Reflexos de um palhaço

Data 06/09/2012 10:15:48 | Tópico: Textos -> Amor





Reflexos de um palhaço


Incrível como nós não damos importância para os pequenos detalhes da vida e vivendo num olhar próximo quase vendado conseguimos ver apenas o que está distante, tomados por essa quase cegueira nem percebemos quando as pessoas estão se aproximando ou se afastando de nós. Até mesmo nosso próprio reflexo passa a ser um estranho invisível e imperceptível.

Um palhacinho olhou num espelho e pensou:

Porque será que eu tenho esse reflexo de palhaço?

Essa cara pintada!

Essa boca grande!

Esse nariz vermelho!

Esse olhar inocente e curioso!

Essa roupa enfeitada e esse cabelo colorido!

Olhou e sorriu dizendo:

- Talvez eu seja o reflexo da alegria e da felicidade!

Olhou profundamente para o reflexo do espelho e falou:

- Vem brincar comigo!

O reflexo ficou confuso com aquela atitude estranha do palhaço o chamando para brincar. Como saber quando um palhaço esta falando sério ou apenas brincando? Logo respondeu:

- Vamos brincar do que?

- Brincar de adivinhar pensamentos.

- Eu só vou brincar, se você prometer que não vai brigar comigo.

- Eu prometo! Mas agora tente adivinhar no que eu estou pensando.

O reflexo saiu do espelho, olhou para o palhacinho como se estivesse olhando para si mesmo e logo eles começaram a brincar. Com a voz bem leve o reflexo falou:

- O pensamento é leve como o vento e com um pequeno sopro da imaginação é levado para longe, corre ligeiro como um raio e tem o dom de fazer os olhos brilharem como pequenas estrelinhas num céu de dúvidas. Você está pensando em brincar como qualquer criança, por isso que me chamou para brincar com você.

A precipitação do reflexo na resposta foi o condutor ideal para levá-lo ao erro. Mas como poderia o reflexo errar o pensamento do seu próprio personagem?

- Você errou! Vem comigo.

Se o reflexo prestasse ao menos um pouquinho de atenção naquele local, saberia que se tratava de um camarim, onde o real perde os sentidos e a arte dá suas primeiras pinceladas de transformação na criação.

O palhacinho atravessou uma cortina escura levando junto seu reflexo e entrou num palco rodeado de espelhos com uma grande plateia à sua espera.
O reflexo nunca tinha visto tanto espaço para brincar, assim imitava todas as ações do palhacinho que atuava olhando para ele e tentando diverti-lo.

Cada espelho possuía um formato totalmente diferente, dando um contorno totalmente diferenciado a cada reflexo, que parecia estar presente naquele palco causando um confronto inevitável de personalidades diferentes.
O palhacinho fazia caretas e cada espelho refletia a imagem à sua própria maneira. Aquela divergência extrema de figuras estranhas fazia com que o publico caísse em gargalhadas. Tantos gestos e uma variação enorme de brincadeiras se multiplicavam naturalmente sem uma pequena pausa.

Foi nesse momento que o verdadeiro reflexo do amigo se sentiu traído e resolveu se retirar do palco. Ficou nítida a reação do público vendo um reflexo deixar o espelho e partir em retirada. A cada espelho que o reflexo passava as imagens se misturavam, até atravessar novamente a cortina rumo ao camarim e voltar ao seu verdadeiro lugar de origem.

O palhacinho se espantou e foram tantas figuras de espanto que o público se assustou. A cena foi espontânea e rápida, pois o palhacinho também saiu correndo do palco, atravessou a cortina e as figuras dos espelhos perderam a vida, também perderam seus reflexos e aquelas personalidades diferentes pararam de existir.

Ele atravessou a cortina totalmente desequilibrado e feroz atrás do seu próprio reflexo. Cego em seu raciocínio e frente a frente ao espelho do camarim passou a discutir com seu próprio reflexo. Nenhuma resposta foi refletida pelo espelho, era como se ele estivesse discutindo sozinho e aquela solidão parecia um abraço fatal do abandono.

O palhacinho olhou para o teto do camarim, onde tinha um grande espelho sem imagem e perguntou:

- Você esta escondido aí?

- Sim! Mas não brigue comigo. Você prometeu!

- Então aparece que eu preciso ver você novamente.

O palhacinho se aproximou do grande espelho que havia no teto do camarim e novamente viu seu reflexo, mas agora muito mais atento aos detalhes, que valorizavam o formato do seu pequeno rosto pintado e logo perguntou:

- Por que você me abandonou no palco?

- É que naquele momento você parecia ser outra pessoa, seus gestos faziam com que seus reflexos fossem diferentes e isso me assustou.

- Eu estava apenas atuando no palco e para isso tenho que assumir a figura de outros personagens. O que você viu no palco foram apenas os reflexos da minha arte de atuar e o que você esta vendo agora é o reflexo da minha arte de viver, que não passa de apenas um garoto solitário e carente de um grande amigo por perto. De hoje em diante usarei apenas um espelho no palco, desta maneira atuaremos juntos em cada cena e em cada detalhe.

Nunca mais o palhacinho atuou sozinho, enquanto ele corre no palco, seu amigo corre no espelho. Será apenas seu reflexo atuando no espelho? Acho que não, pois como poderia ser o seu reflexo, se a cor de suas roupas são diferentes. Tem mistérios que acontecem no palco que só os segredos da arte são capazes de explicar.


Paulo Ribeiro de Alvarenga
Criador de vaga-lumes




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