BOA NOITE, CINDERELA

Data 23/09/2013 21:52:41 | Tópico: Contos -> Humor


A vida nos reserva surpresas que podem ser desagradáveis, mas que na maioria das vezes nos trazem também lições.

Quem conhece o Centro de Tradições Nordestinas no Rio de Janeiro, popularmente conhecido como feira de São Cristóvão já, que começou em 1960, onde havia uma pequena feira livre no campo do mesmo nome, e que também servia de local de desembarque para os imigrantes vindos dos estados do norte e nordeste, certamente sabe do que estou falando; e quem não conhece, fica aqui um convite para um dia visitá-lo. Vai se surpreender, pois ali se encontra de tudo.

Severino acabara de deixar o plantão no hospital, era sexta feira. Ele, apesar de cansado, resolvera dar uma passadinha rápida na feira.
Quem sabe talvez arrumasse companhia para aquela noite e pudesse terminá-la num motel bem acompanhado?

Entrou em seu automóvel ultimo modelo, comprado com muito sacrifício e trabalho, e depois de rodar alguns quilômetros, para chegar ao local e tantos outros para conseguir onde estacioná-lo, finalmente se viu sentado diante de uma mesa de uma das barracas, bem localizada, pois era próxima ao banheiro - e que, para quem gostava de uma cervejinha como ele, era o ideal.

Pediu uma “gelada, tomou alguns goles, colocou a chave do carro e o celular “MPtudo” sobre a mesa, e acompanhando o frenético ritmo balançava a perna, doido para encontrar uma parceira e também mostrar o bom forrozeiro que era desde menino, em sua pequena cidade da Paraíba.

Não demorou muito e surgiu-lhe à frente aquela morena, que para descrevê-la eu perderia muito tempo e talvez o interesse de vocês, leitores. Ela era “muita areia para o caminhão dele” como se diz no popular. Ele não era bonito. Era apenas comum, mas estava bem vestido e a chave do carro e o celular mostravam que ele tinha onde cair vivo sim, pois cair morto podemos fazê-lo em qualquer lugar. E talvez por isso ela o olhasse com aquele olhar de conquista, que o fez não titubear: Convidou-a imediatamente a dançar com um gesto discreto de cabeça, ao que ela sorriu, e aceitando dirigiu-se ao salão.

Ele guardou o celular e a chave do carro no bolso, deixou sobre a mesa o copo de cerveja pela metade bem como a garrafa, e sorrindo pegou-a pela cintura alegre e saíram os dois rodopiando e rebolando gostoso como exigia a música: “Vamos rebolar gostoso de rosto coladinho, e depois que acabe a dança fazer um bonequinho”.

Seu entusiasmo pela mulher era tanto que ele esqueceu o copo que deixara pela metade sobre a mesa, e nem reparou quando dois tipos, aproveitando o amontoado de pessoas que já cercava a barraca aproximaram-se, e um deles dando cobertura ao outro curvou-se sobre a mesa fingindo olhar para dentro da barraca, enquanto o outro derramava boa quantidade de um pó azul no resto de cerveja que ele deixara, e que certamente beberia ao terminar de dançar.

A música parou, os dois voltaram para a mesa, felizes sorrindo e já quase se beijando. Ele, porém, quando chegou à mesa, não tomou o restante da cerveja que estava no copo, julgando-a já não gelada. Atirou-o fora, pediu licença a “distinta jovem” e foi ao banheiro.

Quando urinava, a seu lado encostou um garoto, que a tudo assistira e baixinho e olhando para os lados, lhe disse:

- Puxa! O senhor deu a maior sorte! Aquela mulher é uma pilantra, eu a conheço daqui, bem como os dois caras que a acompanham e ficaram de longe quando ela se aproximou do senhor.

- O que garoto? Do que você está falando?

- Olha moço, enquanto o senhor dançava, os caras deixaram cair um pó de um papelzinho no seu copo, eles iam lhe dar o golpe “boa noite cinderela”, isso aqui tem sido muito comum. E sua sorte foi ter atirado fora o restante da cerveja.

- Tem certeza do que você está falando menino? – disse ele assustado e já odiando a bela morena com quem talvez até se casasse dado a seus modos educados, seu perfume e sua rara beleza. Pensou consigo:

... Piranha da gota serena! Bem que reparei que quando eu a rodava em direção à minha mesa ela oferecia certa resistência, certamente para que eu não visse a ação de seus amigos. O menino não tinha porque inventar tal história. Só podia ser verdade.

Agradeceu ao pequeno, trancou-se no reservado onde levou algum tempo.

- Voltou à mesa onde Luísa, a mulher, ansiosa o aguardava já com dois copos cheios, e o dele, certamente batizado.

Ele, alegando que a cerveja estava quente não aceitou. Sorrindo e beijando-a no rosto pediu outra e mais dois copos. Ela ficou meio desconcertada, mas lhe dera tanto mole, que estava difícil sair da situação e resolveu tomar a cerveja, batendo seu copo no copo dele, que o oferecia e bebera do seu. Depois daria uma desculpa e partiria para outra barraca com os comparsas em busca de outro desavisado.

De repente surgiu uma pequena confusão, o que é muito comum em um ambiente de bebida e dança. Ela afastou-se da mesa, ficando de costas para ele. Quando a confusão, quase briga terminou, ela, já sentada, depois de tomar a outra metade da cerveja, começou a sentir leve tontura, que aos poucos foi aumentando e: TIBUM!!!
Escorregou da cadeira e tombou de lado, desacordada no chão. Logo se formou a “rodinha do sufoco” em torno dela. Severino prontamente abaixou-se para ajudá-la, ao que foi interpelado por um dos seus comparsas que era seu irmão:

- Pode deixar meu amigo, nós vamos ajudá-la – abaixou-se, pegou-a no colo sem saber o que acontecera, pois ele não vira nada de anormal, e levou-a para o posto médico.

A bela morena, quatro noites depois, quando acordou, jamais saberia que aquele paraibano baixinho e com cara de pedreiro, embora bem vestido. Era o Dr. Severino Ramos, psiquiatra, que deixara o plantão do hospital, ocasionalmente com algumas amostras grátis de remédios para esquizofrenia (daqueles sossega leão brabos, que sabemos existem), no bolso e houvera aproveitado a oportunidade da briga para deixar cair em seu copo boa quantidade de pó dos comprimidos que ele picara e amassara no reservado, depois que o menino lhe contou o que assistira. Trouxera em uma das mãos quase fechadas, e depois ao vê-la ser carregada para o posto médico, dissera sorrindo baixinho para si mesmo:

- Boa noite, Cinderela. - Saíra tranquilamente, passara a mão na cabeça do garoto, e colocara uma nota de cinquenta no bolso de sua camisa.

Surpresa desagradável, mas revertida.





"Cautela e caldo de galinha
não fazem mal a ninguém",
mas é sempre bom conhecer
O galinheiro de onde ela vem.



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