Poemas, frases e mensagens de Ana G

Seleção dos poemas, frases e mensagens mais populares de Ana G

Esquece

 
E se um dia achares que podes voltar atrás.
Esquece
Não é para todos o lema nipónico “mais vale voltar atrás que perder-se no caminho”
Para ti, que te perdeste muito antes disso, resta-te seguir por outro. Paralelo.

E se um dia te lembrares de que cor são os meus olhos, fecha os teus.
Vais ver que a imagem desaparece e o lago profundo das lágrimas que já chorei dará lugar ao sol que agora me aquece e me afaga.
Na tua vez.
Em vez de ti.
Apagando-te a sombra.
É isso.
Está apagada a tua sombra.
Em dias de sol.
 
Esquece

Saudades da minha Beira

 
A Beira é “dureza” .. é mulher vergada no campo, homem fora o dia todo atrás de rebanho.
A Beira é menina de rio lavada, trouxa de roupa à cabeça, pé descalço no mato, arranhadela.
A Beira é terra bravia pintalgada de giesta peganhenta, passeio de fim de dia, cheiro a pinha e eucalipto.
A Beira é seara madura, dourada de vento e terra em verde milho semeada.
Casinhoto de pedra, lareira acesa e queijo acabado de coalhar .. ordenha, leite quente e gostoso, cheio de nata a boiar.
 
Saudades da minha Beira

Mãe .. Mulheres, Mães.

 
E depois há alturas em que parece que o mundo te caiu em cima.Sim, o mundo, o globo terrestre com todas as kiloteslas e nanogramas que se lhe conhecem.
O obstáculo intransponível suga-te a energia, a luz, a fonte e o calor. Apetece-te colocar a cabeça entre as pernas, como os senhores paramédicos dizem para se fazer quando suspeitamos de quebra de tensão, e desistir. Apetece fechar portas e janelas e colocar o aviso: não estou, morri com um secreto desejo que ninguém acredite e volte mais tarde.

Apetece amaldiçoar tudo e todos e acima de tudo, todos quantos julgamos responsáveis pela infelicidade que nos caiu em cima aos trambolhões. E há vários. Há, invariavelmente e sempre, imensos.

E depois acordamos num profundo coma com os filhos a pedir o leite da manhã ou ajuda para ligar o televisor. E no sorriso de olhos brilhantes de uma cara laroca, aos pés da cama de onde achámos não nos voltaríamos a levantar, vamos buscar a força escondida que nos esmaga, também ela, o peito, e secamos as lágrimas, ensaiamos um sorriso e dizemos para nós mesmas, porque as mulheres nisso são fantásticas e conseguem, conseguem sim mesmo que não acreditem, e conseguem sempre que se propõem conseguir. Dizemos, bom dia espelho!

E vestimo-nos, e preparamos o leite, e olhamos pela janela, e ligamos o televisor, e vamos às compras com uma lista infinita que de nada nos serve porque a esquecemos no fundo da mala, e comovemo-nos com a venda de t-shirts para alegrar meninos deficientes, e olhamos os nossos e damos graças por não estarmos dependentes da venda de nenhuma t-shirt para lhes colocar um sorriso nos lábios, eles que nos acordaram de manhã de sorriso brilhante e um: mãe preciso-te. E compramos, cozinhamos, arrumamos, e ainda lavamos o carro, cozemos a mochila e escovamos os ténis, arrumamos brinquedos, sacudimos o pó, aspiramos o chão enquanto respondemos aos gritos, por cima do barulho do aspirador, a uma enfiada de perguntas sobre tudo e sobretudo sobre nada. E brincamos, sentadas no chão, pernas à chinês, vestimos bonecas ou colocamos rodas em carrinhos, há sempre peças a mais, e rimos com eles e eles connosco e nós de nós.
E preparamos banhos com bolas de sabão a pegar no chão da casa-de-banho que acabámos de limpar e suspiramos por ter de o fazer de novo enquanto as rebentamos por entre gargalhadas e cabelos a escorrer. E apanhamos todas as toalhas do chão e gritamos que se despachem, estão ao frio, que tontos! Vão-se constipar!
E ao jantar levantamo-nos trezentas vezes porque de mil algos nos esquecemos, e vigiamos que comam a sopa e tudo, a fruta descascada e as respostas intermináveis às perguntas infinitas que nunca acabam, meu Deus, será que nunca acabam? E deitamo-los com histórias de embalar, fazemos as vozes e os sons, eles sorriem de olhos pestanudos quase, quase a adormecer num abraço mãe adoro-te, e eu adoro-te a ti meu filho, meus filhos, todos. Meus.

E voltamos ao silêncio da casa, a máquina da roupa ligada, a loiça a escorrer, o almoço do dia seguinte orientado, as mochilas com os lanches, com os livros, os chapéus e os casacos, a roupa pronta aos pés das camas e a sopa? Oh Céus, e a sopa que pegou! E mais, mais?

E somos assim.
Mulheres. Mães. Por vezes tão cansadas que ao deitar, nesse mesmo dia, já nem nos lembramos do que nos fez acordar em lágrimas pesadas. Sentidas. Insuperáveis. Afinal não era nada.
Ainda bem. Só assim poderemos passar por tudo de novo e outra vez.
 
Mãe .. Mulheres, Mães.

Lágrima

 
Caiam rápidas!
Despachem-se!
Caiam rápidas e levem a dor e o horror em rios de água salgada de lágrimas sentidas não trancadas.
Caiam rápidas e lavem a alma que é a mesma.
Lavem-na por dentro e tranquem-na à esperança, só assim a fecharão à decepção.
Caiam rápidas, depressa!
.. pelas faces tristes, os olhos profundos inundados secarão em sorrisos feitos de papel porque os de carne nunca mais!
Caiam rápidas e levem convosco a minha essência de menina crédula e confiante, ingénua, levem-na para o fio de água que vejo correr a meus pés, fio de promessas transparentes, de quem nunca pensou em cumprir.
Caiam rápidas despachem-se!
Caiam rápidas, despachem-me!

Acredito que ainda tenho uma vida para viver!
 
Lágrima

Libertar

 
Libertar “fantasmas”.
Abrir as grandes janelas de portadas verde-escuro de par em par e deixar entrar a brisa amena, morna, brisa que entra e procura em todos os recantos, cantos escondidos, atrás dos móveis, remoinho de cotão, procura-os, enxota-os, afasta o cheiro .. inodoro, a forma .. imperceptível, a cor .. incolor.
Varrer memórias penosas como se de pedaços de papel velho e amachucado no chão se tratassem.
Lixo. Puro lixo.
E começar de novo.
Recomeçar a acreditar, com alguma fé no que quer que seja, devagar, primeiro de "coqueras", joelhos no chão, uma mão que se ergue, um braço que se apoia no apoio mais próximo.
Enfim .. de pé.
E surpresa das surpresas .. ?! Não é que o mundo não parou?
Não é que tudo continua, igual, diferente, melhor ou pior, mas lá. Ainda ..
Sorriso nos lábios, é altura para aprender .. a queda dá uma perspectiva diferente da realidade na ponta do nariz. A perspectiva terrena e térrea e o desejo de voltar a erguer.
A confiança. Restaurá-la em papel fino, tracejado firme, de preferência a tinta da china.
Colori-la de novo em tons suaves. Acarinhá-la. E depois .. mantendo o inalterável e sincero sorriso nos lábios .. deixá-la voar, retendo na memória o cheiro a jasmim, a forma perfeita, a cor carmesim.
 
Libertar

.. do Baú

 
Folha branca imaculada
Vontade calada
Desenho de letras
Caneta pousada
Teimosa
Não escreve
Se escreve não rima
Não mostra que sabe
E do que é capaz
Há quem teime, em ternura
Que sim
Que sei
O dom? nenhum
E quem teima em ternura
Teima de novo, docemente
E só mais uma vez
Anda .. vá lá
E a letra sai solta
Primeiro relutante
Começo difícil
Aparo no papel
E pronta a borracha
..sorriso aqui
..pintura além
Letras, palavras
Bem arrumadas
Sons e imagens
E por fim ..
.. quem teima, sorri
E descansa, provando
Que sim
.. sabia.

PS_ brincadeira com que um dia, um dia há “milhões” de anos atrás, brindei quem comigo insistiu que sim .. ;)
 
.. do Baú

Olá Outono

 
Os telhados que a minha vista alcança na janela com que me brinda o gabinete que ocupo tantas horas por dia, tornaram-se já de um tijolo escuro, fruto da humidade e da chuva miudinha que insiste em alertar-nos para o Outono que chega.
Em ala ordenada, as fachadas cinzentas, azuis claras e amarelas sobem a colina ligeiramente inclinada .. uma de tantas da nossa gentil cidade. Ao fundo, bem ao fundo, numa esquina de vidro que a vista ainda abarca, as árvores oscilam em brisa serena que cheira a maresia, maré cheia. Agitam-se as bandeiras cravadas no passeio na despedida de um tempo quieto que, até há pouco, as fazia transpirar. O céu cinza claro, em abertas azuis, poucas, pequenas e redondas, como que acenos de uma estação que sabendo ter de ir não se quer despedir.
As andorinhas que ocuparam em chilreios os tectos da garagem partiram deixando os ninhos vazios e sem sons. Sem vida. Folhas grossas, na maioria ainda verdes, atapetam a entrada do edifício que é virado ao vento para desespero da senhora que, todas as manhãs, se afadiga de volta da vassoura.

É o Outono que chega, suave, em tons nacarados, não muito escuros, estação que tenta instalar-se .. ainda cheio daquela timidez que o caracteriza, ele que não entende como pode o Inverno ser da brusquidão e do desatino, o Verão intempestivo arriscando secar gargantas e a Primavera cheia de humores e amores, tão inconstante que cansa.

É o Outono que chega sussurrando baixinho: veste um casaco :)
 
Olá Outono

Que te diz?

 
Que te diz, que te diz?
Que te traz o vento que abraças?
Em sorrisos que abarcas
Este mundo e mais ainda
O mar
O rio
O verde

Que te diz que te diz?
Que te traz a tempestade?
Feita de raios de lua
Que te diz o mocho?
Que te sussurra a coruja?
Que te diz que te diz?
A pérola que trazes no coração
Tão brilhante e tão pura
Que chego a sentir amargura
Sabê-la por mãos errantes

Que te diz que te diz
Dir-te-á que te amo?
Que te quero e venero?
Dir-te-á que te engano?

Dir-te-á que me engano.
 
Que te diz?

Fechei-me

 
Fechou-se em mim uma janela.
Dizem que Deus quando fecha uma porta abre uma janela, mas neste caso fechámos aqui portas e janelas, entaipámos o sentimento em barras de ferro e de madeira marteladas até à exaustão, demos sete voltas à chave de casa, corremos os estores e atestámos o frigorifico.

Ficámos assim na penumbra de uma assoalhada poeirenta, vendo rodopiar as partículas de pó no ar frio que entra por uma frincha esquecida, tentando ouvir os sons que de longe nos traz a vida. Enquanto apodrece a comida que julgámos apetecida e secam as plantas no parapeito da janela.
Fechámos janelas. Trancámos a porta. Resta retirar o autocolante que diz “publicidade não, obrigada!” da caixa do correio para voltar a certeza de ter de ler. De ter quem escreva. Mesmo no anonimato desinteressante de quem oferece o que não preciso.

Fechámos as janelas que davam para as grandes árvores frondosas e verdes de sombra calma e aliciante. Árvores que plantei um dia certa da colheita. Tão certa que colheria.

A sementeira danificada por outras vontades jaz a meus pés, pequenas sementes indefesas sem ar e sem água. Secas.
Fechámo-nos. Mas de nada adiantou à nossa dor e ao nosso desconforto. O mundo continua lá fora, imparável, imbatível, e quase ninguém sente o sofrimento que por aqui se vive. A desilusão sofrida. A falta de vontade.
Ou seremos nós que afastamos quem timidamente se aproxima para dizer “sinto a tua falta”?
 
Fechei-me

Decidi! Cumprirei?

 
Decidi que não vou odiar.
Não vou manifestar a desconfiança que mergulha na água cálida do meu acreditar. Não vou mudar.
Deixar de ser quem sou, deixar de gostar de mim. Deixar que se vá o meu eu arrastado pelas lágrimas que ainda choro mas que não regam as sementes que jazem a meus pés. Sementes que semeei. Colheita que se perdeu. Nada a fazer. Malditos corvos de quem não achou necessário colocar espantalho.

Não vou dar ouvidos às mensagens desavisadas que me chegam. Mensagens que provêm de pessoas inesperadas. Mensagens inopinadas e despropositadas. Outras, piores, revestidas de um carácter do qual escorrem laivos da mentira. E eu lido mal com a mentira. Venha ela de onde vier, esconda o propósito mais honrado ou o mais vil.

Mentira é mentira. Não me interessa a sua hipotética justificação.
Não vou mais insistir na procura de resposta, a apologia, em coração que não sente como o meu.
Nem obrigar os olhos a olharem-me ao mesmo tempo que a boca fala. Não vou, de novo, implorar, pedir, rogar. Não vou mais mirar o pedaço de papel que tenho em meu poder, assinado a trouxe mouxe, como tudo o que nele vem escrito. Felizes os que acreditam que a letra manuscrita ou impressa tem a força de um olhar. De um sorriso, ou de uma lágrima.
Vou arquivar as conversas na caixa do esquecimento, os beijos e planos na caixa do nunca deveria ter existido. Mas calmamente. Com jeito. Só assim sei se manterão lá dentro por tempo suficiente para que os esqueça.
Vou fechar ambas as caixas, lacradas e seladas, na cómoda que um dia escolheria. Um ano inteiro, arrumado, junto daquela peça feita em cacos que não consigo reconstruir mas que também não tenho, ainda, vontade de deitar fora. Junto com bolas de naftalina.
Decidi que não vou odiar.
Porque tal como o Amor o Ódio é um sentimento que se tem por quem merece.
Por quem nos merece.
Tudo o mais é farinha em saco roto que serviu para alguém amassar uma existência sem nunca ter tido a mínima intenção de a viver.
 
Decidi! Cumprirei?

Penso

 
Penso logo existo e a coisa deveria funcionar assim tão linearmente quanto baste.
Penso logo existo e assoma-me a dúvida sobre que penso eu para provar a existência.
Penso logo existo e instala-se um desconforto de uma existência não pensada, ou será um pensamento que ainda não existe.
Penso logo existo e deixo-me ficar enroscada, tentando dar existência aos pensamentos, pensando em como os praticar para os tornar visíveis, sensíveis, existentes ?

Penso logo existo, e perde-se a memória em todos quantos conheço que existem sem pensar, que não pensam por existir, que nem tão pouco questionam a existência.
Penso logo existo, e penso e repenso, estoiro-me a pensar, pobres neurónios em debandada de um cérebro cansativo .. ou será cansado?
Penso logo existo, e de repente apetece-me, sem pensar, existir em pensamento alheio que me torne .. inexistente.

(editado com alterações)
 
Penso

Se ..

 
Tradução minha de um dos poemas mais intensos e cheios de significado que conheço.
Original If de R. Kipling.
Aqui partilhando convosco esta experiência.
Obrigada
Ana G

Se conseguires manter a lucidez,
Quando à tua volta todos a perdem e disso te culpam
Se conseguires em ti crer quando todos duvidam,
E ainda assim ser complacente com tais dúvidas.
Se conseguires esperar sem desesperar,
Ou ser caluniado sem recorrer ao embuste
Ou ser odiado sem que ao rancor cedas caminho,
E ainda assim não seres nem vaidoso nem pretensioso

Se conseguires idealizar sem que os sonhos te dominem
Se conseguires pensar sem fazer de um pensamento O objectivo,
Se conseguires cruzar-te com o Sucesso e com a Tragédia,
Sem te deixares levar pela emoção
Se aguentares escutar a verdade que proferiste,
Por velhacos, deturpada em armadilha para ingénuos,
Ou observar tudo pelo que deste a vida, destruído
E vergado, tudo de novo construíres com o que te reste
Se conseguires juntar os ganhos de uma vida
Arriscá-los num lance de "cara ou coroa",
Perder, e de novo começar,
E nunca, sobre a perda, suspirar.

Se conseguires forçar o teu coração, nervo e tendão
A servirem-te, ainda que já não sirvam
E a aguentar quando já nada em ti existe
Que a Vontade que te diz “persiste!”
Se conseguires falar a multidões
e manter a tua honestidade
Ou conviver com Reis
sem desprezar a humildade
Se de amigos e inimigos te defendes
Se todos para ti contam como iguais
Se conseguires em cada minuto penoso
Ver sessenta segundos imortais

Tua é a Terra e tudo ao teu redor
E – o essencial - tu serás um Homem, meu filho!
 
Se ..

Porque sim

 
E depois vem o vento
E o vento traz a chuva
E a chuva tempestade
As árvores enormes balançam
Como que em danças de salão
Ouve-se um ramo partir
Uma raiz a gemer
Como que a deixar ir
Quem a fez crescer

E depois vem um grito
Do fundo da escuridão
Pés pesados
Portas a bater
E a garota assustada
Puxa os lençóis para a cara
E pensa: é um sonho, aquilo que estou a viver.

E de sonho passa a vida
Atenta, serena e calma
E a garota assustada
Mulher crescida
Formada
Promete que enquanto viver
Não deixará cair
As raízes que vê crescer

Escrito em 1987. Porque sim.
 
Porque sim

Viagens

 
Música trauteada baixinho
Som que se apercebe mais do que se escuta
Letras
Palavras
Bens preciosos .. tão preciosos

Nuvens no céu em forma de pássaros
Asas de penas fofas .. moles
Ecos trazidos de terras distantes
Estradas de outros países
Línguas de outras nações
Pontos, traços, cores, formas .. chapéus (?)

Vento ! Muito vento .. tanto vento!
Vento que despenteia cabelos
Salpicos de mar em faces rosadas
.. bocas a rir .. gargalhadas, sorrisos
Lágrimas salgadas, sentidas !

Fruta fresca madura,
Água gelada escorrendo ..
Abre-te coração .. e sente !
 
Viagens

Mal-Entendido

 
Há-os em todas as línguas.
E enquanto o homem for homem, animal racional, ser pensante, motivado e motivador, nem sempre pelos mesmo princípios, com os mesmos objectivos .. mas, ainda assim.

É pena .. as letras, esses bem preciosos e luzidios, carregados de significado maior que as suas sílabas que quando bem arrumados e com música dão origem à maior das poesias, à mais brilhante serenata, à composição preciosa que se estuda hoje, feita, pensada, organizada há séculos atrás. À obra que se lê sempre, ontem tal como hoje aposto ainda que amanhã.
Quando mal arrumadas, colocando verbos sem substantivos, adjectivos sem nada para adjectivar, ausência de pronomes de posse ou pequenos artigos, fundamentais, .. ou simplesmente gritadas do alto de uma fúria, da ira, assumem a vez do agressor, ferem, magoam, pedras atiradas não ao charco mas contra a moral de alguém, o credo de alguém, a inocência de alguém, provocando danos maiores que os sinónimos, superiores aos antónimos, irreversíveis.
É pena .. mas acontece.

Pior: dizê-las com um determinado intuito oculto esperando, vã esperança, que o interlocutor não chegue lá, não alcance, não entenda, levá-lo por meandros, normalmente pouco claros, a aceitar o que se quer, a anuir a uma qualquer vontade que não a sua, a própria, indiferente ao seu querer, e depois, surpreendidos com a rapidez, o “golpe de vista”, o “vens de carrinho” alterar-lhes o sentido, a forma, o som e o tom, esperando de novo, esperança ainda mais vã, que nisso, também se creia.

É então a altura ideal para o “não queriam mais nada ..”! virar costas. E seguir.
 
Mal-Entendido

Às vezes ..

 
Às vezes, confias.
Outras, desconfias.
Às vezes a ânsia de confiar é tal que em vez de desconfiares fortemente de todos os indícios que lá estão e te dizem "Desconfia!", vais confiando e acreditando até bateres com a cabeça na trave de madeira tosca e velha escondida por debaixo do colchão de penas último modelo, tapado com o melhor dos cetins. Daquele escorregadio no desassossego.
Às vezes, desconfias.
Principalmente de quem te diz “Desconfia!”. Negas a evidência que mais sinalizada não pode estar. Como quem não se quer desiludir na expectativa e na fasquia. Alta. Sempre tão alta a fasquia.
Normalmente acordas. Tarde e a más horas, sem saberes que fazer com tudo o que investiste. Tudo o deste. Tudo em que acreditaste. Como se o pior de toda a situação fosse ouvires a vozinha altaneira da tua consciência afirmando sibilante “i told you so”.
Normalmente acordas. E na melhor das situações verificas que tudo não passa de uma terrível dor de cabeça. Daquelas que passam com dois comprimidos seguidos e uma chávena de chá fumegante.
Do mal, o menos.
A única chatice que tens de enfrentar agora é descobrir qual a bendita farmácia de serviço.
Nada mais.
 
Às vezes ..

Quão Só?

 
Pergunto-me, por vezes, Quão só estamos?

Entro no café de manhã e vejo-os quase todos os dias, dois homens, de alguma idade, mesas separadas, em frente a uma torrada e um copo de leite, não olham a televisão ligada aquela hora para a noticia madrugadora, nem o jornal, diligentemente colocado ao fundo das mesas. Sozinhos.

Numa outra mesa, disfarçada pela coluna que separa a zona de balcão da das mesas, uma rapariga distrai-se diariamente em jogos no telemóvel. Permanece desde que entro até que saio. Sozinha.

No restaurante, à hora do almoço, a rapariga a quem tenho acompanhado a evolução da gravidez, senta-se invariavelmente na mesma mesa, fixa a televisão numa necessidade de se manter alheada da conversa animada dos grupos que vão enchendo o local. Sozinha.

Há uma senhora de idade que pede uma sopa e um cesto de pão, ocupa a mesa mais recôndita, agarrando com força um saco e uma pequena bolsa, e fita as unhas enquanto come. Sozinha.

Ao fim-de-semana aparece o sem abrigo das tranças, figura caricata, muito alto, muito magro com o cabelo comprido todo entrançado.
Lança-nos um meio sorriso quando lhe estendo o saco de papel com fruta e sandes, murmura algo que não consigo entender e segue o seu caminho. Igualmente sozinho. Quase invisível.

Na esplanada que gostamos de frequentar ao fim-de-semana depois do passeio matinal à beira rio há já três caras conhecidas. Pessoas de idade, olhos fitos na água, por vezes levemente distraídos com a algazarra dos mais pequenos, por vezes esboçando um sorriso triste no meio de rugas, que, estou certa, não apareceram sozinhas.

Quão só estão tantos?
 
Quão Só?

.. Porquê?

 
Que tristeza é essa que te faz chorar?
Que tão terrífico se passou que te coloca essa mágoa nos olhos, outrora brilhantes e confiantes?
Que mal vem ao Mundo assim de repente e em vagas de lágrimas que caiem grossas, imparáveis, cara abaixo sem que nada faças para as travar?
Não o consegues, adivinho, é mais forte que tudo, e o peito soluça em estertor anunciando uma morte calculada, provavelmente desejada.
Que tristeza é essa que te ensombra o sorriso, outrora aberto e confiante de quem sabe o que quer?
Que angústia é essa?

Quando se está triste está-se porque, advogam as leis que na consequência colocam uma causa, coisa arrumada, matemática e sem sentir.
Mas tu não o sabes explicar.
Choras simplesmente e à vista de todos.
Sem pudor.
Como se já não interessasse.
Interessa?
 
.. Porquê?

Passa a Vida ..

 
Passa ao longe o NileDutch carregado de contentores. Orgulhoso da pintura recente, a cor brilha no brilho do rio, que brilha do brilho do Sol. Rio que o empurra ao destino. Outro, mais pequeno, de passageiros faz a enésima travessia desde que aqui estou, sentada. A esplanada agradável, o rio como pano de fundo, Cristo de braços abertos a dizer-me “tem calma”.
A música faz-me sorrir. Há alturas na vida em que tudo parece sentir que tem, de propósito, que vir de encontro ao nosso sentir. You didn’t know how to love me .. murmura uma voz quente, provavelmente negra, matizada de um blues indefinido com acordes de guitarra.
Solícito o empregado pergunta-me com um ar levemente pesaroso “que vai ser menina?”, acho que as mulheres sozinhas em esplanadas merecem, provavelmente, aquele ar de .. pena.
Peço um folhado de queijo de cabra. Gosto de folhados. Aprecio queijos no geral.

Virgínia Wolf diz-me, no livro que me acompanha: “automóveis, camiões e autocarros ou carrinhos de mão deslizam por nós como peças de um puzzle, puzzle que nunca chega a completar-se por muito que o observemos”. À minha frente uma mesa com um garoto acompanhado pelo pai. Fala ao telefone e pergunta quanto tempo mais mamã? A resposta ensombra-lhe o olhar, sentimento que hábil afasta rapidamente com uma miradela ao Pai na certeza que não o percebeu.
Ao meu lado, a rapariga belisca a perna do companheiro. Por detrás dos óculos escuros vi que me fitava. Tempo demais, achou ela. A senhora que não cabe no vestido às flores que não entendo porque adquiriu, come, à mão, um hambúrguer que escorre gordura enquanto mergulha num monte de maionese as batatas fritas que o acompanham. No estado sensitivo em que estou, não tarda mudo de mesa, penso.
De novo o empregado zeloso, o folhado à minha frente, levemente alourado e apetitoso. Tento concentrar-me na Virgínia que o merece. Ela e a descrição fabulosa que faz da cidade de Londres em pleno início de século vinte. Não consigo.

A música troca e agora canta Rod Stewart .. a balada não pode ser mais sentimental na sua característica voz rouca e marejam-se-me os olhos. Os óculos protectores cumprem a sua missão, enquanto que o folhado, envergonhado, vai parar ao fundo da mala.
Passa novo porta contentores. O símbolo da empresa brilha ao sol, gentes afadigam-se porão fora.
Ao longe a estátua de Cristo continua de braços abertos.
Imóvel.
Serena.
Já lá estava antes, confio que se manterá assim, depois.
 
Passa a Vida ..

Oxalá

 
Grita a voz em grito cavo um nome na escuridão.
Mexem-se as gentes no restolho encharcado, pés em botas de borracha que alagam no torrão há pouco seco.
Grita agora mais que uma.
Gritam de desespero.
Um foco de luz varre a escuridão em redor.
Atentam onde colocam os pés. Alaga fácil o terreno, perigosa a empreitada.
Alguém se lembra de ir buscar cavalos e mais lanternas. Voltam atrás meia dúzia de passos, em correria, ouve-se o arfar em peitos sem ar.
A noite está escura, a chuva cai a cântaros, limpam-se os olhos na tentativa de procurar. Ver.
Oiço ao fundo da noite o balido do gado. Preso no curral apercebe-se do barulho da azáfama pouco costumeira e nocturna. Reclama. Os cães ladram furiosamente, os homens tentam acalmá-los, mandam-nos calar.
Grita a voz em grito agora rouco de tanto gritar. E no barulho da chuva alucinada que cai do céu em jorro imenso de pranto incontido nada mais se ouve que o desassossego de quem procura quem se perdeu.
Oxalá me encontrem, penso, tolhida, presa sem coragem para espreitar.
Oxalá.
 
Oxalá