Álvares de Azevedo : Glória Moribunda
em 10/11/2012 14:16:21 (3446 leituras)
Álvares de Azevedo

(Une fille de joie attendait sur la borne.
THÉOPH. GAUTIER)



I

É uma visão medonha uma caveira?

Não tremas de pavor, ergue-a do lodo.

Foi a cabeça ardente de um poeta,

Outrora à sombra dos cabelos loiros,

Quando o reflexo do viver fogoso

Ali dentro animava o pensamento,

Esta fronte era bela. Aqui nas faces

Formosa palidez cobria o rosto...

Nessas órbitas—ocas, denegridas! —

Como era puro seu olhar sombrio!


Agora tudo é cinza. Resta apenas

A caveira que a alma em si guardava,

Como a concha no mar encerra a pérola,

Como a caçoula a mirra incandescente.


Tu outrora talvez desses lhe um beijo;

Por que repugnas levantá-la agora?

Olha-a comigo! Que espaçosa fronte!

Quanta vida ali dentro fermentava,

Como a seiva nos ramos do arvoredo!

E a sede em fogo das idéias vivas

Onde está? onde foi? Essa alma errante

Que um dia no viver passou cantando,

Como canta na treva um vagabundo,

Perdeu se acaso no sombrio vento,

Como noturna lâmpada, apagou-se?

E a centelha da vida, o eletrismo

Que as fibras tremulantes agitava

Morreu para animar futuras vidas?


Sorris? eu sou um louco. As utopias,

Os sonhos da ciência nada valem,

A vida é um escárnio sem sentido,

Comédia infame que ensanguenta o lodo.

Há talvez um segredo que ela esconde

Mas esse a morte o sabe e o não revela,

Os túmulos são mudos como o vácuo.


Desde a primeira dor sobre um cadáver,

Quando a primeira mãe entre soluços

Do filho morto os membros apertava

Ao ofegante seio, o peito humano

Caiu tremendo interrogando o túmulo

E a terra sepulcral não respondia.


Levanta-me do chão essa caveira!

Vou cantar-te uma página da vida

De uma alma que penou, e já descansa.




II

—Por quem esperas trêmula a desoras,

Mulher da noite, na deserta rua?

A miséria venceu os teus orgulhos,

E vens na treva contratar teu leito?

Vem pois. És bela. Tens no rosto frio

A imagem das Madonas descoradas.

Vagabunda de amor, és bela e pálida.

Será doce em teu seio de morena

Um momento sentir os meus suspiros

Estuantes nos lábios doloridos.

Se inda podes amar, ergue-te ainda,

Une teu peito ao meu, pálida sombra!—




III

Era uma fronte olímpica e sombria,

Nua ao vento da noite que agitava

As loiras ondas do cabelo solto;

Cabeça de poeta e libertino

Que fogo incerto de embriaguez corava.

Na fronte a palidez, no olhar aceso

O lume errante de uma febre insana.




IV

—Mancebo, quem és tu?


—Que importa o nome?

Um poeta de santas harmonias

Que a Musa obscena do bordel profana.

Na aparição balsâmica dos anjos

Porventura enlevei a mocidade.

Das virgens no cheiroso travesseiro

Porventura dormi... Meu Deus! que sonhos!

Em seios que a inocência adormecia

Repousei minha fronte embevecida.

Amei, mulher! amei!


Que sede intensa!

Secou-se-me a torrente do deserto

Que as folhas de frescura borrifava.

Tudo! tudo passou... Amei... Embora!

Quero agora dormir nos teus joelhos.

Nessa esponja da vida inda uma gota

Talvez reste a meus lábios anelantes

Que me dê um assomo de ventura

E um leito onde morrer amando ainda,


E que vida, mulher! que dor profunda,

Faminta como um verme aqui no peito!

Murcha desfaleceu a flor da vida

E cedo morrerá. . . E vós, meus anjos,

Ó Virgem Santa, que eu amei, na lira

A quem votei meu canto deliroso;

Amantes que eu sonhei, que eu amaria

Com todo o fogo juvenil que ainda

Me abrasa o coração, por que fugistes,

Brancas sombras, do céu das esperanças?


Oh! riamos da vida! tudo mente!

Os meus versos gotejam de ironias!

Esse mundo sem fé merece prantos?

À orgia! na saturnal entre a loucura

Derrama o vinho sono e esquecimento.


Vinde, belezas que a volúpia inflama!

Bebamos juntos... Cantarei de novo!

A minha alma nas asas do improviso,

Como as aves do céu, voe cantando. . .

Todos caíram ébrios?.. . só eu resto?

Embora! em minha mão a lira pulsa,

Meu peito bate, a inspiração agora

Cânticos imortais ao lábio inspira.

Voai ao céu—não morrereis, meus cantos!




V

A glória! a glória! meu amor foi ela,

Foi meu Deus, o meu sangue... até meu gênio. . .

E agora!... Além os sonhos dessa vida!

Quando eu morrer, meus versos incendeiem!


Apague-se meu nome—e ao cadáver

Nem lágrimas, nem cruz o mundo vote

Sou um ímpio (disseram-no!) pois deixem me

Descansar no sepulcro!


Por que choras,

Descorada mulher? Sabes acaso

Quem é o triste, o malfadado obscuro

Que delira e desvaira aqui na treva

E tuas mãos aperta convulsivo?

Eu não te posso amar. Meu peito morto

É como a rocha que o oceano bate

E branqueia de escuma—ali não pode

Medrar a flor cheirosa dos enlevos...

Teu amor... Eu descri até dos sonhos....

Demais dentro em tua alma eu vejo trevas,

Uma estrela de Deus não a ilumina.

Quem pudera nas ondas do passado,

Ditoso pescador, erguer no lodo

O ramo de coral de teus amores?




VI

Amei! amei! no sonho, nas vigílias

Esse nome gemi que eu adorava!

Votei amor a tudo quanto é belo!

Escuta A rua é queda. A noite escura

É negra como um túmulo. Durmamos

No leito dos amores do perdido.

Vês? nem lua no céu! tudo é medonho!

Nem estrela de luz . —Silêncio! Embora!

Escuta, anjo da noite! no meu peito

Não ouves palpitar o som da vida?

Deixa encostar meus lábios incendidos

No teu seio que bate. Vem, meu anjo!

A alma da formosura é sempre virgem!

Minha virgem—irmã—meu Deus! Contigo

Oh! deixa me viver! Eu sinto bela

A tua alma acordando refletir-se

Nesses olhos tão negros d'Espanhola.

Quero amar e viver—sonhar—em fogo

Meus frouxos dias exaurir num beijo,

Derramar a teus pés os meus amores,

Minhas santas canções a ti erguê-las,

A ti, e só a ti!—




VII

—Que tens? desmaias?

Que tens, mancebo?

—Nada. É cedo ainda.

Não é ela ainda não. Chamei por ela. . .

Foi em vão. . . delirei. . .

—Por quem?

—A morte.


—Morrer! pobre de ti, ó meu poeta!


—Se a morte é sofrimento, eu sofro tanto,

Que a mudança do mal será consolo;

Se a morte é sono, meu cansado corpo

No descanso eternal deixai que durma.


—Eu também sofro. . . mas a morte assusta.

Eu mísera mulher nas amarguras

Descorei e perdi a formosura.

No amor impuro profanei minha'alma. ..

E nesta vida não amei contudo!

Não sou a virgem melindrosa e casta

Que nos sonhos da infância os anjos beijam

E entre as rosas da noite adormecera

Tão pura como a noite e como as flores;

Mas na minha'alma dorme amor ainda.

Levanta me, poeta, dos abismos

Até ao puro sol do amor dos anjos!

Ó minha vida, minha vida pura,

Por que foram tão breves da inocência

Das crenças virginais os belos dias?

Chamei por Deus em vão. Sobre meu leito

Em vez do anjo do céu senti gelada

Sombra desconhecida vir sentar-se

Em beijos frios roxear meus lábios,


Em abraços de morte unir me ao seio.

Douda! chamei por Deus! a meu reclamo

Veio o torvo Satã... Oh! não maldigas

A mísera que os seios inocentes

Entregou sem pudor a mãos impuras:

Eram taças de Deus... eu bem sabia!

Mas todo o pesadelo do passado

Foi uma horrenda sina... tudo aquilo

Escrevera Satã




VIII

—Fatalidade!

É pois a voz unânime dos mundos.

Das longas gerações que se agonizam

Que sobe aos pés do Eterno como incenso?

Serás tu como os bonzos te fingiram?

Sublime Criador, por que enjeitaste

A pobre criação? Por que a fizeste

Da argila mais impura e negro lodo,

E a lançaste nas trevas errabunda

Co'a palidez na fronte como anátema,

Qual lança a borboleta a asas d'oiro

No pântano e no sangue?


Tudo é sina:

O crime é um destino—o gênio, a glória

São palavras mentidas—a virtude

É a máscara vil que o vício cobre.

O egoísmo! eis a voz da humanidade.

Foste sublime, Criador dos mundos!




IX

Tudo morre, meu Deus! No mundo exausto

Bastardas gerações vagam descridas.

E a arte se vendeu, essa arte santa

Que orava de joelhos e vertia

O seu raio de luz e amor no povo,

E o gênio soluçando e moribundo

Olvidou-se da vida e do futuro

E blasfema lutando na agonia.

Agonia de morte! Só em torno

No leito do morrer as almas gemem.

E o fantasma da morte gela tudo.

Por que um ardente amor não mais suspira

Notas do coração pelo silêncio

Da noite enamorada? A chama pura

Por que das almas se apagou nas cinzas

E a lira do poeta. se murmura

As ilusões de um mundo visionário,

Por que estala tão cedo? Vagabundo

Adormeci das árvores na sombra

E nos campos em flor errei sonhando,

Coroando me dos lírios da alvorada.

Arvore prateada da esperança.

Sombra das ilusões, ó vida bela

E sempre bela, e no morrer ainda,

Por que pousei a fronte sobre a relva

A sombra vossa, delirante um dia?


Oh! que morro também! na noite d'alma

Sinto-o no peito que um ardor consome,

No meu gênio que apaga nas orgias,

Que foge o mundo, e o sepulcro teme . .

Exilei-me dos homens blasfemando,

Concentrei-me no fundo desespero,

E exausto de esperança e zombarias

Como um corpo no túmulo lancei-me,

Suicida da fé, no vício impuro.




X

E o mundo? não me entende. Para as turbas

Eu sou um doudo que se aponta ao dedo.

A glória é essa. P'ra viver um dia

Troquei o manto de cantor divino

Pelas roupas do insano.—Os sons profundos

Ninguém os aplaudia sobre a terra.

Para um pouco de pão ganhar da turba,

Como teu corpo no bordel profanas.

—Fiz mais ainda! prostituí meu gênio.

Oh! ditoso Filinto! ele sim pôde

Na miséria guardar seu gênio puro!

Nunca infame beijou a mão dos grandes!

Morreu como Camões, morreu sem nódoa!

Mas eu! A voz do vício arrebatou-me,

Fascinou-me da infâmia o revérbero .

Maldições sobre mim! Abre-te, ó campa!

Ali obscuro dormirei na treva;




XI

Ó santa inspiração! fada noturna,

Por que a fronte não beijas do poeta?

Por que não lhe descansas nos cabelos

A coroa dos sonhos, e rebentam-lhe

Entre as lívidas mãos uma por uma

As cordas do alaúde no vibrá-las?

Ó santa inspiração! por que nas sombras

Não escuta o poeta à meia noite

Os sons perdidos da harmonia santa

Que o pobre coração de amor lhe enchiam?


Eu fui à noite da taverna à mesa

Bater meu copo à taça do bandido.

Na louca saturnal beber com ele,

Ouvir-lhe os cantos da sangrenta vida

E as lendas de punhal e morticínio.

De vinho e febre pálido, deitei-me

Sobre o leito venal de uma perdida. . .

Comprimi-a no meu exausto peito.

Falei -he em meu amor, contei-lhe sonhos,

Do meu passado a dor, as glórias murchas

E os longos beijos da primeira amante...


Amor! amor! meu sonho de mancebo!

Minha sede! meu canto de saudade!

Amor! Meu coração, lábios e vida

A ti, sol do viver, erguem-se ainda,

E a ti, sol do viver, erguem-se embalde!


Ouvi, ouvi no leito da miséria

A pálida mulher junto a meu peito

Contar-me seus amores que passaram,

Falar-me de purezas, d'esperanças....

E soluçava a triste, e ardentes longas,

As lágrimas em fio deslizando

Eu vi caindo sobre o seio dela. . .


Oh! suas emoções, úmidos beijos,

Dos seios o tremor, aqueles prantos,

E os ofegantes ais eram mentira! .




XII

Ah! vem, alma sombria que pranteias.

Por quem choras? Por mim?

Em vez de prantos

Deixa-me suspirar a teus joelhos.

Tu sim és pura. Os anjos da inocência

Poderiam amar sobre teu seio.

Aperta minha mão! Senta-te um pouco

Bem unida a minha alma em meus joelhos,

Assim parece que um abraço aperta

Nossas almas que sofrem. Revivamos!

O passado é um sonho—o mundo é largo,

Fugiremos à pátria. Iremos longe

Habitar num deserto. No meu peito

Eu tenho amores para encher de encantos

Uma alma de mulher. Por que sorriste?

Sou um louco. Maldita a folha negra

Em que Deus escreveu a minha sina .

Maldita minha mãe, que entre os joelhos

Não soubeste apertar, quando eu nascia,

O meu corpo infantil! Maldita!




XIII

Escuta:

Sinto uma voz no peito que suspira.

É a alma do poeta que desperta

E canta como as aves acordando

Oh! cantemos! até que a morte fria


Gele nos lábios meus o último canto!

Um cântico de amor, ó minha lira!

Anália! Armia! aparições formosas!

Eu amei sobre a terra as vossas sombras,

O ideal que vos anima e eu buscava,

Vive apenas no céu! vou entre os anjos,

Entre os braços da morte amar com eles!—



XIV

O poeta a tremer caiu no lodo.

A perdida tomou-lhe a fronte branca,

Pô-la ao colo—era lívida—inda o fogo

Lá dentro vacilava agonizando,

Como flutua a claridão da lâmpada

Apagando-se ao vento.


E quando a aurora

Nos céus de nácar acordava o dia,

E nas nuvens azuis o sol purpúreo

Se embalava no eflúvio de ventura

Das flores que se abriam, dos perfumes,

Da brisa morna que tremia as folhas,

Macilenta a mulher no chão da rua

Sentada, a fronte curva sobre os seios

Embalava cantando aquele morto.


Na manta o encobriu. Medrosa a furto

A infeliz o beijou—o pobre amante

Que uma só noite pernoitou com ela

Para aos pés lhe morrer—e sem ao menos

Nas faces dela estremecer um beijo.

Alguém que ali passou, vendo-a tão pálida

Sentada sobre a laje, e tão ardente,

Chegou ao pé—ergueu ao malfadado

A manta.


Como súbito acordando

Disse a moça a tremer:


—Deixa-o agora.

Ele penou de febre toda a noite,

Deitou-se descansando sobre o leito...

Oh! deixa-o dormir.


—Mulher no peito

Sabes quem te dormiu?

—"Que importa o nome?"

Assim falava-me…


—Ai de ti, misérrima!

Um poeta morreu. Fronte divina,

Alma cheia de sol, fronte sublime

Que de um anjo devera no regaço

Amorosa viver. . . Morreu Bocage!


Imprimir este poema Enviar este poema a um amigo Salvar este poema como PDF
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.

Links patrocinados

Visite também...