Poemas, frases e mensagens de Helayne

Seleção dos poemas, frases e mensagens mais populares de Helayne

Encontros

 
Na primeira vez, você me machucou
Com tua invasão quente, febril
Sem preparo, fugi...

Na segunda vez, eu te percorri
Tua pele, teus membros
Delicei-me com teus gemidos
sentindo tua respiração e arquejos de prazer.

Na terceira vez, já não era você, nem eu
Era você em mim
Eu sobre você
Você preenchendo meus vazios
tirando o meu ar
o meu pudor.
Eu galopando intensamente em teu desejo
querendo mais da tua carne, do teu suor
Até a explosão do mais puro deleite.
 
Encontros

Uma noite chuvosa

 
Uma noite chuvosa

Açucena estava com o balde d’água na cabeça descendo a ladeira em direção à sua casa. Na vila deles não havia sistema de água, apenas um poço comunitário. Pelo menos não precisavam mais caminhar quilômetros para achar um olho d’água, ou uma cacimba. E a água era tratada.

Não sabia que alguém havia chegado em sua casa e seu irmão a esperava para colocar “mais água no feijão”. O vestido de viscose era um pouco curto e estava um pouco molhado. Apesar de ter dezoito anos, ela parecia uma menina, mas era forte, os músculos ficaram bem definidos ao longo do tempo, ela era até um pouco magra.

Quando chegou em casa viu com susto o estranho que se sentava numa das cadeiras de palhinha da sua sala. Ele era um pouco alto e muito vermelho, tinha os cabelos castanhos com tons dourados, os lábios finos e o nariz reto, seu queixo tinha um vinco bem no meio, e tinha o ar de “poucas palavras”, não que ela fosse de muita conversa.
__ Açucena, ainda bem que você chegou, teremos mais um pro almoço. Você nem imagina quem é ele.
Não imaginava mesmo. Algum daqueles atores de filme de bang-bang que passava nas noites de rodeio no telão da praça?
__ Bom dia moço._ falou um pouco tímida.
__ Foi ele que deu socorro pra mamãe, ele que te trouxe ao mundo.

O quê? Ela sentiu um calor subir em suas faces, não conseguia imaginar aquele homem ajudando-a a nascer. Ele parecia já ser maduro. Mas mesmo assim, ela sentiu vergonha.
__ É, você cresceu um bocado. Já é moça feita._ ele falou com a voz arranhando a garganta.
__ O Miguel voltou, não é legal?
__ Ele vai ficar aqui?
__ Claro que sim! Imagine, se vou deixar meu amigo na casa de estranhos!

Miguel sorriu balançando a cabeça. Ribamar era muito brincalhão. Ninguém lhe era estranho em lagoa do Arroz. Vira os mesmos rostos que deixara.
__ Não se preocupe moça, eu nem queria está ainda aqui, mas Riba me obrigou.
__ Não me importo, eu não ligo, quem põe comida na mesa é o meu irmão mesmo, eu não mando em nada.

Ela esgueirou-se para a cozinha carregando o balde. Tinha o nariz arrebitado, orgulhoso. Não gostava de está tão mal vestida e com o cabelo preso em coque. Devia está horrível. Além disso, por que Ribamar não avisou? E o que ele estava fazendo, voltando ali? Todos sabiam por que ele abandonou Lagoa do Arroz há dez anos. Ele tinha um namoro proibido com uma mulher casada, e era o suspeito da morte do marido dela. Ninguém tinha como provar que foi ele, mas ele era a pessoa que tinha mais motivos. E os amigos dele mandaram ele ir embora. O covarde foi. Agora estava de volta. Açucena tinha dez anos, e ainda podia lembrar da poeira que se levantou quando o cavalo dele galopou em direção ao sol. Era verão, nada de chuvas, só o sol escaldante. E ele partiu. Açucena sonhou muitos meses que ele voltava para buscá-la, mas Miguel não voltou. Ele demorou dez anos, e dez anos era muito tempo.

A noite Ribamar acendeu uma fogueira em frente a casa deles. Era uma imensa fogueira, pois não havia lua e o céu estava escuro. Chamou a irmã, que continuava no seu mutismo. Foi até o quarto onde a lamparina estava já acesa, e ela preparava a cama. Usava o vestido de lã com mangas longas,
estavam no inverno, logo viriam as chuvas, por enquanto só o frio incomodava, a temperatura à noite, era muito baixa em relação ao dia.
__ Você não vem, eu trouxe batata doce pra gente assar na fogueira, e o Miguel vai contar as estórias de cordel que ele leu na cidade. Tu vai gostar, é história de fada e princesas.
Ela não sabia o que fazia o irmão pensar que gostaria de histórias de fadas. Não era mais criança! Mas Açucena foi assim mesmo. O calor da fogueira seria reconfortante se não fosse aquela presença indesejada. Sentou-se num tronco de árvore caído que seu irmão deixara ali justamente para servir de assento. Do outro lado da fogueira, estava Miguel, ele tinha uma batata num espeto, mais umas três pessoas da vizinhança, realizavam a mesma tarefa. Ribamar entregou um espeto para a irmã e sentou-se ao seu lado.
Ele contava as estórias com realismo, imitava sorrisos e choros, vozes esganadas e melodiosas... e a noite ia passando, Açucena tinha esquecido o mutismo e vibrava com as estórias, quase chorava com as tristes e sorriam com as engraçadas. Aos poucos os outros iam se retirando. A lenha que foi levada para alimentar o fogo estava acabando. Só ficaram Açucena, Ribamar e Miguel. Ribamar bocejou e disse que se levantaria pra dormir.
__ Tua rede tá armada lá na sala, Miguel, Açucena já deixou o cobertor pra tu. Boa noite, não demora mana, que o fogo tá apagando.

O contador de estórias contava a última da noite. Ele olhava diretamente nos olhos da sua ouvinte. Quando terminou, Açucena levantou , mas ele a chamou.
__ Por que você tá com raiva de mim?
__ Eu?
__ Foi porque eu fui embora?
Ela deu de ombros. Quem se importava com o que já tinha passado?
__ Não tenho raiva das pessoas. Só não gosto dessa vida aqui, sem nada de novo. Eu já tenho dezoito anos e meu irmão e todo mundo diz que eu tenho que arranjar logo marido por que se não eu fico pra titia. Mas, se eu não gosto desses bestas daqui, não vou casar com qualquer um só pra agradar! Não me importo se ficar encalhada! Não me importo se você foi embora, só fico pensando que se um dos parentes daquela finada souber que tu voltou, é capaz de vir aqui e te matar, frente a frente ou na traição.
__ Você tem razão em não ouvir a conversa alheia. Faz o que quiser. Só não fique zangada comigo. Eu sempre achei que tu brincava quando me chamava de meu noivo. Você era só uma menina, bem pequena.
__ Não estou zangada. Boa noite!
Ele se levantou e a acompanhou.
__ Mesmo assim, não precisa ficar com medo. Semana que vem eu to indo embora. Mas, eu não matei o marido da Dalila, e nem tinha caso com ela. Sempre respeitei as pessoas, e não ia namorar mulher casada.
__ Por que diz essas coisas? Não perguntei nada!
__ Porque você tem que esquecer o que foi dito no passado e me ver como seu bom amigo, e do seu irmão. Não gosto de saber que uma bobagem de infância está te prejudicando agora.

Ela parou e sentiu um nó na garganta. Sempre teve Miguel no pensamento. Ele tinha razão, ela era muito pequena, mas sonhava, e alimentou todos aqueles anos. Se era criança, ele também tinha alimentado, dizia que um dia eles se casariam e ele faria uma casinha perto do açude branco, e teria cortinas brancas, como do postal que tinha na carteira e deu à ela. Como poderia saber que era brincadeira? Ninguém lhe disse que as crianças acreditavam, não importava em que, elas acreditavam?

__ Por que não me deixa em paz então?
__ Eu sou doze anos mais velho que tu.
__ E daí?
__ Não é tanto tempo assim. Você não é mais aquela menina.
__ E o que isso tem a ver?
__ Que eu não posso ficar assim, até tarde da noite sozinho contigo. Amanhã é arriscado ter falatório.
__ Foi você que não me deixou partir!
Ela se virou, mais zangada ainda, mas ele ainda lhe segurou o braço.
__ Você ficou muito bonita, como a Princesa Rosa Negra.
Ela soltou-se e entrou. Ele também não era mais o mocinho de sua infância, seu noivo. Ele era muito bonito, como o cavaleiro Roldão.
Deitou-se em sua cama e ouviu ele baixando a rede e deitando-se. Fechou os olhos e imaginou ele montado num cavalo branco, matava um feroz dragão e a chamava. Ela aparecia no torre e ele subia por uma corda, a chamava de Rosa Negra, a sua princesa e a salvava da solidão do cativeiro. Lágrimas rolaram em seu rosto. Sonhava com um conto de fada, sonhava com um devaneio de menina, sonhava com um tempo que não podia acontecer. Que nunca teria seu agora. Porque em breve ele ia embora e na sua lembrança ela ainda sua “noiva de mentirinha”.

Quando na manhã seguinte ele foi ao campo semear a roça, junto com Ribamar, viu os olhares das moças, os risinhos na direção dele. Sentiu ciúmes. Mas não tinha esse direito. Queria que ele fosse embora. Sabia que logo alguém viria procurá-lo. Ele morreria. Quando ele partiu, tinha a esperança, em todo amanhecer, que ele voltaria. Sonhava em sair de Lagoa do Arroz e encontrá-lo por acaso. Mas, se ele morresse, não podia mais sonhar em reencontrá-lo. Preferia que ele estivesse longe, a vê-lo sumir pra sempre. A esperança era sempre um bálsamo.

A noite sempre reunia as pessoas em volta da fogueira. Ele nunca contava a mesma história. Não sabia como ele conseguia lembrar de tantas. Ribamar lhe dissera que Miguel falou-lhe que se tivesse um violão poderia cantar, que era assim que os contadores dos lugares por onde ele andou faziam. Ela achou que a voz dele não era boa pra cantar. Parecia que tinha areia na garganta. Era um som que embalava seus sonhos. Lá, ele era seu Cavaleiro Roldão, lá ela não tinha raiva, era imensamente feliz.

Quando as chuvas chegaram, acabaram-se as noites em torno das fogueiras. Ela ficava ouvindo o som da chuva no telhado e sonhava com todas aquelas princesas, e imaginava se seria possível, acontecer uma mágica, e dela ir para um outro lugar, atravessar a fronteira de poeira e também de lama de Lagoa do Arroz. Talvez, fosse aquele lugar que a deixava assim, tão desejosa daquele homem que sempre a via como uma menina que ficara bonita. Sempre uma criança, mesmo sabendo que ela já estava quase passando da idade de casar.

Numa manhã, Miguel pegou seu cavalo e foi para a fazenda de um amigo dos tempos de menino. Ele ia ajudar o amigo com uma vaca que agonizava para parir. Ele foi, mesmo debaixo de chuva.
Ribamar ficou em casa e Açucena foi com outras moças lavar roupa no Açude Velho, era quase uma légua de distância de sua casa, mas o açude estava cheio, as chuvas o deixaram sangrando e a roupa estava acumulada, tinha que lavá-las. Era bom ir com as vizinhas, elas cantavam e conversavam. Sempre alguém tinha uma história de alguém, de um lugar diferente de Lagoa do Arroz.
A tarde caiu e Açucena foi ficando. Sonhava novamente, a chuva que caía era água que vinha de todas as partes do mundo, de outras épocas. Ela imaginava que eram as águas que banharam a rainha do Egito, as mesmas águas que salvaram Moisés. De alguma forma, sentia que ao banhar-se naquela água que vinha do céu, tinha contato com o mundo que tanto queria conhecer.
Quando se deu conta não havia mais ninguém. Estava escuro, e a chuva estava mais grossa. Mas a noite só estava começando. Podia voltar só. O problema era a lama que não era pouca. Pegou a bacia com a roupa torcida e colocou na cabeça. Saiu andando, o pé afundando aqui, ali. O escuro cada vez mais intenso. Quem mandara ser uma boba sonhadora? Agora ia ficar atolada na lama a noite toda. Para aprender! Caminhou mais um pouco e ficou embaixo de uma grande mangueira com imensas raízes, ficaria ali esperando. Sempre podia passar alguém de carroça, vindo da roça e lhe dar uma ajuda. Tilintava de frio. A chuva parecia ficar mais grossa. Então ouviu, mesmo com o som da chuva, alguém se aproximava.
__ Oi!_Parou e ficou esperando a resposta.
__ Quem tá aí?
__ É Açucena, eu não consegui passar pela lama!
__ Fica falando, eu vou te ajudar!
__ Eu fiquei sonhando acordada e perdi a hora, nem me dei conta que a chuva ia deixar a estrada pior, às vezes esqueço que Arroz só tem poeira e lama, que é o fim de mundo, o lugar em que sonhar é perder tempo, porque aqui os sonhos nunca se realizam, os dias são todos iguais...__ Ela se calou, pois pareceu ouvir o que dizia. Não era certo expor assim seus sentimentos. Quem mandou ler todos aqueles romances? Quem mandou pensar num mundo que lhe era proibido? Antes ser uma ignorante conformada como todos os seus conterrâneos! Mas já era tarde. O estranho aproximou-se e falou com ela.
__ Açucena, quanta amargura!
Era Miguel. Estava muito escuro e ela só sabia que era ele por causa da voz.
__ Pensei que já tinha voltado pra casa.__ ela gritou pra ele ouvir.
__ Foi complicado, a vaca acabou morrendo, mas o bezerro tá vivo.
Era sempre assim. No fundo ela sabia que as coisas sempre eram compensadas, de um jeito ou de outro.
Ele aproximou mais o cavalo, e ela pôde ver sua silhueta. Ele lhe estendeu a mão.
__Vem.
Açucena segurou a mão que ele estendia, ele tirou o pé do estribo e ela se apoiou para subir. Os braços de Miguel abraçaram a cintura dela.
__ Assim vamos ficar resfriados. Vamos logo.
O cavalo não corria, pois sempre havia o risco de atolar. Mas num trecho o animal parou. O sereno afinou e eles puderam ver que havia uma imensa parede bem na frente.
__ Acho que uma barreira desmoronou.__ Ele falou preocupado.
__ Como vamos pra casa agora? O Ribamar me mata!
Ele fez o cavalo voltar e tomou o rumo de uma trilha.
__ Lembra quando eu falava de uma casinha na beira do açude?
Sim, lembrava. Ele dizia que faria uma casinha para eles morarem, na beira do açude, assim, ela poderia ver a lua, todas as noites. Espelhada na água, na lua, tudo podia ser real, ele dizia, se a gente perder a alegria, bastava olhar para a lua e imaginar que muitas pessoas depositavam nela todas as suas esperanças. Miguel foi o culpado por todas as suas utopias. Ele lhe ensinou a ser uma sonhadora. E o que era pior que sonhar? Acordar e ver que o sonho só durou uma noite, que ele se fora, e que não cabia na vida real. A vida toda sonhou e teve certeza, a cada decepção, a cada frustração, que os sonhos só aconteciam nas estórias, que a vida era dura e cruel com as pessoas como ela, ou o irmão. Que sonhar, é para quem tem dinheiro, quem mora na cidade. Sonhar num interior pobre era gostar sofrer. Não valia a pena sonhar. Sonhos eram apenas sonhos.

__ Por que tá perguntando?
__ Ela existe. Mas, não é na beira do açude, ela tá escondida, na floresta. Mas nem se eu tivesse cego eu esqueceria o caminho.
Ele foi guiando o cavalo devagar. A chuva fina, com sua temperatura baixa caindo sobre suas cabeças, gelando seus ossos. Açucena fechou os olhos e sonhou com as imensas fogueiras de noites passadas. Sentiu um calor reconfortante. Era o calor de Miguel. Mas parecia com o calor que vinha das fogueiras.

O cavalo parou. Ele desceu Açucena e em seguida desmontou. Puxou o cavalo para debaixo do teto de madeira. A casa era pequena. Miguel lhe disse que era de um homem que vivia de caçar veados, mas que uma noite, enquanto ele caçava, alguém lhe pediu para ir embora, para ele não caçar naquela noite, mas ele não ouviu disse que só iria quando tivesse o que queria, então esse alguém pulou na garupa do caçador e deu-lhe um abraço, sussurrou-lhe ao ouvido alguma coisa. E depois o caçador sentiu o peso do mundo todo nas costas. O cavalo disparou esperneando e quase o caçador cai. Depois disso, o caçador não quis mais caçar. Via a visagem olhando para ele por trás daquelas árvores e foi embora do Arroz. Nunca mais voltou e Miguel ficou com a casa. Nunca contou pra ninguém. E quando voltou, foi ver como ela tinha ficado depois de tanto tempo. Disse que tinha lamparina lá e um fogão de lenha, pequeno, mas que ele ia acender e eles iam se secar e aquecer.
Ele acendeu a lamparina com os fósforos que deixara, era como se planejasse se mudar para lá. Uma cama sem os pés, apenas com estrado e colchão estava estendida no chão, próxima ao fogão que ele acendeu em poucos minutos. Não havia cobertas. Açucena aproximou-se e se aqueceu. O calor aos poucos penetrando nos seus ossos, banindo o frio que fazia seus dentes baterem uns contra os outros.
___ Amanhã, deixo você na estrada e volto, não quero aparecer junto contigo, as pessoas vão falar.
Elas falariam de qualquer jeito.
__ Por que voltou?
Miguel ficou calado, como se não tivesse ouvido.
__ Por que não responde? Voltou por algum motivo. Você não arriscaria a vida só porque tava com saudade de casa.
Miguel sentou-se na cama e olhou para o fogo, como se estivesse evocando lembranças apagadas em sua memória.
__ Ás vezes, Rosa Negra, as lembranças de casa, são a única coisa que nos alenta quando estamos na estrada. Você se sente inseguro com as coisas que não são familiares. A insegurança é perigosa, é quase como a covardia. E a saudade, se torna uma tortura. Então, a gente se apega à lembrança mais banal. Lembra do cansaço, das colheitas que foram danificadas pela inundação ou pelo ataque de uma praga. Lembra das fofocas, das festas de sanfona, lembra da falta de energia elétrica, do cheiro de terra molhada, das pernas presas na lama misturada com estrume de vaca e cavalo. E percebe que não importa como parece ser o fim do mundo, o seu lar fica enraizado no peito e sempre dói está longe dele.
Ela lembrou que seu maior desejo era partir. Tinha certeza que não sentiria falta daquela vida, daquele lugar.
__ Se um dia sair daqui, não volto mais.
__ Pode não voltar, pode até ser feliz, mas no escuro, quando tiver só, vai lembrar, e seus olhos ficarão umedecidos, a saudade vai bater, de alguma forma não pode se livrar do passado, ele te acompanha sempre, ele não te deixa esquecer.
Açucena imaginou que ele estava falando da Dalila, a amante. Talvez, tenha sido ele mesmo, sem querer, Ribamar dissera que ela o perseguia, descaradamente. Era disso que ele não esquecia.
__ E o que é que você não esquece?
Ele não respondeu, fugiu da pergunta.
__ Olha, vem deitar. Vou ficar de vigia, quando o céu começar a iluminar, eu te chamo e você vai.
__ Por que disse que sou bonita como a princesa Rosa Negra?
__ Por que é verdade.
__ Mais a princesa é adulta.
__ E você não é criança, você já é grande e muito inteligente, fala como as moças da cidade, Ribamar tem orgulho, queria te mandar para estudar na cidade.
Ela sabia, mas era esse um dos sonhos que foram frustrados. O irmão não tinha como sustentá-la na cidade. Além disso, até pouco tempo, ele precisou muito de sua ajuda.
__ Não devia ter voltado.
Ela se afastou e sentou, o corpo tremia de frio, A roupa ainda estava úmida. Não conseguiria dormir. Ficaria a noite toda sonhando. Estava no castelo dos seus sonhos, com seu cavaleiro, e quando o dia amanhecesse, eles veriam o sol e seriam felizes para sempre.
__ Vai passar a noite toda ai, em pé?
Miguel olhava para o fogo. Virou-se para ela e falou, respondeu a pergunta que lhe foi feita antes.
__ O que me fez voltar foi a esperança de que ainda encontraria minha vida, a vida que deixei aqui. A vida que foi dura, mas também foi gentil. Aqui tinha amigos de verdade. A cidade é tão perigosa. Não se sabe se quem te sorri gosta mesmo de ti ou tá ganhando tempo para te dá uma rasteira. Aqui todos se ajudam, ou se amam ou se odeiam, sem falsidade. E eu vim, por tua causa.
Ela sentou e ouviu atenta. Devia ter fechado os olhos sem perceber e já estava sonhando.
__ Voltei porque me foi prometido uma noiva. Seu irmão nunca te contou?
Ela acenou em negativa. Lembrou-se de cenas da infância. Foi ele que disse pela primeira vez que eram noivos.
__ Sua mãe, disse que você veio ao mundo para ser minha, que se não fosse eu você teria morrido. Ela estava morrendo e me fez prometer que cuidaria sempre de você, que quando o Ribamar fizesse a família dele, pra eu te proteger, disse que eu não seria muito velho e que poderia casar contigo, que ela abençoava a gente. Foi por isso que pensei que tava com raiva de mim. Pensei que quando você ficou crescida, teu irmão tinha te contado, antes de ir embora eu disse que ia voltar, que ia cumprir minha promessa.
__ Não quero que cumpra promessa nenhuma! Não quero casar com você, só vou casar quando me apaixonar de verdade.
Se pelo menos fosse por gostar dela, gostar de verdade. Mas para cumprir com a palavra. E ele só tinha doze anos, palavra de criança não podia ser levada a sério. Sentiu-se profundamente triste. Agora sabia que estava acordada. No sonho, ele teria dito que ela era sua alma gêmea. Como nos livros.
__ Eu peço perdão por ter ido embora. Mas eu voltei e vim te buscar. Não queria ir embora daqui?
__ Não assim!
__ Não posso ficar.
__ Então vá logo!
__ Por que não acredita em mim?
__ Acredito.Mas não sou obrigada a aceitar.
__ Por que fica me olhando?
__ Por que não falou nada desde que chegou?
__ Seu irmão sabe, eu só queria que você fosse se acostumando comigo.
Ele não podia entender. Aquela era a vida que sempre repudiou. Por isso Ribamar lhe dissera que tava chegando a hora dela casar. Mas não casaria para agradar ninguém! Mesmo que o noivo fosse o príncipe que sempre esperou!
__ Não!__ Ela gritou, cheia de revolta.__ Não se casa com alguém por está acostumado à ele, mas por está amando. Sabe o que é isso?
__ Sei. Amar é muito mais do que dizer palavras bonitas. As palavras mentem.
__Não me diga!
Ele a fitou e sorriu. Sabia o que ela pensava. Isso era o resultado de todos aqueles livros.
__ Rosa Negra, eu era muito novo, mas cresci com você na cabeça. Eu te olhava e ficava imaginando como seria mulher feita. Eu te amei desde sempre. No começo como se fosse minha filha. Você era só um bebê. Mas quando eu fui embora sonhei que você seria uma moça tão bonita. Em todas as histórias que li, sempre imaginava que eram os teus olhos, o teu cabelo, queria saber qual o som da tua voz. De alguma forma, idealizar é um jeito de amar. E eu te amei, mesmo com um rosto que não era o teu, mesmo com uma voz que não era tua. Você se tornou muito mais que meus sonhos. Eu te esperei todos os anos. E por isso voltei. Por que sabia que você também me esperava. Por que quando se acredita numa coisa, se acredita pra valer. Nós acreditamos que teríamos uma vida, eu já era adulto, mas sonhei junto com a menina que você era. Diga que não acreditou, que se zangou porque eu não estava aqui pra te ver desabrochar!
Ela não disse nada. Não podia acreditar que ele pudesse ter amado uma criança.
__Mas foi melhor assim. Eu sonhei com algo e encontrei muito mais do que esperava. Se tivesse ficado aqui, Você acabaria virando minha irmãzinha, e eu não poderia cumprir minha promessa.
__ Nunca gostou de ninguém?
__ Sim, mas foi tudo rápido, eu gostei, mas amar, só se ama uma vez, só se ama de verdade uma pessoa, um lugar, um objeto.
Por que não a abraçava, se a amava como dizia, ou parecia dizer.
___ Está chovendo muito.
__ A chuva está levando o passado, amanhã com o sol, nós poderemos ir para casa e começar uma nova fase. Eu vou ter que ir embora, e cabe a você decidir se vai comigo.
__ Por que me contou só agora?
__ Por que, como disse o rei Salomão, há tempo pra tudo. Por que você não está feliz?
__ Por que... __ ela se aproximou e segurou a mão dele__ Eu não queria que tivesse voltado por causa de uma promessa.
Ele a abraçou e falou no ouvido dela:
__ Se não tivesse promessa, eu teria ficado com você de qualquer jeito. Rosa Negra, quando ouvi a estória dela pela primeira vez, imaginei ela de um jeito e disse que só casaria com uma moça que fosse como ela, você é. Se não fosse a promessa eu teria te visto e te reconhecido. Eu te amei antes de você nascer.
Açucena o abraçou com força. Não queria que fosse noite. Queria que fosse dia, assim teria certeza que tudo não passava de um sonho. Seu cavaleiro andante tinha vindo resgatá-la. Então iria aproveitar o aconchego daquele abraço, antes que o sol chegasse e lhe mostrasse algo que não sabia se queria ver. Talvez fosse isso que significava dizer que a luz destrói a escuridão. A ilusão de um sonho era como a escuridão, deixava a pessoa se conformar em imaginar e esquecer de realizar. Mas, se o sol aparecesse levando suas ilusões, lembraria daquele sonho, para sempre, porque ele seria o mais perfeito de todos os que já havia sonhado.
 
Uma noite chuvosa

Pacto de Amor terno

 
Pacto de Amor Eterno

Era leitora compulsiva de best sellers. Todos os tipos. Ler, era como respirar após uma crise de asma, era o analgésico abençoado, aliviando aquela dor de dente, altas horas da noite.Sua prancha de salvação.

Porque a vida sempre fora ingrata com ela. Sua família viera do interior, viveram na periferia, passando fome, frio, ouvindo e vivendo todo tipo de humilhação.. A sorte jamais lhe sorriu, mas com suor e obstinação, as coisas foram melhorando aos poucos.

Mas ela ainda se magoava com a vida vazia, com os sonhos mutilados. Começara a trabalhar cedo, os estudos ficando para segundo plano. Aquilo era um dia ter um diploma universitário. Sabia que não tinha talento para escrever, escrever, mas descobrira que era boa em crítica, no grupo de leitura da internet da qual era sócia, sempre recebia bons elogios. Decidiu que se um dia fosse fazer faculdade seria de biblioteconomia. Adiava aqueles bibliotecários que não sabiam dar uma indicação de leitura.

O tema da leitura do grupo era suspense e terror e o escritor que Samanta conseguiu ter acesso nas bibliotecas foi Stephen King. Naquela tarde estava triste. Acabara de dispensar um rapaz de quem estava gostando porque descobrira que ele andava com uma arma na bolsa. Não queria mais complicações em sua vida. Mas, era muito chato deixar alguém ainda gostando dele. E tinha que ler as horripilantes estórias de King. Fuçaria mais feliz lendo José Alencar, algo como Diva ou A pata da Gazela, livros leves e com finais felizes.

Pegou logo dois exemplares porque a biblioteca ficava fora do seu percurso diário. Assim, ela podia renovar os livros via telefonema e só retornaria dali a vinte dias. Terminava a leitura de um dos livros quando leu um aviso nas costas da última página. O recado dizia que, se a pessoa que estava lendo, gostasse do gênero suspense/terror, ligar para o número rabiscado. Samanta não prestou atenção à princípio. Primeiro porque era perigoso sair assim, falando com um estranho. Segundo, porque na certa, o homem do recado estava interessado em trocar exemplares, e ela não possuía livros daquele gênero.. O nome do ignoto era Paulo. Ela conheceu alguns “Paulos”, eles eram bonitos, simpáticos. E ficou pensando naquele Paulo. Seria loiro, moreno, alto, baixo, branco, negro... novo, velho, agradável, antipático? Não sabia e nem tinha que saber. Mas, a semente da curiosidade começava a germinar e sem querer, ela se via especulando sobre ele. No fim do mês, voltou à biblioteca, mas sem poder controlar o impulso, anotou o número do telefone dele antes de entregar o livro.

Voltou tarde da noite para casa. Não jantou, tomou apenas um pote de iogurte. Sentou-se no sofá e pegou o pedaço de papel que estava no bolso interno do colete que fazia parte de sua farda. Ficou olhando-o, indecisa. E, se ele fosse um maníaco sexual? Ou membro de alguma seita. E, se esta fosse a oportunidade de conhecer o homem da sua vida? Quer dizer, quantas pessoas podem ter ligado, respondendo ao pedido daquele estranho? Por fim, discou o número. Havia cinco chamadas, se ele não atendesse a próxima, era porque ela devia desistir. Mas, ele atendeu e sua voz era rouca e firme.
__ Alô?
E agora, o que diria?
__ Oi, meu nome é Samanta Nascimento, estou com um livro do Stephen King e...
__ Ah! Você está respondendo ao meu apelo? É fã dele, gosta do gênero?
Ela sorriu nervosamente, ele parecia animado.
__ Na verdade, sou novata nesse gênero. Não me encorajei até agora, mas faço parte de um grupo de leitura, e estamos trabalhando com suspense e terror. Eu só conhecia o King por causa dos filmes que passaram no cinema.
__Para ser sincero com você, escrevi aquela mensagem em todos os livros que li, sou tímido para fazer amizades, é mais uma estratégia. Pouquíssimas pessoas me ligam.
Silêncio. Samanta não ouvia mais nada, só perdia-se naquela voz bonita do outro lado da linha.
__ Alô? Samanta você ainda está ai? Por favor, não me abandona! Meu telefone não tem bina!
__ Oh! Desculpe-me. É que lembrei que ainda não dei comida para o Goya, meu gatinho__ e era mesmo verdade, apesar dela ter certeza que Goya já tinha dado seu jeito.
__ Vamos nos encontrar? Já que somos leitores de best sellers podíamos trocar experiências, sei lá, topa, vai!
Talvez ela tivesse se recusado se aquele “topa, vai!” não lhe tivesse soado tão suplicante. Talvez ele fosse também alguém muito sozinho.
__ Certo, aceito.
__ Maravilha! Amanhã, pode ser?
Ela imaginou que se não fosse tão tarde, poderia ser ainda naquela noite.
__ Pode.
__ Pensei na praça Gonçalves Dias, está no teu itinerário?
Não, mas, justo amanhã era eu dia de folga!
__ Pode ser.
__ Às cinco. Adoro o pôr-do-sol visto dela, é inspirador!
Seria ele um tipo romântico?
__ Como faço para saber que é você, Samanta?
Ela vestiria um vestido azul, solto e comprido, e por via das dúvidas, estaria com um livro do Stephen King. Paulo não perguntou sua idade, nem o que fazia para viver. Era um homem de trinta anos, se descreveu com moreno, 1,70 de altura, tinha miopia e por isso usava óculos.

O sol estava se pondo cedo. Às cinco horas, o céu já começava a ser tingido pelo escarlate. Paulo viu, sentada num banco próximo á estátua do poeta uma moça bonita, cabelos amarrados num rabo de cavalo, rosto curto, olhos grandes e castanhos como os cabelos, tez amendoada, trajava um vestido azul e tinha um livro de King no colo. Ele calculou sua idade entre dezoito e vinte anos, e como ele tinha e expressão um tanto melancólica.
__ Olá, Samanta!
Ela ergueu o olhar e sorriu docemente. Não conversaram sobre livros, não naquele dia. Um mês depois, ele a chamou para conhecer sua casa. Era ajeitada, confortável. Ele era funcionário público e ganhava quase três mil por mês, o que era um ótimo salário naquele estado. Podia-se dizer que vivia remediavelmente bem. Mas, não era isso que agradava Samanta. Mas o seu romantismo, a sua paciência. Ele sempre estava tentando agradá-la, sempre sabia quando devia ficar em silêncio e a hora que só um abraço resolvia. Amava-o. Talvez fosse precipitado, mas sempre que gostava de alguém, tinha a sensação de que não duraria muito, que era algo superficial, volátil. Com Paulo, não tinha essa sensação. E que sentimento bom era aquele!

Quando sentiu que Samanta estava mais segura em relação à ele, Paulo a convidou para passar a noite com ele. No dia seguinte Samanta acordou com beijos sobre suas costas.
__ Oi, princesa.__ Ele lhe saldou com um belo sorriso cheio de paixão.__ Casa comigo princesa, vamos ficar juntos?
Ela o abraçou com força. Teria dito sim se um nó não tivesse preso em sua garganta. À noite, Paulo, parecia mais feliz que nunca, trouxera as alianças do noivado. Mas, antes propôs algo. Samanta achou estranho, desnecessário.
__ Um pacto de sangue? Por quê?
__ Porque é uma promessa de amor eterno. Como nos livros. Assim, estaremos ligados para sempre. Nada poderá desfazer nossos laços.
__ Mas eu te amo tanto! Tenho certeza que vou querer viver ao teu lado para sempre.
__ É só um ritual. Que mal há? Será só uma picadinha no indicador.
Que mal havia? Seria só uma picadinha.
__ Alma e sangue estão unidos substancialmente. Assim, eu me entrego a você, no corpo e na alma e você à mim. Ela perguntou-se se merecia tanto amor? Era como num sonho.

Seis meses depois eles estavam casados. Não viajaram em lua de mel, porque nenhum dos dois não obteve dispensa do trabalho. Quase dois meses depois do casamento, Paulo saiu à noite, queria comprar um vinho especial para acompanhar a lasanha que Samanta fizera. Era a primeira vez que algo feito por ela tinha um aspecto apetitoso. Definitivamente era uma ocasião para se comemorar.

Samanta preocupou-se coma demora. Esperou uma hora e quando se preparava para sair e procurá-lo, o telefone tocou. Ela marchou em sua direção,uma nuvem sombria turvando-lhe a vista. Paulo não voltaria naquela noite. Nunca mais. Foi baleado quando tentou socorrer um idoso que estava sendo assaltado. A morte foi instantânea.

Depois daquela noite, não houve mais luz em sua vida. Porque ninguém vive pela metade. Passava os dias mecanicamente. Do trabalho para casa, cama, trabalho. Nada mais fazia sentido. Era muito difícil ver os dias passarem, lentos e pesados. Sabendo que ele não voltaria nunca mais.

Já fazia um mês. Ela tentou ler algo, mas ler lembrava Paulo e ela sempre acabava chorando convulsivamente. Dormiu cansada de chorar. Talvez fossem umas três da madrugada. Sentiu mãos masculinas massagearem suas costas, subindo até seus cabelos, um movimento lento e reconfortante, só como Paulo podia fazer.
__ Oh, continue, sim?
Abriu os olhos devagar e foi contemplada com o sorriso expansivo dele. Acariciou seu rosto como se tivesse uma eternidade sem vê-lo.
__ Tive um terrível pesadelo. Sonhei que você tinha me deixado aqui, sozinha.
Ele a beijou nos lábios carinhosamente antes de responder.
__ Nunca, Princesa. Nunca vou te deixar. Estamos unidos para a toda a eternidade, d corpo e alma.
Ela sorriu. Que bom. Que maravilha. Encostou a cabeça no ombro dele e voltou a dormir.

Dois meses se foram e o tempo continuava na sua parcimônia. Numa manhã, enquanto verificava algumas planilhas, um homem parou à mesa e ficou observando-a. Incomodada, ela parou o que fazia e o encarou.
__ Oi Samanta, lembra de mim?
Claro que sim. Há pouco mais de um ano, ele a convidou para um cinema, só que nunca apareceu. Era a primeira vez que o via desde aquele dia. Mas, aquilo já não lhe importava.
__ Sim, como vai Celso?
__ Bem, agora. Não esqueci que te devo um cinema. Foi muito chato o que aconteceu, mas tive que viajar urgentemente para São Paulo, era minha mãe. Ela estava morrendo, mas agonizou até mês passado. Voltei ontem ,mas quero pagar minha dívida.

Ela pensou que não era certo ,afinal não havia completado nem um ano que Paulo partira. Mas, por ouro lado, não precisa transformar aquilo num encontro amoroso, e precisava mesmo de um pouco de distração.

Celso passaria na casa dela para pegá-la. Mas, novamente ela esperou em vão. Samanta só saberia dois dias depois, que um flanelinha o encontrou num beco escuro do centro histórico vítima de um ataque cardíaco fulminante. Mas até lá, ela achou que Celso abusava demais de sua boa vontade.

Esperou até tarde por ele até que desistiu. Ficou com Goya, vendo televisão. Foi dormir sabendo que só precisava fechar os olhos para cair no sono. Como todas as noites, Paulo viera até ela, em sonho, mas, em sua mente, era como se aquela fosse a sal realidade.

Paulo estava triste. Samanta quis confortá-lo sem saber o motivo.
__ Você não tinha o direito!__ Seu tom era de acusação, e sem mais uma palavra a tomou nos braços e a beijou com raiva, ela teve medo. Pela primeira vez, o beijo era um castigo, seu lábio inferior ficou ferido. Paulo a afastou e deu-lhe um tapa no rosto.__ Não faça mais isso, egoísta, eu te amo!

Samanta acordou trêmula. Acendeu a luz do abajur. Foi um pesadelo? Por que não conseguia lembrar? Sentiu gosto de sangue na boca. Devia ter mordido o lábio enquanto dormia. Levantou-se e foi ao banheiro. Se tivesse mirado o espelho perceberia a marca de uma mão no lado esquerdo da face. Mas, não olhou, porque era supersticiosa, tinha medo de ver um ente malévolo que quisesse puxá-la para dentro do espelho.

Voltou para a cama e teve a sensação de que sentira o perfume de Paulo. Então chorou. Porque a saudade era como chumbo quente em sua alma, doía e pesava. “Por que você tinha que partir?”.

Estava chovendo e Samanta havia saído tarde do trabalho. Àquela hora, o ônibus que circulava no seu bairro já tinha encerrado seu turno. Teria que pegar um táxi. Chamou por um, mas um homem à sua frente teve mais sorte. Ele pareceu percebê-la porque propôs que eles dividissem o acento.
__ Oi! Ainda bem que vamos para a mesma direção, não é?
Ela apenas sorriu com simpatia. Cruzou as pernas mecanicamente como fazia sempre, mas as descruzou quando percebeu que ele a observava.
__ Desculpe perguntar, mas qual o seu nome?
__ Samanta.
__ O meu é Marcelo, prazer.__ Ele lhe ofereceu a mão e ela a apertou.__ Seria mal interpretado se te pedisse o número do telefone?
Ela franziu o cenho, não sabia se devia, era um estranho.
__ Por que não me dá o seu?
Ele sorriu com tristeza.
__ Sei que não vai ligar e eu queria muito te conhecer.
Samanta suspirou e se rendeu. Ma, para mais segurança sua, deu o número do trabalho. Marcelo garantiu que ligaria no dia seguinte.

Quando ele estava já na rua indo alegremente para casa sentiu um golpe de ar. Seus olhos não enxergaram mais nada. Alguém pareceu perceber que ele precisava de ajuda e o levou para o hospital.

Samanta esperou em vão o telefonema. Era como se tivesse escrito no seu rosto: “Faça-me de palhaça!”. Goya estava estranho quando ela chegou em casa, depois do trabalho. Fugiu apavorado quando a viu. Trouxera um livro da biblioteca,mas, só em fitá-lo sentiu-se terrivelmente triste.

Naquela noite demorou para dormir. Quando aconteceu, estava emborcada, os cabelos longos espelhados pela cama. Acordou com um safanão e uma dor terrível no couro cabeludo. Alguém puxava com força os seus cabelos.
__ Ai!__Ele gritou assustada.
__ Por que você está fazendo isso comigo?__ A voz de Paulo era cortado por soluços.__ Como pode ser tão egoísta, eu te amo!
Samanta sentiu-se culpada, não sabia pelo o quê. Mas fizera algo que magoara Paulo.
__ Por favor, me perdoa. Eu não faço mais!__Sentiu a pressão diminuindo na sua cabeça. Samanta virou-se, ele estava com os olhos vermelhos.__ Eu te amo, não quero te magoar.__ Enxugou o rosto dele e jogou-se nos seus braços.

Tudo parecia ter melhorado naquela última semana. Samanta estava novamente na biblioteca, tinha desistido de voltar e ler. Era impossível não associar livro e Paulo, e era sempre doloroso lembrar dele. Já estava subindo as escadas encaminhando-se para a sessão de devolução quando um rapaz desengonçado esbarrou nela e derrubou todos os livros.
__ Oh, me desculpe.__ Ele a ajudou a recolher tudo e não escondeu sua admiração, ma algo dento dela a levou a ignorá-lo totalmente.

Ela passou cerca de dez minutos esperando na fila até que foi atendida. Havia já voltado para a saída quando viu um movimento anormal em direção aos banheiros. Olhou em volta e ouviu quando alguém dissera que um rapaz desajeitado havia escorregado e bateu com a cabeça na pia e ao que tudo indicava, tinha sofrido um traumatismo.

Pobre rapaz, ela pensou, mas também parecia que era de geléia, todo desengonçado! No entanto, algo pareceu sussurrar ao seu ouvido. E como se uma peça de dominó tivesse vacilado em direção às demais, e todas despencaram em simetria. No último fim de semana havia recebido o telefonema de Marcelo, ele lhe dissera que foi vítima de vândalos__ achava__ e seus olhos foram atingido, ficou um tempo sem poder enxergar, mas já estava s recuperando, disse-lhe que foi logo que se despediu dela, e que não percebeu a presença de ninguém. E Celso, que foi acometido por um ataque fulminante no coração, mesmo quando seu histórico médico não indicasse que tinha qualquer problema cardíaco. Havia simetria naquilo. Todos eles mostraram interesse por ela. Agora, ela lembrava dos sonhos, de repente, duas realidades se mostravam claramente à sua frente. Lembrou-se dos sonhos com Paulo, dos dias em que amanheceu dolorida e machucada. Voltou correndo para casa. Goya estava arrisco. Foi ao quarto, olhou aterrorizada para a cama, talvez ela tivesse só impressionada.

Foi ao banheiro, lavou o rosto, sentiu alguém atrás dela, levantou o olhar e não se surpreendeu ao ver a imagem de Paulo refletido nele.
__ Por que fez aquilo?
Ele a fitou zangado.
__ Você queria o quê? Que eu deixasse, que eles a fizessem esquecer?
Esquecer? Sentiu um tapa no rosto, uma força sobranatural a empurrou contra a parede, sentiu mãos nos seus braços sacudindo-a severamente.
__ Você me machuca tanto! Eu que fiz tudo por você!
Ele a estava machucando, ferindo-a, e seu terror aumentava porque não o via, apenas ouvia a voz queixosa, o peso das mãos violentas.
__ Pára! Você está me machucando, não tem o direito!
Sentiu que foi abandonada. Recolheu-se para o canto do banheiro, abraçando-se defensivamente.
__ Machucando você?__ Samanta atreveu-se a olhar para o espelho e viu Paulo refletido. Ele chorava derrotado.__ Perdoe-me, eu tenho medo, não quero te perder, não quero ter uma eternidade longe de você.
Samanta sentou-se mais corajosa, caminhou e ficou de frente ao espelho.
__ Uma eternidade?
Ele a fitou nos olhos. Era o olhar mais triste e solitário que já vira.
__ Nós somos um. Não lembra do pacto que fizemos? Por toda a eternidade.
Ela sorriu de felicidade.
__ Não precisa machucar ninguém. Estava me sentindo só, abandonada por você. Mas agora é diferente. Se for está ao meu lado eu não preciso de mais nada. Seu egoísta, nunca haverá uma eternidade entre nós, eu te amo!
 
Pacto de Amor terno

Como preciso de você

 
Não preciso de você
como o homem precisa dos sonhos
como o sol precisa da sua luz e calor
e a água precisa de sua falta de cor e sabor

Não! Não é assim, com certeza
Como a cerveja precisa do fermento
e os moinhos precisam do vento
como o rio precisa da correnteza

Não! Não mesmo, não é desse jeito
Como a rosa precisa do espinho
o sorriso da felicidade
e o mar da maré

Quisera precisar de ti
Como a lua precisa do sol
o pão do trigo
Como as serras precisam da montanha
Como o verde precisa do azul e amarelo
Quisera precisar de você
Como o caminho precisa de uma direção
a ponte de um obstáculo
Os pássaros das asas
as nuvens do céu...

Você é mais vital
Você é mais presente
Você é mais que o tempo
É mais que o firmamento
é que que tudo do que a vida depende

Você é assim
tão importante para mim
como foi o sopro que recebeu Adão
O sopro que o despertou para a vida
Você é mais que a vida
É sua fonte, sua continuidade, seu fim!!!
 
Como preciso de você

Sem título

 
Não lembrarei do rouxinol
Pois não houve rouxinol nenhum
a cantar para nós

Não devolverei as asas do cupido
Pois não as tomei emprestadas
para escalar nenhum muro de pedras

Não restituirei a lua
Pois não a roubei para ti
Não direi adeus
pois não houve um presente
para fazer-se dele
um doce e saudoso passado...

Este poema é parte do meu passado, dele já me livrei, já me curei!
 
Sem título

A solidão do moreno

 
A Solidão do Moreno

Cedo ou tarde, todos vivem uma história de amor, quem disse isso foi Flaubert. Devo concordar. A ficção se consiste em dar final feliz a uma história que já começou errada.

No vale de uma serra, um sítio esquecido por todos, abandonado pelo mundo desenvolvia-se, sendo bem cuidado pelo dono, com horta, pomar, um açudizinho, criação de galinha, porco e uma vaquinha para dar leite. Teobaldo desgostara-se da vida.

Ao dar-se conta de que seu amor o abandonou, que o tempo passado sem uma palavra da parte dela só significava que Márcia não voltaria, que ele, Teobaldo, era página virada, ou destacada da vida dela.

Moço bonito, visado pelas conterrâneas para marido,não contente com a mesmice das moças, recolheu-se à solidão do sítio. Lá, apenas sobreviva. Cuidava sozinho da lavoura de arroz, milho e feijão; cuidava dos animais e da horta com muito esmero, como um pai zeloso cuida da família. Família, estava certo, não teria. Trazia o coração ferido, desiludido. Sempre apaixonado pela prima distante.

Um dos poucos sonhos que tivera, realizara a pouco, vendendo frutas e legumes na feira, sem outros gastos, economizou o suficiente para comprar um violão.

Quando a noite se anunciava, tingindo o céu com nos variados, Teobaldo arrumava lenha no terreiro,trazia o tamborete onde sentava e dedilhava notas confusas. Tocava com instinto, cantava com o coração, melodias tristes como que jorradas da alma do infeliz lavrador. Sem esperança de amar novamente, mas intimamente pedindo à Deus que levasse seu canto aos ouvidos dela, que funcionasse como um sexto sentido, ela, sem saber por que, a lembrança de Teobaldo, bandida, aparecendo na cabeça, uma dorzinha no peito e a vontade de voltar, de ao menos, após um abraço confortante, olhá-lo nos olhos e dizer “adeus, que tenho que partir, tu não és para mim Teobaldo.” Gostava de ouvir aquele português certinho na voz suave dela.

Era impossível Teobaldo lembrar-se, sonhar sem derramar algumas lágrimas, principalmente quando o vento forte amansava e tocava seu rosto como um beijo carinhoso. Resignado, o moreno recolhia-se à casa, estirava a rede e adormecia num balançar cadencioso.

Ainda não eram seis da manhã, porque o céu ainda estava no cinza da madrugada. Teobaldo abre abruptamente os olhos. Alguém bate palmas insistentemente lá fora. Mas, será possível? O caminho até ali é tortuoso, carro passa há um quilômetro e com dia claro, perto do meio dia. Àquela hora? Com certeza é má notícia, podia apostar que era caso de morte. Levanta-se preocupado, tira a tramela da porta. Ele é que quase morre, tamanho é o susto, ou então já estava morto e agora estava a caminho do grande túnel. Diziam que, quando se morre, a vida virava ao avesso e a alma vai voltando para trás até chegar no início de tudo.
__ Não podia esperar mais uma hora, desde que cheguei ontem, na boquinha da noite. Só um desejo me consumia, só uma vontade me movia. Ver-te, sentir teu abraço, ajoelhar-me aos teus pés e pedir perdão pela mina arrogância. Pensei que minha felicidade estava nos estudos, em bom emprego,no reconhecimento público, mas, só fui infeliz, paguei caro e aqui estou, humildemente te pedindo, aceita meu arrependimento, diga que ainda me ama!

Teobaldo, rígido ouve cada palavra como se ouvisse o canto dos anjos. Era ela! Parece então que sua esperança era certa, ela foi tocada e voltou! Com a ponta do indicador, Teobaldo enxuga as lágrimas dos olhos dela.
__ Oh, me abrace! Morro se você não me abraçar Teobaldo!
Obediente sempre, teobaldo e toma nos braços e a aperta. Sem largá-la jamais, ele a faz entrar. Apresenta-lhe a casinha humilde, erguida com suas próprias mãos.
__ Então Márcia, é capaz de viver nessa pobreza?
Comovida com a insegurança dele, ela o abraça pela cintura, a cabeça encostada no peito forte do amado e responde:
__ Sim, porque já tenho o meu tesouro. Para mim, tudo está perfeito. __ larga-o, olha em volta e atalha.__ mas, algumas mudanças serão bem-vindas!

A alegria voltou a reinar em Teobaldo. A alma ferida começa a sarar. Márcia quer compartilhar do seu mundo. Aprende sobre a horta, a criação, a tirar leite, exige que Teobaldo faça cadeiras com cipó e varas e bambu. Decora com almofadas que trouxe da cidade, põe cortinas na janela, espalha lampiões pela casa. Agora só há luz, nada mais de escuridão, faz de tudo, só não mata galinha e porco porque tem dó, sente vertigem em sangrar um ser vivo. Teobaldo, de surpresa faz uma estante, e Márcia manda trazer seus livros, nas horas vagas do dia lê para teobaldo porque á noite estraga a vista. Mas principalmente, porque á noite gosta de ouvir Teobaldo cantando para ela. Quando o repertório chega ao fim, os dois entram, dormem, um no aconchego do outro. Satisfeito, teobaldo agradece à Deus, não podia desejar outra vida.

O sol bate no rosto de Teobaldo. Pelo toque já vão oito horas da manhã. Por que Márcia não o chamou? Tinha que brocar a terra, logo viriam as chuvas e tinha que está com tudo semeado. Coloca o pé no chão. Cadê o tapetinho que Márcia deixava ali? Olha para o quarto e sente falta de outras coisas. Onde estão as cortinas, os vidros de perfume em cima da penteadeira? “Márcia?”. Caminha pela casa, só a solidão, o vazio. Foi sonho, sonho! Só podia ser. Márcia jamais deixaria a cidade por aquele fim de mundo. Ouve palmas. Alguém o chama. Vai desalentado, vontade de não ter acordado. De viver naquele sonho bom para sempre. Vira a tramela da porta, sabe que tem os olhos marejados. E, eis que lá está, abraçando-se, desolada e triste. É Márcia e assim que o vê abre a boca para falar. Teobaldo se adianta.
__ Entra Márcia, vive comigo esse sonho!
Ela enxuga as lágrimas, joga-se no seu abraço. Teobaldo a puxa para dentro e o idílio recomeça.

este conto foi baseado emuma história real.
 
A solidão do moreno

Meu espírito

 
Meu espírito é algo assim
sem forma, sem matéria
As vezes toma corpo
mas logo desmancha-se
como escultura de poeira seca

Quando isso acontece
a carne chora
e junta novamente
os fragmentos que dele restaram

E ele se reconstitui
Porém sem identidade
As vezes é Ema Bovary
tola e caprichosa
Outras vezes é Lucíola
Cortesã abrindo mão de tudo
por um sentimento puro...

Pode ser a fiel ou mesmo
atrevida cativa
acorrentada a seu senhor
Ou a santa imaculada
tomando para si as dores do mundo

As vezes é a Fada Azul do Pinochio
e outras
Morgana,
malvada e traiçoeira irmã de Artur

Pode ser Lucifer tentando Cristo
E a virgem seguindo-o devotamente
Existem vezes que é Iracema
Selvagen e inocente de malícias
Mas, também é Aurélia ferida
tramando planos de vingança

As vezes chega a ter sangue
mas, de repente
percebe água correndo nas veias

Como o boneco de lata
procura um coração
mas, lágrimas sobem à face
ao sentir esse órgão
pesado e oprimido
no cárcere do peito

Puro e ao memos tempo enlameado
Tão augusto e também malvado!
Afinal, quem é?!

Lindo e perfeito
qual a Esmeralda?
ou feio e disforme como Quasímodo?
As vezes pensa ser vela acesa
mas logo torna-se o vento
que apaga-lhe a chama

Há horas que é leve viração
Para torna-se uma trágica e fatal
tempestade além mar
É a brisa da manhã
e o tufão
que destrói toda uma cidade

É o perdão e a vingança
O "querer" e o "não posso"
Não sei...
É um turbilhão
Um enigma

Mas...

Eu sou mil faces em uma só
Mil mentes concatenadas

Quem sabe
um dia eu descubra
que sou um feitor
que com correntes, fogo e chicote
prende e castiga meus sonhos
Mas, eles acabam fugindo
E na tentativa de esconderem-se
da mão bandida
Com temor de tornarem-se quimeras
tomam várias formas...

...Talvez eu seja isso
Um sonho cativo
que leva a vida a fugir
da sua verdadeira imagem
 
Meu espírito

Confesso que também me omiti

 
Faz tanto tempo que Manoel Bandeira escreveu aquele poema, O bicho. Sempre que o leio fico chocada com a cena, especialmente com a exclamação do poeta “o bicho, meus Deus! Era um homem!”. Não importa quantas vezes eu o ler, será sempre assim. Imagine caro leitor, o que senti quando vi a cena real. Fiquei letargiada. Moro nesta cidade há muito tempo e ainda consigo me chocar. Não com a politicagem, não com o descaso, com as promessas mirabolantes em época de campanha eleitoral. Não são as paredes pendentes de uma escola pública, nem a falta de professores que deixa centenas de estudantes sem aula durante cada ano letivo o que mais me choca. Com isso já aprendi a racionalizar, sei que se me esforçar em ser uma pessoa diferente e fizer melhor, já me sentirei mais tranqüila, sei que uma andorinha só não faz verão, mas serei uma a tentar e como disse meu grande ídolo, Vincent Van Gogh, ninguém está sozinho na crença de que as coisas são verdadeiras.

No entanto, ainda me choco com o coração empedernido das pessoas. Foi há muito tempo que me defrontei com essa verdade, o homem perdeu a capacidade de Amar. Sim, pelo menos grande parte dos que cruzaram o meu caminho. Lembro bem, a primeira vez que atentei para o fato, foi no ano de 2001. Parecia que alguém havia resolvido encenar o poema do Bandeira, que havia uma câmera escondida em algum lugar e gravavam. Sim, tentei me convencer, era uma gravação, todos em volta estavam sabendo. O que ocorreu foi o seguinte: Estava eu novamente naquele ônibus das sete horas que me levava para a escola todos os dias. Existe aqui tal Avenida João pessoa que todos sabem é tradição haver engarrafamentos irritantes. Sempre no início daquela avenida, no sentido Filipinho-João Paulo. Foi bem nesse ponto que o ônibus parou. Eu sou uma observadora do meio que me rodeia. Gosto de ver para me inspirar. Num dos lados da avenida, um caminhão descarregava frutas-do-conde, centenas, um bocado caía e escorregava para o esgoto, misturavam-se a tomates podres, repolhos enegrecidos... Um grande desperdício que foi mais chocante quando ao acompanhar o deslizar de uma daquelas frutas que caíam do caminhão vi a cena, como se fora um flash back: o homem era jovem, trinta e cinco anos no máximo, maltrapilho, o rosto coberto por uma barba consideravelmente grande, ele estava próximo a um poste remexendo nas sacolas postas ao pé da calçada. Ele remexia e enchia a mão de algo viscoso, que, perdoem-me pela dureza das palavras, sério, sinto um nó na garganta só em lembrar e entendo a exclamação do Bandeira, eu entendo porque eu a repeti, sem perceber, sem intenção porque nesses momentos incongruentes não podemos pedir respostas senão ao Criador que tudo sabe sobre a sua criatura, “meus Deus!” Eu dizia e implorava mentalmente para ele não colocar aquilo na boca, mas ele o colocou, com gosto, com vontade e apesar da pressa com que fazia aquilo, era preciso nas abocanhadas, para que nenhum grão, ou gota daquela mistura vermelho-negro-branco-amarelo de tomates podres, repolhos, batatas e sei lá mais o que caísse, parecia um vômito! Nunca me recuperei daquela cena. Porque mais chocante que ela foi o que veio depois. Olhei para os lados, como que pedindo socorro àquelas pessoas, “alguém o ajude”, “alguém faça alguma coisa”, tinha uma lanchonete ali, a mulher estava fritando pastéis, sei lá, alguém ajudasse o seu próximo! Mas o que vi, não foram olhares solidários aos meus apelos, foi escárnio, repulsa, uma verdadeira negação de qualquer sentido de ética cristã. Foi nesse momento que senti vontade de descer e fazer aquilo que pensei, mas não o fiz, tive medo do homem que já estava tão exposto, tão embrutecido com sua indigência e que ele voltasse sua revolta contra minha atitude, pensasse que como os outros eu estivesse escarnecendo do seu sofrimento. E o ônibus se foi, e meu coração adquiriu peso de chumbo, pensei naquela pobre criatura por muito tempo, fiz um conto onde ele aparecia só que não tive coragem de usar palavras duras, fui poética, falsa. Porque sabia da minha covardia e que havia ajudado aquelas pessoas a aumentar a fome daquele homem. Eu pensei que era boa, mas descobri que era uma menina má!

E hoje retomo aquela imagem que guardei na memória, na última gaveta para que não mais me perturbasse. E se hoje a trago de volta é porque aconteceu de novo. Não sou ingênua e sei que isso acontece sempre nas grandes cidades, mas não foi a fome, foi a atitude, ou a falta dela, uma coisa é alguém falar, a televisão mostrar, nada substitui a impressão pessoal, o testemunho vivo. Hoje, eu estava no ônibus, a caminho da universidade, o mesmo engarrafamento, mas em outro logradouro. Perto de um bar, ainda com alguns convivas da farra da madrugada sentados, conversando animadamente, os vendedores lavando louças, limpando a calçada, o sol das sete e meia brilhando já quente, as pessoas iam e vinham, passavam normalmente, paravam e continuavam. Um homem caído no chão. Cabeludo, usava uma bermuda suja, estático no chão, a respiração ondulada do sono, ou bebedeira. Mas não quero discutir isso, quero falar da apatia daqueles que iam e vinham, ninguém se incomodava com aquela presença inadequada. Era um ser humano, num momento de fraqueza, outra vez, só que agora não havia escárnio, não havia nada. Era corriqueiro, banal.

E foi assim que cheguei à conclusão que a vida dos homens não vale nada. Nada, é algo pelo que não vale mais a pena lutar, proteger. Estes são os exemplos, e agora uso aquela palavra que detesto_ corriqueiro. É verdade, as pessoas não têm mais a preocupação nem com as aparências. O “último samaritano” deixou o mundo há mais de dois mil anos, habita as páginas do evangelho. E Paulo disse que o mais importante que a fé, ou a sabedoria era o Amor. Onde está o Amor? Por que, de onde vem tanta indiferença para com o próximo? Será, meu Deus, que o dinheiro, a preocupação com a sobrevivência, a vantagem de ser o melhor, de estar bem colocado matou a nossa capacidade de Amar? Não é apenas ignorando um bêbado ou um indigente na rua que demonstramos a nossa falta de Amor. São em pequenas coisas, é negar a alguém uma informação por medo da concorrência, é se escusar de fazer sua tarefa porque tem sempre um “trouxa” que vai fazê-la. É assim que começa, nas pequenas coisas, e vai num crescendo. Toda vez que me omito lembro-me daquele homem, e que eu posso ter sido um de seus possíveis assassinos, porque ele não deve ter sobrevivido já se passaram sete anos, é física, química, o corpo precisa ser alimentado, não só de pão, mas de idéias, e aquele homem não teve dos seus próximos nem um, nem outra. Drummond perguntou o que pode uma criatura senão entre criaturas amar, e eu respondo, podemos virar os olhos para o outro lado e continuar em frente, afinal o que importa sou eu, eu, se me esforço mereço, quem não faz nada tem o que merece.

Sim poetas, assim caminha a humanidade, empedernida, seca sequiosa de Amor porque ele está ficando raro, muito raro.

Não podemos matá-lo, porque independente de religião, ele é Deus, o Dom Supremo do nosso criador, a resposta irrefutável de que não podemos negar sua existência, é o combustível de nossas almas. Pergunto por que as pessoas não conseguem mais ser felizes apesar do mundo oferecer tantas oportunidades de felicidade. Não conseguimos mais Amar. Estamos entre criaturas como nós e nos recusamos a amá-las!
 
Confesso que também me omiti

Elementos: fim

 
Epílogo

Queria não ter que sentir saudades. Queria ser boa o suficiente para não me chatear com Deus por ele ter me tirado você.
Você! Ainda ouço seus passos na nossa casa. Ainda sinto o cheiro do teu jardim. Não pude cuidar dele. Mas tem outra pessoa cuidando por mim.
Diz... Quando tua ausência vai deixar de doer? O que dói mais é a forma estúpida como tudo aconteceu.
Pela primeira vez percebi como a natureza está presente em nossas vidas. Você sempre dizia isso. Acho que nem em você prestei atenção. E agora, é tarde. Acho que não te amei como você merecia ser amado. Hoje quando acordei, abri a janela e ouvi alguém dizendo essas palavras: ‘É cedo pra dizer adeus! O sol ainda lança seus raios sobre nós. Vencemos as barreiras da poeira, dos retratos velhos, das teias. Então por que tanta pressa? Não precisamos preocupar-nos. Nem com enxurradas, nada. É tempo pra vencer os medos. É tempo pra quebrar antigos costumes. É tempo pra enterrar velhos e novos temores. Dê uma chance ao sentimento. Não feche a porta dos sonhos. Não feche os olhos pro horizonte. Ei! Escute com atenção, a fome pode ser combatida, a miséria, a ignorância pode ser vencida. Mas, meu bem, um pássaro com as asas mutiladas, jamais torna a voar. Fique no seu ninho, até que o tempo te ajude a sarar a tua última cicatriz.’

Quando ouvi isso, percebi que não era um alguém, mas eu. Eu fui tocada pela beleza do mundo. Vi que me render a essa dor é egoísmo. O mundo tem tudo que preciso para ser feliz, e você meu amor, estará sempre aqui comigo, no meu coração, eternamente.”
 
Elementos: fim

Noite em São Luis

 
“Ainda uma vez adeus!...”. Eduardo não pensou que poderia voltar a esta terra. Partiu prometendo voltar, mas no peito a certeza de que não seria assim. Cinco anos se passaram, ele mudou, a cidade mudou... Para melhor, poderia afirmar.
Estava sentado à sombra da estátua do grande poeta maranhense, na Praça Gonçalves Dias. À sua frente, o encontro dos rios Bacanga e Anil com o mar. Logo depois da ponte José Sarney, a cidade dos edifícios, como ele gostava de chamar aquele lado de São Luis. No entanto, preferia o lado de cá. Com seus casarões testemunhando uma época de glórias, de sonhos. Era que passou, e cujos testemunhos erguiam-se e sobreviviam bravamente ao tempo, ao clima, ao descaso. Cada paralelepípedo, cada beco, cada azulejo... Tinham um sabor de nostalgia, viveu apenas cinco anos ali, mas as lembranças que levou consigo, eram como uma ferida não cicatrizada que hora e outra latejava em seu coração. Existia poesia nesta cidade. Não era falso que São Luis inspirava amores, embalava sonhos. Talvez, por causa do passado que teimava em reinar, ou fosse o vento que parecia tão acolhedor quanto sua gente.
Consultou o relógio. Meia hora e a tarde se despediria. Sorriu consigo mesmo. Sexta noite, centro histórico... Em sua adolescência, na primeira noite de “excursão” em São Luis passou por um grande sufoco... Estava com três colegas da escola. Queriam lhe apresentar sua cidade. Andaram por museus e ruas. Racharam os trocados que tinham nos bolsos e compraram sorvetes. Um guia turístico levava um grupo de franceses. Ele ficou ouvindo, achou bonito o sotaque dos turistas. Muito admirado contemplou a arquitetura neoclássica do Palácio dos Leões.
Uma decepção que tivera foi com o aspecto de decadência e as ruínas que encontrou durante o passeio. Se as coisas permanecessem assim, o maior acervo arquitetônico histórico da América Latina não resistiria. E o que seria de São Luis sem a sua alma? Onde dançariam aquelas mulheres do tambor de crioula, ou os dançantes de bumba-meu-boi? No recolhimento de suas comunidades e um dia (oxalá Deus jamais chegasse esse dia!) possivelmente seriam esquecidos. Mas, havia ainda esperança. São Luis foi tombada como patrimônio histórico cultural, já fazia quase um mês. Não permitiriam que aquilo virasse poeira e esquecimento. Foi o que João, o líder do grupo lhe dissera.
Ficaram ali, na Praça da Seresta, um auto de São João estava sendo apresentado aos turistas. Seus colegas queriam ir embora. No entanto, ele ficou. Como poderiam enfadar-se num palco daqueles, com aqueles lampiões tingindo as calçadas com aquele amarelo ouro envelhecido, como podiam ignorar não valorizar o que tinham? E a noite caía suave. O Reviver parecia ganhar mais vida. As pessoas se reuniam nos terraços dos bares, nas praças... Quando o cansaço o venceu, Eduardo consultou o relógio, já passava das dez da noite. Sua mãe estaria histérica em casa, ele não conhecia São Luis, provavelmente ela já havia contatado a polícia! Sorriu satisfeito, a pequena aventura valeria a bronca que escutaria antes mesmo de pisar dentro de casa.
Pegou o caminho da Rua da Estrela e saiu, tentando lembrar qual rua ou beco deveria seguir para chegar ao Mercado Central e pegar a condução para casa. Tinha certeza que errara o percurso. Chegou num trecho onde os lampiões não tinham luz, na escuridão iria se perder de verdade! Quem já esteve em lugar estranho conhece essa sensação de medo e insegurança. Era sempre assim. Refez os passos, ainda não tinha perdido o controle! Voltou por onde viera. Começava a suar frio. Era mesmo um maricas! Onde já se viu, tremer assim?! Não sabia por que se sentia tão amedrontado. Não fazia sentido!
De repente, parou. Tinha certeza que ouvira um gemido alto, cascos de cavalos sobre as pedras da rua, não! Era um grito! O som parecia cada vez mais perto. Ele quis correr, mas estava simplesmente paralisado! O som se aproximando. Era um grito de agonia. Anos de dor traduzidos naquele som terrível. Sem saber mais o que fazer, Eduardo fechou os olhos. Sentiu quando o vulto passava por ele. Então, a curiosidade venceu o medo. Abriu apenas um olho. Parecia uma carruagem. Dentro dela, uma mulher de aspecto tão medonho que levou Eduardo a molhar as calças. Quis gritar, mas nenhum som saiu de sua garganta. Tinha certeza que morrera, e logo veria o “grande túnel”.
Não soube quanto passou para se recuperar. Mas quando “acabou” correu feito maratonista até chegar ao caminho que procurava.
Noites a fio a imagem daquela mulher e sua condução assombraram seus sonhos. Mais tarde soube ser a carruagem de Ana Jansen. Era o segredo que guardava consigo. Preferia acreditar que ouvira aquela estória, sim uma estória, em algum lugar. Protestava, afirmando que fora um surto num momento inusitado, quando cercado pelo medo e solidão. Mas, só para prevenir nunca mais andou sozinho às sextas-feiras à noite.
No entanto aquela visão o perseguia, via coisas, quando se aproximava da fonte do Ribeirão dizia que não ia olhar, mas acabava se rendendo e tinha certeza que aquelas carrancas sorriam para ele! Estaria louco, muito sugestionado! Insano? Não, foi só impressão, com o tempo o medo o abandonou, e passou a sorrir da sua infantilidade.
Partiu para Recife cinco anos depois do episódio, estava com vinte anos. Mas deixou um elo na cidade. Sua namorada que ainda estudava e vivia com os pais. Eduardo tinha mais oportunidades fora do Maranhão e partiu, afirmara que só por um tempo. Foi ali naquela praça que se encontraram pela última vez. Ela chorava e apesar dele dizer que ligaria e escreveria sempre, Paula não acreditava. Dizia que era o “adeus”. Ela amava o poema que Gonçalves Dias fez para Ana Amélia, e falou que se um dia esbarrasse nele, não fingiria que era um desconhecido, que ele prometesse fazer o mesmo, que nunca se esquecesse dela, que o “adeus” não durasse para sempre. Mesmo assim combinaram que em cinco anos estariam ali de volta. Independente do que fosse acontecer depois, ou do que teria acontecido antes.
A cidade, agora tingida pelo cinza azulado da noite e pontilhos luminosos parecia bater-lhe amigavelmente no ombro. Paula foi ela que o havia esquecido e ele não havia deixado de querê-la. Ergueu o rosto e contemplou a estátua. “Não se morre de amor, meu poeta , mas se sofre muito”. Ainda esperou alguns minutos, a esperança dissolvendo-se como fumaça no vento. Então ,quando resolveu ir embora, duas mãos pequenas e macias vendaram seus olhos. Uma voz vagamente familiar sussurrou no seu ouvido: “Vivi, pois Deus me guardava
Para este lugar e hora
Depois de tanto, senhor
Ver-te e falar-te outra vez...”

E quem disse que um homem não pode ser um tolo, às vezes?! Sentia-se um Gonçalves Dias realizado, pois tinha finalmente seu “quinhão de alegria”. Era o seu outro segredo, confessado apenas a esta cidade, esta ilha de amores.

Helayne Xavier Bras
 
Noite em São Luis

Se o dia chegar

 
SE O DIA CHEGAR

PARTE I
De volta pro passado

Capítulo I

1

“Vamos fugir daqui... meu pai... ele nunca aceitará nosso amor...”. As janelas do carro estavam abaixadas e Pedro Felipe sentia o vento forte e gelado batendo contra seu rosto. O cheiro da mata dos cocais invadia suas narinas funcionando como um narcótico.
“Pela madrugada, me espere nos limites da fazenda”.
E as lembranças que ele conseguiu evitar por dez anos dançavam à sua volta, como pequeninos diabos perturbando seu juízo. Era o peso da culpa e do remorso que caía massacrante sobre sua cabeça.
Da estrada, Pedro pôde distinguir a cerca de estacas pintadas de branco__ os limites de Aguardente. Ali, bem ali, ele teria encontrado Rebeca e fugido com ela. Hoje poderiam ser uma família. Mas ele desistira e fugira sozinho. Nem ele, nem rebeca sabiam que já haviam sido descobertos por Antônio Cândido.
Naquela tarde, quando rebeca partiu cheia de planos, ele sentiu um cano de espingarda sobre seu pescoço. Antônio Cândido surgiu como que por mágica na sua frente.
__ Devia estourar teus miolos agora, mas__ sempre havia um mais, Pedro pensou não sabendo se sentia alívio, ou maior angústia__ padre João me convenceu que expulsa-lo da cidade era o suficiente.
Pedro ouviu a espingarda ser engatilhada.
__ Padre João garantiu que tu não mexeu ainda na minha filha, é verdade?
Pedro tentou balbuciar algo, mas o pânico da morte iminente o deixou sem voz.
__ Se não for, fala logo. Porque aí, tu só morre. Mas, se eu descobrir que Rebeca não é mais donzela, ela também morre, e por minhas mãos. Vai ser melhor ela morrer e virara santa que cair na boca do povo, manchando meu nome. Ainda terei a Rute pra me fazer companhia.
Pedro não duvidava que o fazendeiro cumprisse sua promessa. Não mesmo, aquele homem era um demônio!
__ Não! Eu nunca a toquei, juro!__ conseguiu dizer com firmeza, para sua própria surpresa.

Depois disso, o fazendeiro mandou dar-lhe uma surra que lhe quebrou algumas costelas, e o expulsou da cidade. Sempre ameaçando mata a filha se ele tivesse mentido e depois caçá-lo, para que ele nunca mais tivesse a idéia de fazê-lo de besta. Pedro foi embora. Mas, resolvera voltar. Não era mais um ”João-ninguém”, e precisava saber o que acontecera com Rebeca. Estaria casada? Odiava-o? Esperava sua volta? Não sabia, não podia continuar vivendo sob a tortura daquele remorso.

2

Quando José Inocêncio passou pela placa de “Bem Vindo a Engenho Novo”, sentiu uma atmosfera mais densa. Sabia que a cidade progredira muito, graças à cana e agora que o governo investira em veículos movimentados à álcool, e o negócio da cidade só estava progredindo.
Assim que ficou sabendo que herdara uma fazenda e um casarão em Engenho Novo, animou-se e agora iria conferir. Talvez deixasse as aulas de biologia e passasse a plantar cana!

Achou a cidade desleixada. Muitos trechos de asfalto estavam esburacados, os postes não iluminavam as vias públicas e o mato invadia o calçamento que também estava uma lástima.
Tudo aquilo contrastava com algumas belas mansões, supermercados... Era como se pobreza e riqueza andassem lado a lado. Um típico caso de má distribuição de renda.
Pelo guia que o advogado lhe entregara, acharia uma hospedaria na rua nova, número 09, ele virou à esquerda e viu o letreiro luminoso dizendo “temos vaga”. Deixou seu carro no estacionamento e entrou.
O piso era de madeira e estava muito bem encerado, existia um sofá de dois lugares em couro vermelho na recepção, uma escada logo após o balcão do recepcionista, após uns vasos de plantas uma porta de vai-vem, provavelmente levava aos fundos. Gostou da primeira impressão.
Não havia nenhum recepcionista, ele bateu na campainha, teve de fazer mais de três vezes até que alguém apareceu. Era uma moça franzina de olhar amedrontado, seus cabelos crespos estavam presos num rabo de cavalo, trajava calça jeans e camiseta branca contratando com sua pele negra.
__ Boa noite, ela o saudou sem firmeza.
__ Boa noite senhorita, eu gostaria de alugar um quarto.
A moça parecia nervosa. Talvez fosse novata e sentia-se ameaçada com a presença de um forasteiro. Ela abriu uma gaveta da qual tirou uma ficha e lhe entregou.
__ O senhor tem que preencher este formulário e pagar adiantado o primeiro mês.
Inocêncio pegou solicito o formulário e preencheu, marcou com um “x” a opção “quarto solteiro” e depois entregou o cartão de credito para a moça.
Ela efetuou o pagamento e devolveu-lhe o cartão junto com a copia do contrato e a chave do seu quarto.
__ Acompanha-me senhor.
Inocêncio pegou sua bagagem e seguiu a moça, ele ainda não sabia o nome dela. Pararam em frente ao último quarto, no lado esquerdo, o número sete.
__ É aqui. O café é as sete e o senhor precisando de algo é só ligar para a recepção, meu nome é Adelaide. Espero que tenha uma boa noite e aprecie nossa cidade.
__ Boa noite senhorita.
Ela já sumia no fim do corredor.

“Aprecie nossa cidade”.

Achava difícil, não gostou da primeira impressão que teve de Engenho Novo. Tinha a sensação que, se levasse adiante seu intento de mudar-se para a fazenda do seu tio, teria que abrir a mão para os corruptos do local.
Abriu a janela e foi para a sacada. A cidade estava engolida pela escuridão. Podia distinguir alguns sons vindos das casas, televisão. Mas, o que ele estranhou foi o fato de haver transeuntes, e ainda não era nem dez da noite.

3

Quando Inocêncio desceu para o café, pontualmente as sete, havia só um homem sentado à mesa, lendo um jornal. Devia ter uns trinta anos, cabelos castanhos crescido com as pontas encaracoladas, a pele morena, feições suaves, como de mulher, mas com uma rala camada de pelos que ia das orelhas até o queixo. Era magro e de altura mediano, quando ergue o olhar, Inocêncio achou seus olhos pretos um tanto melancólicos, principalmente por serem um pouco fechados nas extremidades externas.
__ Bom dia. __ cumprimentou-o polidamente.
__ Bom dia!__ Disse o outro se levantando e estendendo-lhe a mão__ Pedro Felipe Nogueira Silva, sou o novo hóspede.
Inocêncio sorriu, a voz do homem era bem grave e máscula, não condizia com seu rosto. Apertou a mão que lhe era oferecida.
__ Prazer, José Inocêncio Martins de Alcântara, também sou hóspede novo.
Ambos sentaram-se.
__ Sirva-se à vontade, o outro inquilino já saiu. É mecânico e foi cedo concertar umas engrenagens numa fazenda e nossa senhoria não comunga com os hóspedes__ ao que parece, não a vi ainda. Você, já?
Inocêncio balançou a cabeça negando. Pedro continuou a falar.
__ Com certeza não é de Engenho Novo. Pelo seu bronzeado, é do litoral, com certeza.
__ Com certeza vim do litoral, mas não moro lá. Consegui este bronzeado visitando os Lençóis Maranhenses, não resisti e acabei passando lá para apreciar sua beleza única, se ainda não foi, recomendo, é como se o paraíso fosse lá,e não no Édem.

Depois dessa conversa os dois hóspedes empenharam-se em devorar a refeição matinal. Só quando se encaminharam para os jardins, voltaram a conversar.
__ Então, senhor Alcântara, o que o traz a Engenho, mudou-se?
__ Não sei ao certo se fico. Meu tio era um fazendeiro da região e me deixou suas posses como herança. Vim averiguar, talvez continue seu negócio. Tudo vai depender das condições. E você?
Pedro lembrou-se de Rebeca. Queria tê-la encontrado ainda na noite passada. No entanto, seria perigoso, uma tentativa de suicídio aparecer na fazenda de Antônio Cândido. O certo era investigar a situação antes.
__ Vim atrás do meu coração. Há dez anos o deixei aqui e agora o quero de volta.
Inocêncio pareceu entender e não fez comentário nenhum.
__ Espero que tenha boa sorte. Agora vou procurar a casa que ganhei e depois visitarei a fazenda, qualquer dia venha comigo, conhecê-la também.
Pedro apertou-lhe a mão.
__ Então só nos veremos à hora do jantar. Espero que tenhamos êxito nessa jornada.
__ Amém!_ Inocêncio falou em tom de troça.
Os dois se despediram e seguiram caminhos opostos.

De minha autoria, tentei reunir na forma de novela causos que ouvi quando criança, mais para satisfazer meu ego que para qualquer outra coisa.
 
Se o dia chegar

Cedo

 
Ah, é cedo para dizer adeus
O sol ainda lança seus raios sobre nós
vencemos as barreiras das poeiras
dos retratos velhos, das teias...

Então por que tanta pressa?
Não precisamos nosa preocupar,
com enxurradas e nada

É tempo para vencer os medos
É tempo para quebrar velhos custumes
É tempo para enterrar o velho e o novo

Dê uma chance ao sentimento
Não feche as portas dos sonhos
Não feche os olhos para o horizonte

Ei! Escute com atenção!
A fome pode ser vencida
A miséria, a ignorância podem ser combatidas.
Mas, meu amor,
um pássaro com as asas mutiladas
jamais torna a voar.

Fique no teu ninho
até que o tempo o ajude
a sarar tua última cicatriz...
 
Cedo

Epígrafe

 
Eu sou coo um navio não batizado
Sem capitão nem marinheiro a me guiar
Sem um cais nem um porto a me esperar

Passo longe dos corais,
mesmo os recifes me ignoram
O casco vai estragando na água
suas tábuas uma a uma se largando

Mas eu sigo meu caminho
Por ai, sem destino
- Ei marujo, venha me navegar!
Que minha história vai deixando
sua marca
aonde quer que vá!
 
Epígrafe

Desculpa, mas eu vou chorar

 
Quando em meu peito
não mais alegria houver
quando dos meus olhos a luz se abster

Perdoe-me, rogo-te perdão!
Prometi que não
mas, desculpa, mas eu vou chorar!

Quando já não encontrar razão para viver
Quando o mundo meu coração fizer sofrer

Perdoe-me, rogo-te perdão
Prometi que não
mas, desculpa mas eu vou chorar!

As lágrimas serão pedaços d'alma
que tua ausência partiu em mil fragmentos
e em novo oceano tornar-se-ão
mas conhecerás os seus mistérios
tão claros pra ti serão

É a dor de perder-te
O medo de não rever-te
É o amor vulcão
Um dia calmo
Hoje em erupção
prometi que não
Mas, desculpa, mas eu vou chorar!
 
Desculpa, mas eu vou chorar

Se o dia chegar: cap II

 
Capítulo II

1

Do lado de dentro da padaria, no lugar em que sempre sentava, Doralice Guimarães observava seus novos inquilinos. Precisava conversar com eles, identificar se poderiam meter-se no seu caminho e atrapalhar seus planos. Porque nada, nem ninguém a impediria de cumprir sua missão em Engenho Novo.
Ela não recepcionou pessoalmente os forasteiros porque passou o dia fora. Desde sua chegada, seis meses antes, teve de manter a fachada de uma mulher sozinha tentando ganhar a vida de uma maneira honesta.Primeiro, teve que comprar aquele casarão caindo aos pedaços ao preço de um novo. depois vieram as reformas, e só nas últimas semanas pôde dar início às suas investigações. Não achou referência nos jornais locais sobre aquele dia. Nem havia nada registrado na polícia. Nem mesmo sobre o roubo dos diamantes, que foi feita pela governanta do seu primo.
Foi na noite passada que ela conseguiu uma pista_ embora não segura_ de alguém que poderia lhe tirar algumas dúvidas. Não sabia se padre João ainda possuía um mínimo de lucidez. Mas, ele lhe disse que só uma pessoa poderia lhe mostrar o “caminho dos diamantes”, ela não soube como ele poderia saber, talvez tenha sido um dos poucos que ficaram do lado do seu tio, talvez por isso o expulsaram de sua igreja e a trancaram para sempre. Não gostava de passar pelo Monte Santo, morro sobre o qual a igreja em estilo neoclássico fora construída. Havia algo pesado rondando aquele lugar, às vezes como que atraída por um magnetismo ela a observava. As duas torres com seus vitrais quadrados pareciam olhos, acusadores, quase podiam ouvir uma voz sussurrar-lhe ao ouvido:
“Sei o que quer, não deixarei achá-los”.

Dora sempre tremia. Era muito estranho uma cidade provinciana sem uma igreja funcionando. Corriam rumores de que o coronel Antônio Cândido se desentendera com o bispo e foi assim que começou a trajetória da decadência do padre João e seu séqüito. E como todos sabiam, Antônio Cândido era o “manda chuva” e todos o temiam, não seria difícil entender aquela onda de “agnostismos” na cidade. Para Doar não importava. Não era dada à religião mesmo. Mas, a única pista que tinha era aquela do padre louco. Tinha que arriscar.
A mulher fora um dia conhecida como Diana Benzedeira, agora vivia recolhida nos limites da cidade. Num lugar onde não acreditavam mais em Deus, não se acreditava também no Diabo e seus ardis, pelo menos, era assim que pensava Doralice. Saiu da padaria e foi direto para o seu carro, passaria no posto para encher o tanque de gasolina. Não podia correr o risco de ficar parada no meio do nada, e à noite! Não gostava do silêncio sepulcral que tomava conta de Engenho Novo de pois que o sol se punha.

2

Pedro foi direto para o canavial da fazenda Aguardente. Era tempo de cortar a cana, ele tinha esperança de encontrar alguém conhecido e amigável disposto a ajudá-lo. Havia muitos jovens ali, com os rostos cobertos com camisas de algodão e facões afiados nas mãos. Pedro começava a desanimar quando alguém colocou a mão sobre seu ombro. Assustado, Pedro virou-se e suspirou quando reconheceu a velha cozinheira do casarão onde morava Rebeca. Era Gertrudes, devia ter quase uns setenta anos, mas sua aparência era de alguém uns quinze anos mais jovem.
__ É ocê, Pedrinho?__ ela apertou os olhos e quando pareceu reconhecê-lo puxou-o pela mão para longe__ menino, cê qué morrer mermo, se coronel Candinho te vê, ele te mata, mata sim, inda hoje guarda ódio de ti.
Pedro não ligou para a ameaça. Estava muito feliz por encontrar um velho conhecido. No entanto, a velha nem deixou ele abrir a boca.
__ Num adianta Pedrinho, que a menina rebeca se mato__ Pedro arregalou os olhos, incrédulo,mas Gertrudes não deu trégua__ Se manda, vai imbora dessa cidade, isso aqui um é maisi lugar pra ti, vai Pedrinho, vai!__ ela o empurrou até a cerca__ Pru teu bem, vai imbora.
Ele ainda ficou parado, abismado, não sabia o que pensar. Ouvira direito? Rebeca se matou? Por quê? Deus! Ela amava tanto a vida! Ela era a coisa mais linda daquela cidade horrível. Agora estava morta... Não a veria nunca... Nunca mais!
Entrou no carro e foi dirigindo. Mesmo inconsciente, com as lembranças de Rebeca invadindo sua mente, Pedro tomou a direção do cemitério. Tinha que ver, tinha que ter a prova real do que Gertrudes falara.

3

José Inocêncio nunca imaginou que aquilo fosse possível.
__ Foi a seca. Faz tempo que não chove. Nóis fizemo queimada pra podé brocá a terra e plantá. Maisi não nasceu nada. Seu tio cismô de plantá arroisi e agora nem cana num qué crescê.
Até aonde a vista podia alcançar, só havia um amarelo ressequido de vegetação morta. Como se Inocêncio tivesse em plena caatinga. O solo estava rachado e aquilo era, numa palavra, inconcebível. Devia ter sido algum tipo de veneno porque ele passara por uma outra fazenda e viu uma vegetação verde e viçosa.
__ Santo Deus! O que aconteceu aqui? Isto é pior que ruína. É calamitoso, o que foi que vocês colocaram aqui, que roubou toda a vitalidade desse solo?
O capataz olhou-o tenazmente e respondeu:
__ Foi como eu disse. Faz tempo que não chove.

4

Ela consultou o relógio. Já era uma hora da tarde. Podia avistar uma casinha de barro com teto de palha. Acelerou mais um pouco. Estacionou próximo à casa, não soube porque. Mas, sentia medo. Algumas galinhas ciscavam na frente da casa, havia uma porca imensa se lambuzando na lama junto com seus filhotes. Dora aproximou-se mais da porta da frente, inspirou fundo e bateu palmas.
Esperava encontrar uma velha corcunda com o nariz adunco. Mas Diana não era assim. Era baixinha e muito magra, apesar da idade avançada, seu rosto ainda tinha um pouco de beleza. Era um rosto sofrido, mas sua voz era grave, ameaçadora.
__ O que procura moça? Não acredito que seja uma reza porque faz tempo que essa cidade deu as costas pra Deus faz tempo!
Dora imaginou até que ponto tratava-se de uma fanática religiosa. Não podia negar que a velha senhora tinha razão, mas não era hora de pensar naquilo.
__ Informaram-me que a senhora conheceu Matias Soares Guimarães. Queria algumas informações sobre ele...
A mulher espremeu os olhos e aproximou-se.
__ É a prima dele?
Dora sorriu por dentro. Ninguém sabia que Matias tinha parentes vivos e se aquela mulher tinha esse conhecimento, é porque um dia ele confiou nela.
__ Ele me disse que ia chegar. Quer os diamantes, mas vou logo avisando não estão comigo, só o morto sabe onde estão, só ele pode mostrar o caminho.
A mulher era louca. Também, o que podia esperar de uma pessoa vivendo naquela solidão, cercada de superstição religiosa?
__ Pensa que sou louca, mas seu primo sabia que tinha muita gente de olho no tesouro dele. Quando voltou da última viagem, estava com as mãos abanado. Aquele povo que invadiu a casa dele nunca achou nada porque ele passou a perna neles. Era esperto, mas foi bobo em voltar.
Talvez gostasse demais daquela casa. Matias era muito apegado ao que era dele.
__Escondeu os diamantes na cidade em algum lugar, e tem que acreditar que ele vai mostrar o caminho, quando acreditar que é possível, vai sonhar três noites seguidas, o mesmo sonho, com o lugar exato onde os diamantes estão escondidos.
A mulher silenciou e ficou olhando para Dora. Sabia que a moça não acreditou numa só palavra.
Era bobagem. Tudo besteira. Sonhar com o mapa do tesouro. Aquilo não era um capítulo da ilha do tesouro. Ora! Perdeu seu tempo, mas não ia tratar mal aquela mulher, era já velha e com certeza e com certeza estava ficando esclerosada.
__ Muito obrigada. Vou para casa e esperar pelos sonhos.
Diana sorriu condescendente e entrou no seu barraco. Era um único cômodo. Cheio de imagens de São Cristóvão e Nossa Senhora. Pediria a segurança daquela moça. Ela não podia imaginar o perigo estava na cidade e não naquele fim de mundo. Se pelo menos acreditasse. Poderia lhe entregar um crucifixo e fazer uma oração para fechar seu corpo contra o mal que tomou conta de Engenho Novo.
Dora ainda ficou parada olhando para o barraco. Não sentia mais temor, havia certo bucolismo naquele recanto. Muito diferente da sensação que sentia quando passava pelo caminho da fazenda Aguardente ou mesmo na cidade. Olhou novamente para as horas, já era quase duas, chegaria perto das cinco. E o dia estava escurecendo rápido naquela época do ano.

5

Havia alguém chorando no túmulo de Rebeca. Ela teve um enterro católico, mesmo sendo suicida. Era estranho. A moça estava de joelhos, as mãos enterradas no rosto. Cabelos negros caíam nas costas, usava um alvo vestido de algodão sem mangas.
Pedro aproximou-se e sentiu algo que pareceu um soco no estômago. Algo foi subindo pela faringe e ele se curvou, sentiu como se garras esmagassem sua garganta, os olhos arderam. Vencido, caiu de joelhos e chorou desconsoladamente.
Como poderia imaginar que Rebeca cometera aquele desatino?Ela podia ter sofrido muito, mas tirar a própria vida? Não!
__ A culpa não é sua. __ ouviu uma voz amargurada e ao mesmo tempo doce, da moça, ergueu o olhar e assustou-se com as feições dela, era assustadoramente parecida com Rebeca, mas estava terrivelmente pálida. Quase translúcida sob aquele sol de quatro horas.
Só podia ser Rute. Lembrava-se dela e como Rebeca queria protegê-la. Só o fato de amar muito a irmã era o suficiente para quere continuar vivendo.
__ Sabe quem sou eu?__ ele quis saber se Antônio Cândido já sabia da sua presença. Talvez Raquel não se lembrasse dele, só o viu uma vez e tinha apenas nove anos.
__ Sim. Ninguém vem aqui visitar a Bec, só eu. Ninguém a pranteou como eu, nem mesmo papai. Ele nem se arrependeu do que fez. Devia ter fugido com ela. Mas, mesmo assim, na foi culpa sua.
Sim. Ela poderia dizer quantas vezes quisesse, mas ele nunca mais dormiria em paz. Foi um covarde.
__ Pelo menos, deram á ela um enterro católico__ falou para si mesmo.
__ Ela não se suicidou__ Pedro encarou a jovem de olhara vazios, ela voltou-se para a lápide enquanto falava__ Ela foi morrendo aos poucos, definhando em cima de sua cama. Não comia, não dormia, só ficava na sacada olhando para o horizonte. Um dia ela me disse que tinha decidido reagir, que se você não pudesse ir até ela, ela te acharia. Eu a ajudei a fugir. Mas, naquela noite choveu, choveu demais, de manhã alguém gritou pelo papai. Era um lavrador que tinha encontrado Rebeca perto do canavial. Ela estava encharcada e tremia muito. Estava com febre. Ela estava com pneumonia. Os remédios não fizeram efeito, o médico disse que seu organismo estava muito debilitado.
Pedro olhou novamente para Raquel. Não pôde fazer nada por Rebeca, mas ainda podia ajudar a irmã dela. Era evidente que ela precisava de ajuda.
__ E o que faz tão longe de casa?
Ela sorriu sem graça.
__ Aquela não é mais mina casa. Sai de lá pra sempre, não podia mais viver com papai__ ela mostrou os pulsos enfaixados__ Ela não vai mais me machucar.
Pedro sentiu outro golpe no estômago só em imaginar o que aquele homem fizera com a filha.
__ Vem comigo então. Deixa eu te ajudar, pela Rebeca.. Vamos embora daqui, não precisa viver ao léu.
Ela recusou com um aceno.
__ Não entende. Vim pra ficar com a Bec, preciso da paz que ela me dá.
__ Não! Como pode viver assim sem um lar?
Ela levantou-se e foi se afastando dele.
__ Há sempre casas vazias onde eu posso me abrigar. Não se preocupe comigo, agora estou bem. É você que tem que se cuidar. Vá embora daqui o mais rápido possível.

Pedro a deixou sumir na mata, mas na desistiria fácil. Aquilo não era vida. Tinha que se redimir com Rebeca.
 
Se o dia chegar: cap II

Um amor no interior

 
Teodoro era o filho mais velho de quatro irmãos__ na verdade os quatro que conseguiram “vingar”. Aos dezoito anos, mal sabia ler e escrever. Freqüentava o curso noturno, mas seu aproveitamento era quase nulo. Desde cedo ajudou o pai na lida, na capina, roçado, plantio, colheita, ensacamento. Era uma rotina. Suas únicas perspectivas eram que o pai lhe desse uma parte maior dos lucros. Olhava sonhador para o passado remoto de sua família, antes dele nascer, quando o pai era dono da própria terra, era o patrão. Mas, o vício pelo baralho o fez perder tudo, e agora era um simples colono, obediente e levara os filhos a seguir o mesmo caminho.

De uma forma geral, Teodoro não se queixava, apesar de tudo, não passava fome. Tinha suas coisinhas. Era meio ingênuo, passivo, conformado. E não fazia diferença naquela vila rural que pertencia a um pequeno e quase insignificante município do Maranhão.

Como ocorre com todas as cidades pequenas, pequenas demais, um dia o progresso chegou à Lagoa do Arroz. A luz elétrica veio no ano de 1994. Em 1996, o monopólio das linhas telefônicas foi quebrado e qualquer um que pudesse pagar, podia ter sua linha. Mas, a grande revolução ocorreu três anos depois. Concessionárias de motos chegaram vendendo suas “máquinas” com prestações de R$50,00 ao mês__ prestações à perder de vista. A maioria dos compradores terminava de pagar anos depois de já terem perdido suas aquisições em acidentes. Na cidade as leis de trânsito não haviam ainda chegado, sem faixas, nem semáforos, sem obrigação do uso do capacete, sem multas. O fato é que suas ruas encheram, não se via carro de boi, nem bicicletas, só alguns automóveis e centenas de motos.

Havia aqueles que mesmo com as facilidades, não conseguiam adquirir a motocicleta, era o caso de Teodoro. Ele só possuía uma bicicleta velha, sem freios e toda vez que tinha que pára no meio da estrada para encher o pneu vazio com o ar dos pulmões, se revoltava com o pai, por ter sido tão irresponsável, com a vida que lhe impôs, por obrigá-lo a trabalhar na roça, por ele, Teodoro, aos dezoito anos parecer já um homem de quase trinta, por viver curtindo embaixo do sol feito carne seca. Envelhecendo, perdendo a infância, a adolescência, a capacidade de sonhar.

Mas, passada raiva, Teodoro voltava a se resignar. Pedia perdão à Deus por ter desonrado o pai. Não podia revoltar-se, seu velho era doente, quase aleijado da coluna, tinha cálculos nos rins. Seria um pecado mortal abandoná-lo e tentar ávida em outro lugar. E assim, sua vida seguia, sem grandes mudanças.

Ele também tinha suas alegrias. Era um rapaz bonito, vigoroso, pele bronzeado, muito higiênico e suas características atraíam as moças, ele jamais ficava sozinho. Apesar de ser namorador, Teodoro era sensível, apaixonava-se intensamente cada uma das suas namoradas; o caso é que durava pouco, nenhuma conseguia capturar seu amor por muito tempo. Nenhuma era diferente.

Nenhuma até chegar ela. A prima que viera da capital, pertencia à facção “mais-ou-menos” da família de Teodoro. Seu tio, vendera suas terras e fora à capital, montou uma grande mercearia, vendendo alguns centavos mais barato que a concorrência e conquistara a freguesia, em poucos anos já possuía uma rede de supermercados, tinha tino pros negócios; queria ajudar o irmão pobre, mas o pai de Teodoro não queria, era orgulhoso, não aceitava esmola de ninguém.

Era a primeira vez que Márcia visitava suas origens, viera conhecer a cidade que classificava como pitoresca, Teodoro achava que entedia o termo, com certeza Lagoa era bem diferente da capital. Ela tinha a mesma idade do primo, e acabara de passar no vestibular, pedira a viagem como recompensa e o pai cedera.

Naquela manhã de agosto, Teodoro chegou cansado, era tempo de debulhar e ensacar o feijão e o milho, trazia das roças as sacas e distribuía-se pelos armazéns da cidade, ele carregava nas costas as sacas do caminhão aos armazéns, só queria tomar um banho, almoçar e jogar-se na rede pra descansar. Chegou em casa suado e coberto de resíduos de vegetais, foi à cozinha pedir benção ao pai, encontrou uma mocinha de pele clara e cabelos castanhos, lisos, longos, seu rosto oval e feições bem desenhadas a tornavam parecida com uma bonequinha, ela era pequena, magra, mãos delicadas seguravam uma xícara de café. Teodoro não conhecia, mas soube no seu intimo que aquela moça não era da cidade.
__ Mãe, quem é essa garota?

A mãe olhou-o reprovadora, ele fora rude não cumprimentando a visita.
__ É tua prima da capital, fia do tio Flávio, Márcia.

Teodoro sentiu-se quente na face,moça da cidade, rica, estudada, ela com certeza devia está achando tudo muito ruim, e ele ainda aparecia sujo daquele jeito!

Chegou perto da mãe e cochichou no seu ouvido.
__ O almoço ta pronto?

Ela acendeu com aceno. Sem cumprimentar a prima Teodoro foi para os fundos assear-se.
__ Liga não Márcia, esse bicho de tanto viver naquele mato ta virando um animal com os outros, é o jeito dele mesmo.

A prima sorriu e voltou a tomar o café.

Quando Teodoro voltou, pronto pra entabular conversa com Márcia ela já não estava lá.
__ Cadê a prima?

Ela foi visitar o resto da família só voltava à noite. A noite Teodoro já estaria na fazenda de novo.

Só voltaram a se ver dois dias depois. Teodoro falava pouco porque tinha vergonha de falar coisa errada e ela sorrir dele. Márcia sabia conversar sobre tudo, direito, manso apesar de parecer uma meninazinha de bochechas rosadas, ele percebia certa sensualidade no olhar, no sorrir, nos trejeitos, quando voltava à fazenda ia sonhador, pensava em acochar aquele corpinho num abraço. Mas era sonho, Márcia era de outro mundo e logo estaria de volta.

Certa noite Teodoro ia dormir em casa, saiu pra passear e voltou tarde, quando entrou viu encolhida no sofá a prima, ela dormia em frente à televisão ligada.

Ele aproximou-se e a chamou.
__ Oh, você demorou.__ Ela falou sonolenta__ a tia disse que não havia problema em deixar a porta destrancada, mas eu achei melhor esperá-lo.

Teodoro queria sorrir, não sabia por que, só sabia que era a primeira vez que ficava sozinho com ela sem ninguém por perto. Impulsivamente ele a tomou nos braços e a beijou.

Depois daquela noite Teodoro e Márcia não se largaram mais, eram passeios, beijos e conversa, Teodoro ficava ouvindo sonhador o que Márcia dizia, ela tinha tantas historias legal da cidade, às vezes acontecia algo e ela lembrava de um livro que lera, e eram tantos. Ele ouvia sua conversa como se ouvisse uma música. Márcia jamais o humilhara, jamais o censurava. Pelo contrario, dava-lhes bons conselhos, levantava seu moral, ele jamais esqueceria da vez que comentara que era burro demais, “Nunca mais repita isso! Você só não teve oportunidade, mas terá... só tenha paciência e determinação.” Ela era diferente em tudo e Teodoro a amava a cada dia, sabia que não era pra ela, mas ainda assim, ela o queria.

Quando ela avisou que tinha de voltar. Teodoro como se uma flecha transpassasse seu peito. Faltou-lhe o ar , sabia que aquele dia chegaria, mas já? Tão cedo? Tomado de uma resolução, ele chamou Márcia para uma última conversa.
__ Márcia, como eu queria servir pra tu. Queria ter istudo, dinhero, mas só tenho meu bem querer. Volta Márcia, vou istudá e ter mais atitude, quando tua faculdade acabá, a gente casa. Casa comigo Márcia?
Márcia ficou em silêncio. Havia lágrimas em seus olhos. Abraçou-o e deu-lhe um beijo.
__ Estuda, ta? Volto nas próximas férias, não seremos felizes, você terá tua cota de felicidade, atitude querido! Ele ficou feliz, entendeu como um sim.

Na madrugada, Teodoro a acompanhou à rodoviária. Márcia estava muito triste.

Foi a última vez que a viu. Não voltou nas férias, nem ligou, nem escreveu. E Teodoro foi percebendo aos poucos que ela não voltaria. Que ela sabia que sua promessa de estudar não seria cumprida. Não que ele fosse parado, mas era o próprio destino que o impedia. Mais tarde teve que largar o curso noturno porque as chuvas destruíram as plantações e agora o trabalho triplicou. Eram as roças, as preocupações, tudo na sua cabeça, estudar como? A prima não casaria com matuto, e ele resignou-se. Não podia condená-la, sabia que não podia fazê-la feliz com o tipo de vida que poderia lhe oferecer. Mas, nunca pôde deixar de sonhar, com uma manhã longínqua, em que chegaria em casa e encontraria um sorriso cristalino esperando por ele. Sonharia, só lhe restava isso. Estava confinado no poço fundo das impossibilidades e só lhe restava a ilusão que só os sonhos podem proporcionar.

Era Teodoro, mais um moço do interior de Lagoa do Arroz, cabeça cheia de sonhos, mãos vazias pela vida dura do lavrador maranhense.

Desculpem! este texto é o início do "A solidão do moreno"!
 
Um amor no interior

Quando se tem que dizer adeus

 
Quando se tem que Dizer adeus

Seus olhos estavam turvos. Uma nuvem negra de tristeza e amargura no semblante. Olhava fixamente para o livro em cima da mesa. Parecia ter entrado num túnel do tempo. Fatos de sua vida. Doces a amargas lembranças passavam em volta de sua cabeça. Ela estava certa. Cumprira sua promessa. Promessa?

__ Então, quando a gente vai partir? Eu já ajeitei a minha mochila. Tinha mais de quinhentos reais na minha poupança, dá para comprar minha passagem para Brasília e ainda sobra um pouco para as despesas de viagem. Depois da nossa formatura a gente vai embora. Estou contando os segundos!
Marcelo olhou nos olhos de Cecília. Nem acreditou quando ela decidiu que o acompanharia para a capital brasileira. Ele havia conseguido uma bolsa de estudos, e ela quis acompanhá-lo. Nem sabia o que faria se ela ficasse, nunca conseguiria concentrar-se. Não podia mais se acostumar sem ela. Ela sempre esteve presente em sua vida, na infância, sua colega de brincadeiras e agora sua namorada, em breve estariam juntos para sempre.
Segurou sua mão e a beijou. A formatura seria no dia seguinte. Estava chegando a hora.
__ Como conseguiu economizar tanto, sei que nunca trabalhou!
__Só para sua informação, sei economizar e administrar muito bem minha mesada. E ainda por cima, tem o meu irmão que está sempre me pagando para fazer seus trabalhos da escola.
__ Eu já vi os horários, tem um ônibus que sai meia noite. É o melhor para gente.
Cecília o abraçou. Apesar de brigar muito com o pai, ela sentiria saudades, dele, do irmão e da mãe. Sentia principalmente pela mãe, que ficava calada diante da traição conjugal do marido. Não sabia como ela podia suportar! Não podia conviver mais naquele ambiente.
__Também ajeitei minhas malas. Meus pais não aprovam sua fuga, mas eles prometeram que não vão interferir.
__ Eles não podem, eu já tenho dezoito anos, ninguém pode me impedir.

Era o rosto dela. Já maduro. Ela havia publicado um livro e alcançado um considerável sucesso. Encaminhou-se até a janela. Os carros na avenida buzinavam sem parar, aconteceu uma batida, parecia ser sério. Pessoas com vestígios de sangue na cabeça, carros amassados cercados por curiosos. A fumaça de uma loja que começara a incendiar por causa da queda de um poste chegava ao quarto andar, entrava e infestava seu apartamento. Mas ele não ligava. Havia um Out Door no outro lado da avenida. Um grupo de formandos estavam sendo homenageados pelos pais. Mais uma vez regressava ao passado. Seu olhar transpassava os prédios, infiltrava-se nas paredes, nas árvores, chegava enfim ao salão onde aconteceu a formatura. Ele já tinha tomado a difícil decisão.

Depois que Cecília o deixou, ele recebeu a inesperada visita de Marcos, o irmão dela. Ele parecia um pouco abalado.
__ O que faz aqui?
O outro se aproximou e olhou para os lados. Depois abaixou a voz para falar com Marcelo.
__ Sei que pretende fugir com minha irmã.
Marcelo desconfiava que todo mundo já sabia. Só esperava que no fim tudo desse certo.
__ Sua irmã é maior, não podem nos impedir de partir!
__ Eu sei, é por isso que vim falar contigo, e te peço, nunca diga à ela sobre nossa conversa.
Ele desconfiou. Conhecia um pouco Marcos, ele não era o tipo que pedia, geralmente fazia o que lhe dava na cabeça.
__ Então, o que quer?
__ Não pode deixar Cecília partir.
Ele sabia! Mas não cairia em nenhuma conversa.
__ Antes que me diga alguma coisa, escute tudo o que tenho para dizer.
Marcelo passou as mãos na cabeça, aquilo estava lhe cheirando a armação. Mas, resolveu ouvir.
__ Descobri há alguns dias sobre os planos de fuga de Cecília, de verdade, eu não dei a mínima, era até melhor, ela briga muito com papai, você sabe, por causa das puladas de cerca dele. Mas, há dois dias, eu...__ Marcos hesitou, o que iria falar não era nada louvável__ Bom, eu mexi nas coisas de mamãe, para pegar um trocado, mas o que eu achei... __ o rapaz abaixou o olhar, Marcelo percebeu que ele pareceu perturbado.__... eram exames, acho que se chama biopsia, daqueles que fazem para ver se a pessoa tá com câncer.
Não podia ser verdade.
__ É sério Marcelo, eu levei para o pai da Érica, ele é médico, ele disse que não dá mais para tratar. Mamãe tá com câncer de mama. E ela não disse nada pra gente, ela tá sofrendo sozinha. Papai, não liga pra nada, ela só pode contar comigo e Cecília, é por isso que quero que você deixe ela ficar.
__ Por que não contou para Cecília?
__ Por que ela ia correr pra consolar a mamãe, e acusaria papai, seria um inferno, só quero que ela esteja por perto, mamãe ia sofrer muito, ela vai morrer Marcelo, isso é grave!
__ Não sabe o que está pedindo, eu amo a Cecília, quer que eu brigue com ela para ela desistir de ir comigo. Mas, eu não vou conseguir!
__ Não precisa brigar, vocês podem continuar namorando, ela só tem que ficar, até mamãe criar coragem e contar pra gente, quero respeitar a vontade dela.
Marcelo meteu as mãos nos bolsos e saiu andando. Marcos gritou para ele.
__ O que fará?
Ele não respondeu. Não podia deixar Cecília partir e deixar a mãe doente, se ela soubesse que ele já sabia de tudo iria odiá-lo para sempre. Por outro lado, se ele contasse logo, ela teria que ficar, de qualquer forma, eles estariam separados, cedo ou tarde. Sentiu um aperto no coração. Quando chegou em casa ligou para ela, marcou um encontro pela manhã.

Ela estava lá, na praça que ficava em frente ao colégio. Disse que foi na loja pegar o vestido de formatura, mostrou o pacote para ele e disse-lhe que ele ia gostar. Tentou beijá-lo, mas Marcelo se afastou. Seus olhos estavam um pouco fundos, ele não dormiu a noite toda, pensando num jeito de falar a ela. Sem magoá-la, mas como, se não podia contar a verdade?
__ O que foi, parece preocupado.
Ele abaixou a cabeça e ficou olhando para os pés.
__ Eu andei pensando melhor...
Cecília franziu o cenho. Não queria nem imaginar no que ele andou pensando.
__ Não posso te levar, seria muita irresponsabilidade contigo.
Ela não disse nada. Apenas piscou, a surpresa nítida em seu olhar.
__ Eu serei apenas um bolsista, terei que arcar com despesas. Nós iremos passar fome, até que a gente encontre trabalho, e você tem que fazer vestibular, tem que pensar no teu futuro. Eu acho que é melhor a gente esperar pra você ir quando eu tiver mais estruturado. Não acha que seria muito precipitado a gente ir assim, na doida?
__ Eu não ouvi isso, o que mudou de ontem para hoje?_ A voz dela estava falhando, ele sabia que logo veria lágrimas em seu rosto. Conseguiu magoá-la.
__ Eu só pensei melhor, estamos agindo como dois inconseqüentes! Você não acha?
Ela não disse nada. Olhou para ele de um jeito que ele não podia compreender. Virou-lhe as costas e saiu.

No salão, a música era suave, quando chegou, poucas pessoas circulavam o local. A decoração era toda branca. Cortinas, bexigas de ar. O palco da banda simulava uma noite enluarada. Nas mesas espalhadas pelo salão haviam pequenos jarros com flores de laranjeira. Muitas flores, o cheiro suave e cítrico invadia-lhe a alma. Logo ela chegaria.. Era para ser uma noite inesquecível. Não entendeu por que Cecília o ignorou o resto do dia. Achou a atitude dela muito infantil. Definitivamente ela ainda não tinha maturidade para sair da casa dos pais.

Quando ela chegou, ele não teve dúvida que era amais bonita no salão. Sentiu orgulho, era a sua namorada, pelo menos ainda pensava que era. Sentiu uma onda de alegria quando percebeu que ela procurava alguém no salão Seus olhos castanhos cor de mel percorriam o salão, passava pelas pessoas. Marcelo a observava. O medo, esse buraco nego desconhecido... Morreria quando seus olhares se encontrassem e percebesse algo que não era aquela paixão que tornava o olhar dela tão diferente. Bastaria muito pouco para Cecília convencê-lo a levá-la com ele. Queria sair, fugir, a razão dizia: “Corra! Saia enquanto é tempo!”. Mas, o coração impedia, segurava-o. O peso nas pernas, uma moleza no corpo. Porque coração gosta de sofrer.

Quando ele o encontrou, foi como se seus olhares se abraçassem. Como se estivessem só os dois. Caminharam um na direção do outro. O único som que se ouvia era o de seus passos. Os olhos abraçados, os braços querendo estenderem-se, desejosos de tocar o corpo amado. Enfim o longo caminho se extinguiu. Ele pegou-lhe a mão e a beijou com carinho. Algo no olhar dela revelava sua tristeza, apesar de seus lábios sorrirem.
__ Reservei um mesa perto da banda, você gosta tanto de música, minha Flor de Laranjeira.
Ainda não havia soltado a mão dela. Sentaram e Cecília começou a falar. Disse que saiu porque precisava raciocinar, e tinha chegado à conclusão de que ele queria brincar com ela. Que eles haviam pensado minimamente em todos os detalhes, e que o perdoava pela brincadeira de mau gosto. Mas Marcelo, balançou a cabeça, não, falou sério. Queria que ela ficasse, e esperasse ele poder buscá-la. Eles brigaram discutiram, as coisas não eram tão fáceis como sugeriu Marcos. Ele não queria terminar, como ela acusou, não queria que ela o odiasse, apenas entendesse.
Calaram, como se fosse um acordo mútuo falaram sobre outras coisas, as horas no relógio passando. Era já nove e meia da noite. Mais uma hora ele teria que ir para a rodoviária e partir. Como queria que aqueles minutos restantes se multiplicassem!
___ Vamos pelo menos dançar, seu vestido é tão bonito, não é justo ficar aqui sentada.

Foram para o meio do salão, segurou-a pela cintura, pelo menos isso. Deslizaram pelo salão, a música suave percorria seus corpos. Um movimento, ela encostou a cabeça no peito dele. O ar ficou pesado, era torturante, o peso da cabeça dela o feria. Que tentação. Vontade de levá-la dali, vontade que nada existisse além dos dois. Sentiu um nó na garganta, estava fraquejando, largou-a. Saiu do salão. Ela o seguiu confusa. Por que ele fugia como um medroso? Encontrou-o sentado no banco do jardim, ele apagava os vestígios da emoção passada.
__ Do que tem medo?__ Ela perguntou.
__ De sofrer, é melhor não ter lembrança, para não ter saudade.
__ Do que está falando?
__ Não posso levá-la, não entende? Sei que está tentando me convencer, mas eu estou agindo assim, porque penso muito em ti, estou sofrendo tendo que deixá-la, mas não vai durar para sempre. É tão difícil entender?
Ela não podia entender era o fato de ele ter se dado conta logo naquele momento, quando ela já tinha feito tantos planos, se entregara de corpo e alma àquele momento que seria deles dois. Achava que ele descobrira que não queria ficar com ela, e inventava aquilo. Nenhum relacionamento podia sobreviver na distância, cedo ou tarde eles acabariam se deixando para segundo plano e depois o esquecimento. Por que ele não era digno e falava a verdade, ao invés de ficar com aquela desculpa esfarrapada?!
__ Tem razão!__ Ele gritou.
__ Juro que esta será a última noite que nos toleraremos. Se quiser, não precisa mais falar comigo.__ saiu correndo, fugindo dele e de qualquer outra coisa que ele pudesse lhe dizer.

Estava irado consigo mesmo. Saiu da festa, não tinha mais por que ficar ali. Olhou para o banco onde estava sentado, a flor que ela segurava tinha ficado ali. Pegou-a e a colocou no bolso do paletó.

Marcelo voltou à realidade, uma força maior que ele mesmo o incentivou a ter sempre ao seu lado um jarro com flores de laranjeira, as flores preferidas dela. Nenhuma tinha um perfume que se comparasse àquela, daquele dia. Quando ela secou, a guardou numa caixinha de camurça, como se fosse uma jóia, muito preciosa. A última lembrança que tivera de Cecília, quando a mãe dela morreu, ela se mudou com o irmão para a casa de um tio, na Bahia, Marcos, o traiu, nunca lhe disse que foi por aquele motivo que ele a deixou, e eles haviam se perdido para sempre. Mais uma vez, ele foi até a janela. A noite estava alta, a confusão da batida fora dissipada. Era hora de dormir. No entanto, mais uma olhada para o céu, para as estrelas que lembravam os olhos brilhantes dela. Apagou a luz da sala, caminhou para o conforto do seu solitário quarto. Pegou a caixa de camurça e a colocou rente ao coração.
 
Quando se tem que dizer adeus

Elementos: sol

 
“...Um vidro que se espatifa ao menor sopro do vento...
Ouviu? É o vento. Ele é frio e está violento. Estou aqui, entre quatro paredes, mas parece-me o contrário. Eu sinto esse vento frio e devastador. Ele me ensurdece, me congela. É terrível é um vento que me persegue. Noite e dia, e a chuva parece zombar de mim. Parece que quer provar que pode ser mais longa minha dor.
É a saudade.
As estrelas que outrora brilhavam, elas sumiram. Está escuro. Não enxergo nada. Se houver abismos no meio do caminho eu caio.
É tua ausência.
Para onde foram todas as coisas belas? Partiram contigo. O meu bem-te-vi já não canta mais. Ele sente que não estou feliz. As trevas da noite. A monotonia dos dias. Dia e noite tão iguais. Tão vazios. Tão formais...
No peito o coração bate, prisioneiro de si mesmo. Ele tem as chaves, um abrigo à espera, um lugar aconchegante, e até alguém que lhe diga palavras para sarar-lhe. Ele não quer.
Está à mercê de um carcereiro invisível e sem forma que sobrevive apenas na mente.
Pobre coração!
É preciso seu abrigo sofrer. Incendiar. É preciso que saia de trás das grades.
Liberte-o!
Liberte-o!

Vem sol, calor! Quero calor! Demora tanto! Hei de esperá-lo. “É cedo, o amanhã, agora que está chegando, mas estou cansada, sinto sono, acho que...”
__ Oi Cachinhos Dourados, não quis roubar meu mingau?
__ Argh!
__ Cachinhos Dourados que pensa fazer? O que é esse pacote?
__ Tingimento de cabelos, só assim você pára com essa história.
__Não!!
__ Por quê?
__ Gosto de vê-los assim. Principalmente quando você acorda e vai ver o sol da janela. Do quintal eu fico te olhando e parece que se funde a ele, o astro rei. Às vezes acho que ele vai tirá-la de mim. Mas você não teria coragem de me abandonar.
__ Convencido!
__ Verdade! É por isso que gostaria de ser esse sol. Queria confundir-me com seus cabelos. É uma pena você ser tão preguiçosa...
__ O quê?
__ É verdade. O sol já está quase pra nascer, vá à janela. Vá, levante-se, vamos, ele já vai nascer. Ei, abra os olhos, acorde!

A mulher pulou do sofá. Já era tarde. A chuva afinara. O céu limpava. Havia tempo. A dor tornara-se imago. Correu à porta. Ele a chamava. O crepúsculo. Seus cabelos, o sol, ele queria vê-la assim.

O túmulo já não era tão frio. O vidro fora restaurado. Os olhos. O mar, sorria. Ainda podia ver sua imagem refletida naquelas águas.
“Você quis ser o vento e quis ser o sol. Mas foi como chuva de verão, veio com promessas de tempestade, mas mal molhou o chão, foi embora.Vê? Ele voltou, o sol. É esta a tua última vontade? Vou subir ali. Posso tornar-me luz só pra ti. E você será o sol? Ficaremos juntos?O sol, você, o vento, a chuva... Todos me chamam!Acho que irei contigo. Mergulharei no teu verde mar. Lá sim, o vento me balançará, o sol nascerá de mim, a chuva se unirá á mim, a terra não me tragará e eu, eu estarei lá, dentro de ti.
O sol já vai, sua volta foi breve. O que devo fazer? As rosas? Eu as trouxe! Olha, coloquei uma nos cabelos. Toma, estas são suas.
O sol voltará amanhã. Você ficará esquentado. Olho pro sol, eu estarei lá e também saberei que estará comigo.”
 
Elementos: sol

Parece até conto de fadas

 
A moça entrou no quarto, pegou seu caderno e caneta, precisava falar, a única forma que conseguia fazê-lo com maior liberdade, era escrevendo.

Meu amor...
Nossa história parece até um conto de fadas...
Engraçado, foi você quem me disse isso. Mas retomando nossa história como tudo começou, eu tenho que concordar contigo!
Tudo começou com um pedido, meu, você nunca me disse se havia feito um pedido também... Mas eu fiz. Certo, dia fui deitar na cama, aos prantos e pedi para Deus afastar de mim todo mundo que se aproximasse só interessado em uma aventura. Estava cansada de me entregar aos relacionamentos, acreditar que poderia haver algo verdadeiro e me decepcionar. Já possuía cicatrizes demais. Não queria mais uma, e foi isso que disse à Deus, mesmo que tivesse que terminar meus dias sozinha.
Acho que foi a partir desse pedido que o universo começou a conspirar a nosso favor. Se bem que foi por culpa do destino termos ido parar tão longe um do outro. Ele fez a besteira, ele que consertasse.
E devo acrescentar que ele fez tudo direitinho. Lembro-me cada detalhe do início do percurso que me levou até você.
Eu comecei a mudar de mentalidade. Até então não gostava muito dessa história de salas de bate-papo, orkut, nem se fala. Mas depois daquele pedido, eu decidi fazer novo vestibular, sentia que apesar de gostar do que estava estudando até então, não ia conseguir muita coisa, além disso havia minha paixão pela escrita, eu resolvi e fiz uma prova para ingressar numa faculdade de Letras, e consegui. Foi lá que conheci uma grande incentivadora para eu me aproximar mais da internet. Minha amiga hoje, perguntou por que eu não usava o orkut, que através dele eu podia fazer amizades com pessoas do mundo inteiro, além de encontrar amigos perdidos. E eu amava meus amigos do tempo da escola, queria reencontrá-los.
Foi uma descoberta fazer amizades com pessoas de fora da minha cidade. Eu conheci pessoas interessantes e até achei alguns amigos que há tempos eu não via.
E você, estava lá, esperando por mim. Eu não quis te conhecer de imediato, enviar aquele convite. Eu vi no seu perfil que nasceste nos EUA, pensei, não quero ser amiga de um americano arrogante! Mas aquela sua frase, eu pensei, ele tem personalidade, se for dele essa frase, ele tem caráter. Vou enviar, se ele tiver que ser meu amigo, vamos ver...
E a partir daí você já sabe. Como nos descobrimos tão iguais, tão feitos um para o outro. Lembra do dia que eu falei, dos andrógenos? Nos reencontramos, meu amor, sabe só Deus depois de quantas vidas nos procurando, nos encontramos!
Não é estranho sentirmos saudade um do outro? Quer dizer, pensa comigo, nós nunca estivemos realmente frente a frente um do outro! E saudade é a necessidade de viver, de ter aquilo que outrora se teve, se possuiu! Nosso sentimento deveria ser desejo, vontade de tocar, de ver para valer, mas saudade... Só mesmo o simples fato de que somos um, que sempre fomos, desde o inicio do universo para explicar essa saudade. Sentimos saudades de outra vida cujos resquícios nossas almas carregam consigo.
Nossas almas lembram-se de quando nossos lábios de tocavam, nossos corpos se uniam num encaixe perfeito. Sim, tudo está guardado na nossa essência.
Agora, que constatei isso, eu não tenho mais medo, e foi você quem me disse que não sentisse medo, você sabia, e não me contou... Mas eu te perdôo. Meu amor, eu não tenho mais medo, porque nenhum amor estava tão certo de acontecer, como o nosso estava, ele já havia sido sacramentado. Não me atemorizo mais com o fato de que ainda demorará para nos encontrarmos de fato, a minha saudade, é a minha garantia que será do teu lado que terminarei meus dias! Meu amor por ti nasceu junto com o Universo, e ganhou suas características: imenso e sempre em expansão!
E foi assim que nosso conto de fadas foi escrito...

“Era uma vez duas fadas, uma chamada Romântica e outra por demais desastrada que se chamava Atrapalhada. A tarefa da fada Romântica era localizar no universo almas gêmeas que não conseguiam se encontrar, ela deveria facilitar o encontro dessas almas, pois a cada par que se unia, o universo de alegria e força de enchia. E era com muito prazer que a fada Romântica fazia seu trabalho, odiava os homens do mundo moderno que diziam e chegavam a acreditar que o amor era um negócio, um contrato. Não, ele existia para provar o contrário! Mas existia a fada Atrapalhada, ela tinha boa vontade em ajudar a irmã, mas por ser muito desastrada, as vezes fazia estragos colossais, alguns incorrigíveis.
E foi assim... Era mais um dia de trabalho para a fada Romântica, ela havia localizado duas almas e devia anotar em seu caderno de nascimentos o local adequado para que eles chegassem ao mundo, e calcular a hora do seu encontro. Quem escrevia os dados obtidos por Romântica era Atrapalhada... Ela determinou que essas duas almas habitariam estados diferentes, por que o amor precisa de alguns obstáculos para se tornar mais forte.
Pois fez assim, elas habitariam um país chamado Brasil, uma delas habitaria o estado de Minas Gerais e a outra o Maranhão, mas essa, teria plantado em seu coração a vontade de habitar a cidade em que morava sua alma gêmea, essa cidade teria todos os atrativos para chamar essa alma, e ela encontraria sua outra metade, seria um encontro perfeito, romântico, bem ao seu estilo! Atrapalhada anotou tudo direito, mas percebeu que não havia entregado no dia anterior, ao senhor Cegonha o endereço de um dos novos habitantes da Terra. Ihhhh, se Romântica soubesse, daria-lhe uns bons puxões de cabelos, então pegou o envelope com o endereço, era para um lugar perto de Minas, era perto do percurso do senhor Cegonha, ele nem teria muito trabalho... Entregou ao Cegonha os endereços e na hora, como era de se esperar de alguém tão desastrado, trocou os envelopes, mandou entregar o habitante de Minas no Rio de Janeiro, e aquilo que estava previsto para acontecer seria totalmente prejudicado...
O tempo foi passando e já chagava o momento de Romântica verificar se aquelas almas que estavam prometidas de se encontrar em Minas já estavam se preparando para o encontro. Foi ai que descobriu mais essa mancada da irmã!
-Atrapalhada!!!!!!!!!!!!!!!! O que você fez?!
Atrapalhada tentou se justificar, disse que o Rio nem era tão longe de Minas e que todo mundo naquele país deseja conhecer o Rio. Mas Romântica sabia que não era bem assim...a habitante do Maranhão,um espírito feminino e frágil possuía um medo absurdo de violência, e havia criado uma antipatia por aquele lugar onde estava alocado sua metade. Ela nunca pisaria lá por espontânea vontade, sua metade por outro lado, amava sua terra, lugares frios, como um dia poderia visitar o lugar quente onde habitava sua prometida. Como Romântica iria consertar as coisas?
Não demorou muito para vir a idéia. Romântica pegou seu computador e mandou um sms para seu primo destino, ele teria que ajudá-la a consertar as coisas, mas nem chegou a falar com ele, na hora a luz brilhou sobre sua cabeça. É claro! Eles haviam nascido no tempo da internet! Como não havia pensado nisso antes, bastava fazer com que se esbarrassem, sem querer, num desses tráfegos da rede.
Mas como eles eram diferentes nas atitudes, o espírito masculino tinha tantos amigos e uma vida intensa, o feminino viva recluso, com suas metas, sem desviar-se do seu caminho. Eles haviam perdido de alguma forma, a vontade de se encontrar, pois essa vontade não morre nunca, ela vai com o espírito aonde ele for e é por isso que eles acabam facilitando a localização que Romântica fazia. Mas e agora, o espírito feminino nem gostava dessa coisas legais que tinha na internet... que espírito mais chato! Pensou romântica.
Então teve que ligar para o Destino
-Eu não faço mágica, posso facilitar o encontro, mas quem vai fazer ela ir procurar? Isso é essencial!
Romântica ficou muito triste, seria um dos poucos casais que não conseguiria tornar um. Tudo culpa daquela Atrapalhada, ela merecia ficar careca. Lembrou da Estrela Dalva, ela podia fazer alguma coisa, talvez plantasse no coração do espírito feminino o desejo de ingressar naquele mundo virtual.
-Sinto muito, mas assim eu não posso, o Senhor me deu o poder de atender pedidos, mas eles tem que ser feitos, se ela não fizer eu nada posso fazer.
E todos os dias Romântica vigiava aquele espírito e se entristecia por que ele ficava cada dia mais recluso, como aquele espírito possuía emoções intensas, por um lado era bom, mas por outro, ele já estava muito ferido, era tão ingênuo.. Mas ela sabia que aquele espírito ainda tinha o desejo de achar sua outra metade, era um desejo que estava escondido, lá dentro, as ele brilhava, mesmo foscamente.
Não vou dizer que passou muito tempo, pois no mundo das fadas não existe tempo. Mas Romântica estava cada vez mais desiludida, o Senhor havia criado um único ser, eles se separam como outros e como poucos nunca mais se encontrariam. O espírito mais fraco, feminino havia desistido de procurar, agora se preocupava com outras coisas. Romântica, com muito pesar resolveu se esforçar para juntar outro par de espíritos.
Surpreendentemente, quando estava para levar o relatório daquela missão fracassada para o seu arquivo morto, recebeu a visita de uma alegre Estrela Dalva.
-Ela fez o pedido!
O coração de Romântica bateu com alegria, descompassado.
_Qual foi, ela pediu para achar sua metade, custasse o que custasse, ela entrou na net e pediu para achar ele?
-Calma, não foi isso. Mas a gente dá um jeitinho. Ela pediu, para não mais encontrar falsos amores. Agora deixa comigo, nunca mais ela vai se iludir com palavras falsas e o seu primo Destino já está fazendo a parte dele. Tudo vai dar certo, talvez demore um pouco, mas eles vão se achar e a união será realizada, como havia sido previsto desde o início.
Nem preciso dizer quão alegre ficou aquela fada, não existe nada melhor para um profissional apaixonado, do que ver um trabalho concluído. Mas esse só se concluiria depois que eles se encontrassem não se reconheceriam na hora, mas aos poucos, eles se reconheceriam um no outro, e pronto nada mais os separaria novamente.
Para o tempo terreno o tempo foi até curto, um espaço de oito meses, entre o pedido e o encontro, e nove para que eles finalmente ouvissem os sinos badalarem, esses sinos eram da festa que Romântica sempre fazia toda vez que duas almas gêmeas se tornavam apenas um ser.”“Era uma vez duas fadas, uma chamada Romântica e outra por demais desastrada que se chamava Atrapalhada. A tarefa da fada Romântica era localizar no universo almas gêmeas que não conseguiam se encontrar, ela deveria facilitar o encontro dessas almas, pois a cada par que se unia, o universo de alegria e força de enchia. E era com muito prazer que a fada Romântica fazia seu trabalho, odiava os homens do mundo moderno que diziam e chegavam a acreditar que o amor era um negócio, um contrato. Não, ele existia para provar o contrário! Mas existia a fada Atrapalhada, ela tinha boa vontade em ajudar a irmã, mas por ser muito desastrada, as vezes fazia estragos colossais, alguns incorrigíveis.
E foi assim... Era mais um dia de trabalho para a fada Romântica, ela havia localizado duas almas e devia anotar em seu caderno de nascimentos o local adequado para que eles chegassem ao mundo, e calcular a hora do seu encontro. Quem escrevia os dados obtidos por Romântica era Atrapalhada... Ela determinou que essas duas almas habitariam estados diferentes, por que o amor precisa de alguns obstáculos para se tornar mais forte.
Pois fez assim, elas habitariam um país chamado Brasil, uma delas habitaria o estado de Minas Gerais e a outra o Maranhão, mas essa, teria plantado em seu coração a vontade de habitar a cidade em que morava sua alma gêmea, essa cidade teria todos os atrativos para chamar essa alma, e ela encontraria sua outra metade, seria um encontro perfeito, romântico, bem ao seu estilo! Atrapalhada anotou tudo direito, mas percebeu que não havia entregado no dia anterior, ao senhor Cegonha o endereço de um dos novos habitantes da Terra. Ihhhh, se Romântica soubesse, daria-lhe uns bons puxões de cabelos, então pegou o envelope com o endereço, era para um lugar perto de Minas, era perto do percurso do senhor Cegonha, ele nem teria muito trabalho... Entregou ao Cegonha os endereços e na hora, como era de se esperar de alguém tão desastrado, trocou os envelopes, mandou entregar o habitante de Minas no Rio de Janeiro, e aquilo que estava previsto para acontecer seria totalmente prejudicado...
O tempo foi passando e já chagava o momento de Romântica verificar se aquelas almas que estavam prometidas de se encontrar em Minas já estavam se preparando para o encontro. Foi ai que descobriu mais essa mancada da irmã!
-Atrapalhada!!!!!!!!!!!!!!!! O que você fez?!
Atrapalhada tentou se justificar, disse que o Rio nem era tão longe de Minas e que todo mundo naquele país deseja conhecer o Rio. Mas Romântica sabia que não era bem assim...a habitante do Maranhão,um espírito feminino e frágil possuía um medo absurdo de violência, e havia criado uma antipatia por aquele lugar onde estava alocado sua metade. Ela nunca pisaria lá por espontânea vontade, sua metade por outro lado, amava sua terra, lugares frios, como um dia poderia visitar o lugar quente onde habitava sua prometida. Como Romântica iria consertar as coisas?
Não demorou muito para vir a idéia. Romântica pegou seu computador e mandou um sms para seu primo destino, ele teria que ajudá-la a consertar as coisas, mas nem chegou a falar com ele, na hora a luz brilhou sobre sua cabeça. É claro! Eles haviam nascido no tempo da internet! Como não havia pensado nisso antes, bastava fazer com que se esbarrassem, sem querer, num desses tráfegos da rede.
Mas como eles eram diferentes nas atitudes, o espírito masculino tinha tantos amigos e uma vida intensa, o feminino viva recluso, com suas metas, sem desviar-se do seu caminho. Eles haviam perdido de alguma forma, a vontade de se encontrar, pois essa vontade não morre nunca, ela vai com o espírito aonde ele for e é por isso que eles acabam facilitando a localização que Romântica fazia. Mas e agora, o espírito feminino nem gostava dessa coisas legais que tinha na internet... que espírito mais chato! Pensou romântica.
Então teve que ligar para o Destino
-Eu não faço mágica, posso facilitar o encontro, mas quem vai fazer ela ir procurar? Isso é essencial!
Romântica ficou muito triste, seria um dos poucos casais que não conseguiria tornar um. Tudo culpa daquela Atrapalhada, ela merecia ficar careca. Lembrou da Estrela Dalva, ela podia fazer alguma coisa, talvez plantasse no coração do espírito feminino o desejo de ingressar naquele mundo virtual.
-Sinto muito, mas assim eu não posso, o Senhor me deu o poder de atender pedidos, mas eles tem que ser feitos, se ela não fizer eu nada posso fazer.
E todos os dias Romântica vigiava aquele espírito e se entristecia por que ele ficava cada dia mais recluso, como aquele espírito possuía emoções intensas, por um lado era bom, mas por outro, ele já estava muito ferido, era tão ingênuo.. Mas ela sabia que aquele espírito ainda tinha o desejo de achar sua outra metade, era um desejo que estava escondido, lá dentro, as ele brilhava, mesmo foscamente.
Não vou dizer que passou muito tempo, pois no mundo das fadas não existe tempo. Mas Romântica estava cada vez mais desiludida, o Senhor havia criado um único ser, eles se separam como outros e como poucos nunca mais se encontrariam. O espírito mais fraco, feminino havia desistido de procurar, agora se preocupava com outras coisas. Romântica, com muito pesar resolveu se esforçar para juntar outro par de espíritos.
Surpreendentemente, quando estava para levar o relatório daquela missão fracassada para o seu arquivo morto, recebeu a visita de uma alegre Estrela Dalva.
-Ela fez o pedido!
O coração de Romântica bateu com alegria, descompassado.
_Qual foi, ela pediu para achar sua metade, custasse o que custasse, ela entrou na net e pediu para achar ele?
-Calma, não foi isso. Mas a gente dá um jeitinho. Ela pediu, para não mais encontrar falsos amores. Agora deixa comigo, nunca mais ela vai se iludir com palavras falsas e o seu primo Destino já está fazendo a parte dele. Tudo vai dar certo, talvez demore um pouco, mas eles vão se achar e a união será realizada, como havia sido previsto desde o início.
Nem preciso dizer quão alegre ficou aquela fada, não existe nada melhor para um profissional apaixonado, do que ver um trabalho concluído. Mas esse só se concluiria depois que eles se encontrassem não se reconheceriam na hora, mas aos poucos, eles se reconheceriam um no outro, e pronto nada mais os separaria novamente.
Para o tempo terreno o tempo foi até curto, um espaço de oito meses, entre o pedido e o encontro, e nove para que eles finalmente ouvissem os sinos badalarem, esses sinos eram da festa que Romântica sempre fazia toda vez que duas almas gêmeas se tornavam apenas um ser.”
Gostou amor? Acho que foi isso que aconteceu! Agradeça a mim por ter feito o pedido, mas eu agradeço a ti, por ter esperado eu fazê-lo.
Beijos, te amo!!
A moça concluiu a carta, estava um nojo a letra, escreveu deveras rápido, passaria a limpo e a enviaria junto com o presente de aniversário que havia comprado para ele, aquele seria o ultimo aniversário dele que comemorariam separados, agora que ela tinha certeza que o universo havia adotado aquele amor, nada mais a preocupava. “Em breve...” Pensou começando a escrever, na letra legível e caprichada da qual tanto se orgulhava.
 
Parece até conto de fadas

Na Cidade

 
Na Cidade

O coletivo iniciava mais uma viagem. Ela tentava ler um livro, mas os solavancos da estrada esburacada a alertaram do perigo que significava tal ato. Poderia ter um deslocamento da retina. Esse tipo de observação era típico da tia Dulce, nunca viu ninguém com tanto zelo com a saúde alheia.

Ela mesma, nem se preocupava, nem se incomodava, apenas agradecia por ter sua visão e poder contemplar o mundo e suas belezas. No entanto, havia momentos em que preferia enxergar apenas escuridão, momentos em que testemunhava coisas terríveis, resultado da ação do homem.

Outro dia, estava na sua viagem diária, quando o ônibus parou, para a entrada de um passageiro. Ela olhou pela janela, e viu, aquilo que era tão normal nas grandes cidades, nas pequenas, em todos os cantos. Era o rastro amargo da fome. Viu com os olhos tristes e impotentes, o “bicho” do Manuel Bandeira. Um homem de idade mediana, cabelo sujo, grande e desgrenhado, barba por fazer, roupas em farrapos que pareciam despedaçar a cada sopro do vento. Olhou com raiva de se mesma aquela criatura marginalizada abocanhando o lixo jogado num canto do poste. Um nó fez-se em sua garganta e quase chorou de revolta. Todos, na parada, nas lojas olhavam. Alguns mantinham indiferença, outros criticavam, alguns mantinham indiferença, outros criticavam, falavam mal do governo. Ninguém, porém fazia nada, todos covardes! Inclusive ela! Que não descia e tentava amenizar o horror daquela cena. Quantas pessoas em seu país não estariam naquele momento a mesma ação daquele homem sozinho e faminto.

O ônibus tomou partida e deixou para traz o homem remexendo nas sacolas. Mas, não ficou naquela parada o nó em sua garganta. Naquele dia queria não ter olhos para ver aquela triste verdade urbana. Ouvir o jornal, a TV, o rádio... Falar se torna corriqueiro, porém, ver, por um momento mostra como a realidade é cruel. E ela ainda reclamava porque não tinha algumas futilidades. Que egoísta, o pobre homem se conformava com o lixo e quanto a ela que tinha tudo o que precisava, ousava reclamar. Era perfeita, não era doente, aliás, sua saúde era de “ferro”, era inteligente, tinha acesso à escola, uma casa para lhe proteger da chuva, dos raios do sol. O que, o que mais queria? Tinha todos os motivos para ser feliz.

Selena voltou à realidade, parecia que quando pensava, a viagem demorava mais ainda. Agora que estava na metade do seu percurso. O ônibus parou e deu passagem à um rapaz, devia ter no máximo vinte e um anos, magro, pele moreno-clara, cabelos grandes e lisos presos por um elástico olhos castanhos e vazios. Olhava fixamente para a frente, na mão direita um tateador de cego. Era bonito, ele era cego, tão jovem! Não pareceria cego se não fosse o modo lento com que procurava o acento, o olhar furtivo e o tateador. Sentou-se perto dela. Ainda emocionada pela lembrança passada. Soluçou ao ver o jovem. Como ele conseguia viver na escuridão? Jovens gostam de aproveitar o mundo, e como ele fazia se o mundo lhe era ignoto? Outro soluço. Ah, como era sentimental, não era à toa que seu amigo , Mário sempre que a via dizia “não chore!”. Estava sempre sentindo um aperto no peito e o nó na garganta. Era muito sentimental, bastava algo minúsculo para ela irromper em lágrimas. O rapaz percebeu e virou em sua direção, seus olhos continuavam distantes e vazios. Não entendia porque aquele ataque logo ali. Todos iriam vê-la, pensariam que sofria de amor, ou brigara com os pais, oh, não! Por que tinha que lembrar disso logo agora? Seus queridos pais estavam tão longe e nunca mais os veria. Restava-lhe apenas tia Dulce, que era como uma irmã mais velha.
__ Moça, não sei por que chora,mas tome este lenço, é bom chorar, alivia as dores do coração.
__ Mas não cura a alma.__ As pessoas em volta já haviam notado. Alguns com semblantes pesarosos, outros apenas curiosos.
__ A alma, só Deus pode curar.__ A voz dele era tão serena, tão cheia de paz. Ele levantou-se e foi para a porta de saída, desceu com destreza, já saltava do ônibus, ouviu quando o motorista lhe indicou a direção a seguir e ele cruzou a rua assobiando.

Parecia tão desprotegido, andando sozinho, só ele e suas sombras. Por que ninguém o acompanhava e cuidava dele? Ela mesma quase sempre queria um colo, um ombro para se refugiar. Uma mão para guiar-lhe, como naquele momento. Queria apenas ter alguém para cuidar dela.

Todos precisavam, assim como o rapaz cego, o homem do lixo. Na cidade as pessoas não eram companheiras. Um gesto solidário esporadicamente, e só. Esse era o modo de vida urbano, o amor na cidade era egoísta. Pensava somente em si mesmo. Encostou-se no vidro do ônibus, que ironicamente, oferecia-lhe o “ombro” que estava precisando.

Era uma perspectiva negativa de se ver a vida. Quando chegava no trabalho, era a secretária de um otorrino, o médico não era o dono da clínica. Às vezes atendia pacientes vindos da rede pública, claro que ela o apoiava, mas sempre havia algum puxa-saco do chefão. No fim do mês, uma boa soma do salário dele era descontado. Mas, seu chefe era uma pessoa feliz, não reclamava sempre lhe dizia que não saía perdendo, pelo contrário, o agradecimento era o melhor pagamento. Ela percebia que o mundo estava cheio de pessoas de coração generoso. Então voltava a acreditar que as coisas não eram tão negras como ela pintava.

Saiu no horário, às quinze da tarde. Caminhou em direção ao supermercado que ficava próximo à clínica. Demorou um pouco na fila. Ninguém respeitava as normas, a fila para clientes com poucas compras era a mais cheia. Quando saiu era quase quatro da tarde. Tudo para comprar os biscoitos de aveia sem açúcar da tia Dulce e seu leite desnatado. Sentiu vontade de ver o mar, sentir o vento bater em seu rosto. Não tinha coragem de ir à praia sozinha, sempre corria o risco de ser assaltada. Era uma realidade, principalmente durante a semana, quando as praias não estavam tão cheias quanto no fim de semana. Então foi à Praça Gonçalves Dias. Ficou ali, na murada, a Praça Maria Aragão logo abaixo e o encontro dos rios Bacanga e Anil com o mar, e logo atrás o sol. Logo o céu se tingiria de vermelho e a noite se apresentaria. Adorava aquela vista. Lembrava-se das coisas boas que vivera. Era como um bálsamo para suas dúvidas.

Sentou-se num dos bancos e ficou só olhando para o horizonte, a mente vazia. Nem se deu conta que alguém se sentava ao seu lado. Quando percebeu que o tempo passou, levantou-se para ver o sol “mergulhar” na água. Então ouviu uma voz familiar.
__ Oi moça, já vai?
Ele olhou para o estranho, e lembrou-se, era o rapaz cego. A cidade não parecia ser um mistério para ele, como ela pensou inicialmente.
__ Oi. Eu só vou ver o pôr-do-sol.
Ele sorriu e concordou.
__ Então vá logo, pela sua voz, Deus já começou a curar sua alma.
Ele se lembrava dela!
__ Como pode saber quem sou?
__ Pelo seu cheiro.
__ O perfume que uso não é exclusivo. Ah, já sei! É pelo tom da minha voz, sei que pessoas como você tem uma audição muito aguçada.
__ Não, eu soube antes de ouvi-la. Mesmo com o perfume que usa, eu senti seu cheiro, aquele que só você tem, aquele que todas as pessoas têm.
Selena voltou a sentar. Realmente, o que ele dissera era verdade.
__ Então, está na rua desde aquela hora?
__ É, estava tentando convencer as pessoas de que sou capaz, que eu sou qualificado para trabalhar num escritório de administração, basta eles terem as ferramentas que eu possa utilizar no meu oficio. Mas, basta o fato deles verem que sou cego, para me descartarem antes de ler meu currículo, mesmo antes de me ouvirem.
Outra verdade.
__ E você,deve está triste.
__ Fico triste com a hipocrisia das pessoas que falam em inclusão, mas na hora de fazerem-na, saltam fora. Tenho uma pensão do governo, mas não queria ser um parasita do sistema se posso, eu mesmo me manter.
__ Então, vai continuar tentando?
__ Por que desistiria? Para provar que têm razão? Não mesmo!
__ Você é mais seguro que eu, que não tenho se quer um resfriado.
__ Quando um cavalo tem medo de atravessar certo caminho, lhe cobrem os olhos, então, ele segue, porque sabe que o que quer que esteja à sua frente, não pode feri-lo, ele enfrenta qualquer coisa, porque o inimigo não existe se ele não pode contemplá-lo.
__ Você tem o dom de falar a verdade.
__ Não tenho medo do mundo porque ele tem a forma que eu quero que tenha. Não sei o que está à minha frente, gosto de imaginar que são nuvens de algodão. Então, tudo fica mais fácil.
__ Vou me lembrar disso. Sou muito covarde, quando a covardia bater, fecharei os olhos e continuarei em frente.
__ Só pode usar o que possui, qualquer outra tentativa redundará em frustração.
Num impulso ela o beijou no rosto.
__ Obrigada, por tudo. Eu ainda estou com o teu lenço, quer de volta?
Ele deteu a mão dela que lhe estendia o lenço.
__ Use-o quando sentir vontade de chorar.
__ Não ouviu o que disse? Serei forte, pode apostar!__ Ela olhou para o céu que já estava violeta.__ Perdi o pôr-do-sol, será que pode me acompanhar até o ponto do ônibus? Não acho que seja muito seguro, tem muitos ladrões à espreita.
O rapaz se levantou e Selena encaixou o braço no dele. Eles caminharam, conversando animadamente. Era sempre assim, as lições vinham nos momentos menos esperados. Mas era sempre válido.O rapaz tinha novamente razão, de alguma forma, Deus deu um jeito de curar sua alma.
 
Na Cidade

Apenas uma pessoa que usa a literatura e o cinema para fugir desse mundo cão. Escrever é apenas um ato e exercício de liberdade!