Velório

Data 22/08/2009 15:30:16 | Tópico: Crónicas

Velório
by Betha Mendonça

Em torno das onze horas da manhã, calor de 38ºC, eu chego cansadíssima em casa e dou com meu marido agitado:

- Até que enfim a senhora chegou!Exclamou com as mãos na cintura como se fosse um açucareiro gigante.

- Hain? O que o SENHOR está fazendo em casa a essa hora? Retruquei.

- O Doutor Marcondes Cavalcante morreu!

- E? Continuei…

- Como “e”? Um membro do primeiro escalão do Tribunal de Justiça morre e me perguntas “e”?

- Ah, desculpa!Meus pêsames!Não sabia que vocês eram tão próximos!Falei com ar contrito.

- Pensa mulher!Eu só conhecia o homem de foto e das decisões importantes que ele tomava em função do cargo! Todo mundo foi intimado para ir ao velório. Só eu ainda estou aqui te esperando. Disparou andado de um lado para o outro da sala.

- Socorrrrrro! Fiquei loura!Não estou a entender nada!Me esperando? Indaguei.

- Vamos encurtar a conversa: pelo amor de Deus, troca de roupa que preciso que me acompanhes ao velório. Pronto!

- Aaaahhh… Calada, eu corri para quarto. Após rápida ducha, maquilagem e trajes discretos volto para sala:

- Agora fazemos uma boquinha e podemos ir!Disse satisfeita com minha agilidade.

- Não há tempo para boquinha!

- Mas… Mas… Estou com fome… Choraminguei.

- Larga de manha, mulher!Estamos atrasados e essa roupa toda branca?Deixa pra lá… Vamos e puxou-me porta a fora.

- Que tem a minha roupa branca? Perguntei com vontade de atiça polêmica.

- Podias ter vestido algo preto ou marrom… Sei lá!…

- Vou ao velório de um total desconhecido para mim e ainda tenho que ir de preto? Sabias que branca é a cor do luto na Índia? Além do mais vou voltar ao trabalho… Vestida de preto as criancinhas vão chorar com medo que eu seja um enorme corvo ou urubu.

- Eita mulher tagarela! Dá para ficar calada até chegarmos ao Tribunal? Preciso entrar no clima de comoção.

- Dá! Falei dando-me por vencedora.

O Tribunal Federal de Justiça estava lotado de autoridades civis, militares e eclesiásticas. Jornalistas e hordas de pessoas ligadas à justiça ou não transitavam no local.

O morto ilustre era velado no Salão Nobre. Caixão cercado por soldados com fardas bonitas e tantas coroas de flores que dava até para um alérgico cair duro com um choque anafilático!

Após dar condolências para parentes e aderentes ficamos com um grupo de colegas e cônjuges do meu marido. Um garçom servindo canapés aproximou-se. Esfomeada, estendi a mão para pegar um e meu marido sussurrou entre dentes:

- Nem pensar! Comer canapé em velório é “mico”!Imediato eu baixei a mão. Agradeci ao garçom com um sorriso amarelo e o estomago roncando de fome.

Enquanto o Arcebispo Metropolitano encomendava o corpo e puxava um terço, tudo começou a misturar-se dentro de mim: o cheiro da parafina das velas, das flores, a fumaça, os choros, as vozes, o vermelho do tapete… A fome… O roxo no esquife… A fome… O negro das vestes… A fome… O branco do véu sobre o defunto… A fome… A fome… E despertei no Setor Médico do Tribunal com um soro glicosado na veia! Meu querido marido apavorado de ter que enfrentar mais um velório... Isso é que foi “mico” num ambiente tão importante!



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