um misto de comédia com náusea. O pastor faz um sorriso e sai caminhando na direcção da sua igreja. Cai a noite, oiço o tilintar das moedas, há uma percussão de misérias a bater na saia da cigana romena e no chapéu do velho que toca saxofone. O velho que padece de reumático antes de ser músico da rua era professor numa escola do interior Esta praga já cá anda desde que era professor – Anda por aí um veneno. Diz o caixeiro-viajante E que coisa é essa? Pergunta o sem pernas, o cauteleiro que costuma circular naquela rua Obesidade mórbida. - Pode ser coisa do diabo. Sugere o pastor Continuo na Minha, você é um gajo estranho, o diabo a causa da obesidade, o inferno deve ser pegajoso como mousse de chocolate. Ironiza o realista.
Entretanto no gabinete do presidente toca o telefone Aqui a brigada xl – Do que é que trata? - Bombas e assalto á mão armada Deve ser engano! - Nós nunca nos enganamos, a brigada xl é mais perfeita que uma linha recta Mas eu sou o presidente Serve, um tiro certeiro e temos um presidente em linha recta Vou desligar. - Tome os comprimidos para o coração Todos os presidentes que estão nos nossos ficheiros sofrem desse mal.
Durante a madrugada dois homens de espingarda ao ombro andam de um lado para o outro. Perto da janela há um homem amarrado a uma cadeira. Aproxima-se dele um dos homens Quer um cigarro? - Não fumo Não te queres contaminar! Sabes que se eu te der um tiro ficas contaminado para todo o sempre?! - Amem diz o outro homem. A seguir dá-lhe um pontapé na boca. - Estás a ver o gajo?! - Dá-lhe um tiro Posso? O outro carrega no gatilho Deixa-me contar quantos buracos lhe fizeste no corpo? - Achas que consegue lá poisar uma borboleta Talvez.

Chega um certo momento e a noticia entra no corpo, assim pão de jornal na barriga do mundo. Ouviu-se da boca do agoiro que naquela rua se tinha praticado um crime. A vítima era uma mulher de feições gregas. Fora ela violada com tanta brutalidade que o sol acordava em dores de nunca mais desejar nascer. No mesmo dia outra mulher olhava as nuvens... que terrível crime! Mas aquilo que acontece quando o gume da ignorância está afiado é uma perdição aos caminhos da natureza. O pastor evangélico apontou o dedo na direcção dos órgãos genitais dos membros da sua igreja, enquanto ele aponta o dedo os fiéis são atingidos por uma culpa no meio das pernas. Digo-vos eu que o corpo na sua essência não tem pecado a não ser a mentira que lhe deitam. A noite está um forno, a mulher olha as nuvens e vai folheando as folhas do livro guardadas há muito nas gavetas do pensamento secreto. A mulher que foi violada, a que tinha as feições gregas, alem de ter a pele queimada, havia vestígios de sémen nos olhos. A frio ainda se fala do crime, uns e outros num jogo de adivinhar um culpado elaboram suas investigações, o velho do saxofone atribui á causa do crime uma desafinação hormonal. A tal desafinação hormonal é uma bomba filha de uma grande puta. Afinal quem matou a mulher? Tudo tem de ficar registado: a quantidade de álcool no sangue, o sexo, a idade, se era velho, se novo, se tomava café com açúcar ou se costumava pôr sacarina?! O inspector que está a tomar conta deste caso é um tipo forte que quando anda arrasta os pés, tem um sotaque nórdico e um modo afável. Agora anda interrogando os moradores daquela rua, a dona Alzira a mulher da fruta não sabendo nada dá ares de saber tudo. - Cá para mim o culpado é o Garcia da novela mexicana. Insistia ela. Como já foi escrito nas páginas anteriores o movimento surrealista foi inaugurado em 1924 na cidade de Paris. Neste momento o relógio da torre marca as 11, num dos muitos exames efectuados ao corpo da vítima sabe-se que o autor do crime se deitou sobre ela assim uma vírgula no corpo da palavra. As autoridades pensam que há mão surrealista por detrás do crime e embora não havendo culpa formada foram detidos os seguintes suspeitos: O poeta Alexandre que na hora de ser detido exaltava as qualidades do cherne peixe incluído na dieta dos pedreiros e outros conhecidos trolhas, tem ele, este poema traduzido em ucraniano, croata e checo. O Sem Pernas, cauteleiro de profissão é no entender do Ministério Público um disfarçado surrealista por conseguir jogar futebol e ter uma capacidade de corrida que ultrapassa a velocidade do pensamento. António Magia professor de música apanhado com a boca no meio das pernas de uma clave de sol. Foram pois presentes a tribunal os três surrealistas, assim chamados também por andarem a surrar sobrevivências. Estes três que por terem um aspecto de Deus nosso senhor Jesus Cristo formato calendário das barbearias, aos olhos do povo tinham que levar o selo de criminosos violadores. O autor desta história sabe quem foi o homem que matou a mulher que foi encontrada com sémen nos olhos. Antes há que explicar porque é que o criador resolveu contratar um polícia gordo para guardar as portas do céu, escutemos o seguinte diálogo Pedro tens que fazer alguma coisa! - Fazer alguma coisa senhor, veja a minha idade não posso sair, o frio ia me fazer mal aos ossos Olha por uns tempos alguém vai ocupar o teu lugar e tu vai pescar, olha vai pescar bacalhau. Pedro foi pescar e Deus contratou temporariamente um polícia gordo para guardar as portas do céu. Avançando na história o verdadeiro assassino era o policia gordo que com o espírito das duas narinas guardava as portas do além e fazia descer ao mesmo tempo o corpo á terra onde se saciava de sangue e luxúria. Gostaríamos de saber o que é que teria passado pela cabeça do Criador ao contratar um polícia gordo, recrutado numa das mais baratas empresas de segurança. É verdade que um polícia merece a confiança do povo e se o Criador o escolheu de olhos fechados mesmo sofrendo de miopia na mão direita é porque sabia o que estava a fazer. Descendo à terra na rua das lágrimas com chuva o realista tem uma nova teoria sobre a crença em Deus: acreditam em Deus todos os pobres que admitindo todas as pobrezas não conseguem aceitar a pior de todas, a solidão. Quando são apanhados em flagrante nostalgia atiram-nos á cara que Deus está sempre com eles. O algibeira descosida o místico da rua disse assim: - Deus está sempre comigo, está quando estou com a mulher e lhe faço filhos e com os filhos quando atiram as minhas dúvidas ao tapete. Enquanto aqui na rua o realista e o algibeira descosida defendem teorias diferentes sobre a existência ou não de Deus o criador que tudo vê e que tudo sabe mas que para cúmulo dos cúmulos não sabe aquilo que se passa na sua casa que é o céu lugar alugado aos anjos e aos pássaros em turismo. Se não sabe o que se passa na sua casa, não deve estar informado que tem uma nova inquilina, a mulher morta com sémen nos olhos. Ora acontece que o polícia gordo esse que durante uns meses de eternidade guardou as portas do céu até ao regresso de Pedro o pescador, ele que tinha a chave dos enigmas e fazia acender a luz dos astros, resolveu o polícia confessar o crime que havia praticado. Estava ele vestido de corpo invisível quando entrou na casa de banho de um café e trocou a vestimenta invisível por uma roupa olhos de ver. Atravessava ele na passadeira quando reconheceu pelo andar o inspector que arrastava os pés. Logo ali se ajoelhou segurando as calças do inspector, este perguntou se ele tinha a tensão baixa? O outro respondeu que era um criminoso e que tinha violado uma mulher e toda aquela confissão saia a jorros. O inspector olha o homem ajoelhado a seus pés, tem uma expressão de cão danado, a seguir tira do bolso do casaco uma pistola e aponta aos olhos. Grande escuridão! Parece que desligou o interruptor da existência. Foi tudo tão rápido, de um clique a luz do nascimento, depois outro e vem a escuridão da morte. Tu sopraste nas narinas do teu amante, o paraíso está quando tens o amor e quando não o tens armas o teu negócio, um bilhete de ida e volta por essa estrada dentro. O paraíso és tu. Quem te pode expulsar?! Só o engano te atira para fora do teu lugar conquistado.

Estás dividido em dois meridianos um deles é um deixar ir, uma sensação de não se saber, de não se pensar o sentido de isto tudo acontecer. A tua amante estava nua, um navio chegou para resgatar a sombra do corpo dela ao calor da praia. Tu tens os olhos abertos, o polícia gordo está completamente cego, pensamos que não irá cometer mais crimes, também não é por isso que vão acabar, nem as declarações de amor, nem o cheiro a suor que vai ficando nas salas de espera. Olhando mais de perto vem uma voz. Não são precisos olhos para matar, pode ainda usar as mãos. Que Deus criador use a sua misericórdia, que lhe dê a duplicar a cegueira aos olhos e ao pensamento. Mas isso não são os planos dele, a cegueira dos olhos e do pensamento coisa que nunca resolveu o problema das guerras e das doenças. É preciso uma justiça, um chão de pedras outro de folhas para amortecer. Seja o criador, sejam os desígnios da natureza que não se deixe em perdição o que pode ter a luz de volta.
A dona Alzira a mulher da fruta perguntava numa carta se sémen fazia bem aos olhos? A cenoura, sabia ela que fazia bem, agora que sémen fizesse bem aos olhos! Que fizesse bem à vida, que fosse o liquido fertilizante que faz nascer os reis e os plebeus, os amos e os escravos, os homens perfeitos e os pretéritos imperfeitos instalados nas suas cadeiras giratórias, nas suas bengalas, nas suas apagadas memórias. Ejaculam eles nos lábios de suas amantes e a mulher da fruta pergunta se costuma nevar no céu-da-boca? A directora da revista a propósito dos homens que ejaculam flocos de neve sobre o céu-da-boca responde num suspiro idiota que é possível que o concílio Vaticano segundo faça referencia ao assunto. A dona Alzira e os outros moradores da rua, principalmente aqueles que acreditam numa vida para alem desta, gostariam de saber que rumo seguiu a mulher encontrada morta com sémen nos olhos? Sabemos que ainda tinha aquele líquido nos olhos quando fez a troca de corpos. Desconhecia ela o aspecto que tinha no momento em que deixou o corpo físico, para onde ia não eram permitidos espelhos, registos fotográficos, nem qualquer outro tipo de gravação. A mulher não sabia que requisitos eram precisos para se apresentar! Ela tinha pratica a dactilografar, trabalhara em parti-me numa loja de perfumes, usava meias de vidro e uma minissaia que subia e descia consoante o pensamento de quem olhasse. Os alunos do professor João analisavam o parágrafo desta existência e para eles sémen nos olhos era uma figura de estilo, uma figura de estilo era a do polícia gordo a vaguear pelos quartos, a fazer subir a febre ao corpo. O polícia gordo ia ser enviado para um lugar que ainda não tinha nome, que ainda não era lugar nem existência.

Andamos no nosso passeio, olho dentro dos teus olhos, no vazio deles tenho a sensação que começa a aventura do mundo. Olho dentro dos olhos e parece que vou dentro das casas. Tu és esta incerteza! Depois entrelaço as minhas mãos nos dedos escondidos da rua. Vamos tentar uma fuga, temos de escapar a esta rotina, aos teus pés estendo a estrada, ainda esta tudo como antes, ou quase... voltou à rua a musica do velho António e o pregão do sem pernas o cauteleiro está mais rouco. Olho-te apetece-me outra liberdade, nós ainda continuamos pobres, de uma pobreza que nos mostra como é grande o coração. E nós abrimos os livros e eles são pérolas. Tu gostavas de um pouco de poesia. O realista olha e aponta o dedo como se apontasse uma incerteza. A poesia não paga as contas, não põe gasolina nos automóveis. E logo vem de dentro de mim um poder que eu não sei de onde vem. Olhe! A poesia deixa-me chorar, não quero toda esta matéria, o pó que toda esta aparência levanta. A riqueza deles é uma máscara, ela cai e não há nada que ver, não há rios, nem flores, nem bichos a rastejar. A riqueza deles é uma vida gasta, nós andamos descalços, ricos na nossa liberdade, eles caminham num sapato apertado, andam naquela limitação de um horário, do dever conjugal e dos filhos que embalamos para esquecermos toda a frustração. De Lobo Está um dia mais frio do que habitualmente, a gorda apelidada aqui na rua de serviços secretos espalhou que o inspector andava doente, parece que os médicos tinham diagnosticado um tumor. Alzira deixou cair uma lágrima, o maldito Garcia da novela mexicana é que devia ficar podre; Alzira tinha simpatia pelo inspector, ainda mais por ele ter elogiado a sua receita secreta de bacalhau. Deus criador não fazia ideia que um dia viesse á sua presença um inspector da judiciária. Não sabemos nós a religião dele, nem nada sobre a sua vida pessoal, sabemos que nasceu num País frio, que gostava de bacalhau e por gostar muito de bacalhau, um dia depois de muita eternidade pediu permissão para vestir o fato dos sabores descer á terra e visitar a mulher da fruta. Alzira desejava também ter um encontro com ele, uma vizinha dizia ter comprado uma antena receptora de espíritos coisa que ela podia encontrar na loja asiática. Antes da descida do inspector á terra deram-lhe um holograma formato bacalhau com batatas. O realista sobre este assunto disse que se tratava de uma farsa, não cabia na cabeça de ninguém essa teoria de por os mortos a comer bacalhau com batatas, ele desafiava qualquer um a provar o contrário. Como as mulheres tem o dom de levar o argumento dos homens á água do seu moinho, Deus o criador fez-se mulher e convidou o realista a sentar-se perante as câmaras de televisão e discutirem sobre o assunto. O realista não tomava atenção aos argumentos da dama, passou todo o tempo a olhar-lhe as pernas e acabou por ficar sem resposta. Tinha sido ludibriado por Deus na forma de uma bela mulher. Entre as três da manhã e as quatro da tarde deu-se o encontro entre o inspector e a mulher da fruta Está um lindo dia. - Vai chover. - É a vida – Bacalhau com batatas Era o meu prato preferido. - Quando comias o meu bacalhau com batatas, babavas-te todo Não ficava bem um espirito aparecer todo babado. - Queres provar um pouco A que horas vêm o teu marido. - O meu marido hoje não vem Achas que sou bonita? - Pareces uma maçã rosada. De repente Deus o criador resolveu desligar este momento, dera-lhe o holograma do bacalhau com batatas, não um CD-ROM de sexo virtual. Enquanto tudo isto se passava chegou á rua das lágrimas com chuva um estrangeiro. O realista e o alfaiate, a algibeira descosida não falando a língua dele metiam-lhe aos lábios o bom vinho de receber e o bom pão de fazer ficar e ainda o discurso: tu falas a tua língua, mas quando provas o nosso bagaço, a nossa comida, quando metes a paisagem na veia dos olhos, nós percebemos que tu não és de outro planeta, as tuas dúvidas são as nossas certezas. Faço agora um parênteses para evocar a memória do senhor inspector, não sendo eu católico mas acreditando piamente na virgem do azeite sugiro que encomendemos uma missa do terceiro dia em virtude do pouco dinheiro, pois esta vida de poeta dá para uns cigarros e para uns comprimidos para a bronquite. A algibeira descosida e o velho musica estavam de acordo em fazer aquela homenagem. O realista embora não fosse crente não se importava em fazer a festa. Acabado o discurso todos bateram palmas e o estrangeiro que não tinha percebido nada dizia que sim com a cabeça e até deu uma nota de dólar para ajudar á missa do terceiro dia.

Ainda é muito cedo para que te lances. Vais-te estatelar no chão das duvidas, tu nascida nesta rua, baptizada com o aroma da fruta, sabes que encostando o ouvido á terra se ouve o taxímetro do táxi destino. Não penses que é só levantar a mão e de um modo decidido e até um pouco arrogante, dizer simplesmente, leve-me ao céu! Tu sabes que aqui aconteceu um crime, disseram-te que foi um polícia gordo e tu fizeste não sei quantas dietas com receio de que te achassem parecida ao tal polícia gordo. Estás a ficar um pouco perturbada, o que te tem ajudado é o tempo que passas na gruta dos comboios à conversa com o rapaz negro. Aquela não é uma vida que se gasta. Tu olhas na direcção do céu, parece que estás a olhar um pensamento muito longe. A mulher com sémen nos olhos pensa que deveria ter-se tratado com um psicanalista antes de subir aos céus, ficar uns tempos no purgatório das seduções. O inspector inclinando sobre ela o seu olhar paternal, desvendou num sorriso aberto todos os crimes. Serias tu capaz de desvendar os crimes praticados em nome do amor, o amor que se trava corpo a corpo, tal uma guerra que é a conquista de um território e que no amor é uma luta do nosso corpo pela conquista do corpo do outro. Enquanto dissertamos sobre o amor e sobre a guerra a mulher que tem sémen nos olhos está a massajar os pés do criador, quando Pedro regressar da pesca é quase certo que as massagens lhe vão fazer bem aos ossos. Quando Pedro já se encontrava no céu, ocupando de novo as funções de guardador, ele e o inspector passavam as tardes a conversar sobre a descida do dólar e as mil maneiras de cozinhar bacalhau. Havia o bacalhau grelhado no inferno, o bacalhau protestante e uma receita francesa que a mulher com sémen nos olhos conhecia. A dada altura um anjo da legião dos espertos disse que o que mais apreciava no bacalhau eram as asas. Nesse dia o céu estremeceu de riso. De Lobo O poeta Alexandre resolveu falar com um padre, saber se era possível a missa do terceiro dia. O padre disse que a igreja de Deus não era uma barraca das farturas. O poeta Alexandre olhou-o com espanto e começou a desbobinar umas verdades, que o Vaticano andava cheio de ouro, que o papa andava a viajar e que ainda recebia um subsídio por cada milagre inventado, que a igreja católica é um negócio como fazer armas ou produzir droga, que as crianças passam fome e que Deus contrata criminosos para guardar o céu, não falando dos seus representantes, cambada de padrecos a sexuados que nem para rezar missa do terceiro dia são capazes. O padre disse que ia ver o que é que se podia fazer e que ele não era um padre como os outros e que se o criador tinha escolhido um polícia gordo não era assunto para ser questionado, ele devia ter as suas razões. O padre quis saber se o poeta Alexandre e os amigos sabiam o pai-nosso, o poeta Alexandre disse que cada um sabia do seu próprio pai e o padre disse que com o pai-nosso mais o IVA ficava coisa menos coisa, 250 euros. A missa do terceiro dia lá se realizou na gruta dos comboios. Passadas umas semanas, o padre que tinha feito a celebração, escreveu uma carta ao cardeal pedindo renúncia dos votos que tinha feito. O padre que agora era ervanário foi viver para uma aldeia atrás do sol-posto. Quando Pedro o pescador e guardador das portas do céu e possuidor da chave dos enigmas piorava dos ossos, Deus enviava á terra um dos seus, esse ser vestido com o holograma da pobreza franciscana, rogava por umas gotas de remédio para as dores dos ossos. Durante muitos anos o padre que não era padre mas um curandeiro que curava os males das pessoas e dos bichos recebeu numa manhã de chuva a visita de uma pobre que andava por aqueles sítios a guardar as cabras e que dizia que lhe tinha aparecido a nossa senhora dos azeites Que te disse ela? - Falou do pecado da gordura meu senhor E que pecado é esse? - Comer com as mãos engorduradas e conceber os filhos cheirando a gordura durante o acto Que idade tens? - 12 Anos Tu entendes-te as palavras da senhora? - Fiquei um pouco confusa, quando o meu irmão mais novo nasceu, o meu pai cheirava a óleo, será que o meu irmão tem no corpo o pecado da carne com gordura. No momento em que esta parte da história decorre tu estás no teu trabalho domestico, enquanto passas a ferro olhas-me a dormir, estou a dormir profundamente, sonho que a virgem dos azeites me aparece, ela mostra-me o policia gordo, agora está mais magro, trabalha agora numa taberna, continua a dizer indecências e a dar arrotos. Tu olhas os meus olhos a abrir. - Dormiste bem Sonhei coisas estranhas Coisas estranhas?! - Apareceu-me a virgem do azeite e um polícia gordo que no meu sonho era quem tinha cometido o crime ocorrido na rua à coisa de um mês. - O tal crime anda a dar a volta à cabeça das pessoas da rua e desde a morte do inspector que as coisas andam piores Coitado! Morrer assim… – Achas que vai aparecer outro investigador Não sei. Depois levantei-me fiz a barba e fui comprar fruta. A dona Alzira perguntou se eu tinha ido à missa do terceiro dia? Disse-lhe que tinha ficado em casa. Ela perguntou-me se eu acreditava em almas do outro mundo? Na verdade acredito em almas do outro mundo e de outras freguesias, acredito em tudo disse eu. Ela com a sesta da fruta misturada com a sesta das novidades, contou que a igreja tinha um padre novo, parece que vai ser a perdição das mulheres, o homem é bonito, muitas vão ficar no confessionário arranjando pecados a toda a hora. Eu despedi-me e segui para casa para preparar o pequeno-almoço. Tu já tinhas passado a roupa a ferro e agora estavas concentrada no romance policial cuja leitura tinhas interrompido. Na nossa rua tudo estava calmo, parece que também no céu nada acontecia de novo, a não ser o inspector pegar num lenço branco e limpar os olhos da mulher que tinha sémen neles Senhora, quero dizer... menina, gostava de lhe fazer uma pergunta, quando estive na terra andei a investigar, a tentar descobrir o autor do crime cometido contra si, infelizmente não consegui descobrir, se não é incomodo revelar-me uma pista. – Foi um policia gordo disse ela prontamente Sabe que cheguei a pensar que um tal Garcia podia ser o verdadeiro criminoso. Agradeço-lhe por ter dissipado esta dúvida da minha cabeça. Se me dá licença vou-me retirar. O inspector fez uma vénia e retirou-se em direcção aos seus aposentos. Instalado nos seus aposentos, acendeu o cachimbo e pôs-se a contemplar um carreiro de nuvens. Recordava os dias na terra, as pessoas que pareciam um carreiro de nuvens pesadas, acotovelando-se umas ás outras. O inspector de quando em quando deixava sair uma tosse seca, o criador na sua infinita compreensão embora muitos pensem que nas suas longas barbas esconde algo parecido ao código penal, aconselhava-o a reduzir o tabaco, a seguir chamou a mulher e pediu que lhe lê-se as notícias boas da terra, o que era um pouco difícil, a terra estava aumentada de guerras, de comida intragável e outros lixos que nem a reciclagem era capaz de resolver. Lobo 04
 
Anda alguêm a desacertar o relógio do mundo ou foi encontrada uma mulher morta com semen nos olhos

Uma certa e razoável sujidade do amor

 
No encanto das coisas há implícita uma certa sujidade, uma certa sujidade da vida, uma certa e razoável sujidade do amor. O encanto das coisas é elas não estarem submetidas a pactos. Há no trabalho da reprodução da natureza uma sujidade legítima. O encanto das coisas é elas terem um misto de podre e de fresco. O encanto dos homens e das ruas, o encanto dos olhos e o encanto do coração é haver uma certa sujidade dos costumes. A imoralidade das palavras, a navegação dos dias, a ausência do tempo na suja ocupação da inutilidade dos poetas. A inutilidade de tudo é o sentido para não se invadir, para não se violar a tranquilidade dos pássaros e das árvores e das nuvens que passam no céu e que passam na admiração dos peixes e que estão no despertar e no adormecer. O encanto das coisas é elas terem a morte. A morte é a vida a sujar-se e o nosso renascer é um grito sujo, tão sujo como um rufar de tambores, tão sujo como uma paixão selvagem, um modo sujo de andar de crescer. O encanto das coisas não é elas terem fogo ou elas terem água. Não é o encanto das coisas haver solidão nas casas e cinza nos borralhos para santificar a agilidade dos gatos. O encanto das coisas é a contradição entre as mãos e os pensamentos. Na cinza do borralho a agilidade dos pensamentos. O encanto sujo das coisas é elas perderem o sentido de rumo absoluto. O sujo encanto das coisas é haver quem derrube muros, quem derrube leis. O encanto das coisas é a profunda liberdade dos seres, sujar é o modo limpo de perder o medo de se tocar a natureza. Lobo 05
 
Uma certa e razoável sujidade do amor

Os poetas não comem pão com queijo

 
Os poetas não comem pão com queijo
Os poetas não comem pão com queijo • Os poetas não comem pão com queijo

os poetas que comem pão com queijo

são esquecidos e nostálgicos.

Mas que diferença faz aquilo que os poetas comem?!

O céu continua a ser azul e tu cantas sempre a mesma canção

profunda e doce.

Está provado cientificamente que um poeta por comer queijo

pode ser absolvido de todos os crimes e que só pagará por crimes de amor.

Um poeta é um poeta

um rato é um rato e caso haja falta de papel a dactilografa irá por uma fatia fina de queijo da ilha

na máquina de escrever.

Também o queijo faz com que os poetas adormeçam e quando os poetas adormecem a natureza

adormece com os poetas.

Há dias encontrei um poeta francês e saboreamos juntos vinho e queijo, depois provamos pão saloio

instantes depois não dizia coisa com coisa e trocava tudo

confundia queijos com malmequeres e pássaros com estrelas

Pois o queijo pode provocar alterações na personalidade.

Mas que podemos fazer?! Deixemos os poetas comer queijo.

Nós precisamos da loucura deles para sobreviver

Lobo 06
 
Os poetas não comem pão com queijo