Esta vida que levamos muito complicada de explicar resume se a viver e saber pensar!!!! Temos varias pripecias aventuras,amores,desilusoes,loucuras e paixoes mas sabendo que a cada passo podemos mudar o rumo de tudo e sabendo que nesta vida o amor nao e tudo mas tal e qual como o dinheiro ajuda a ser feliz. A vida e feita apenas para viver de maneira a que conjugando tudo se possa realmente ser feliz e dando valor ao que valor tem nao e so logica e ser feliz tambem!!!!! Por isso vivo vivendo sem querer correndo mas vivendo o dia a dia tudo e bem mais facil e querendo muito lutando sobrevivendo um dia serei feliz com alguem que me compreenda e a cima de tudo de valor ao quer valor tem nao o dinheiro mas o amar alguem!!!!!
Santa Maria! Volve o teu olhar tão belo, de lá dos altos céus, do teu trono sagrado, para a prece fervente e para o amor singelo que te oferta, da terra, o filho do pecado.
Se é manhã, meio-dia, ou sombrio poente, meu hino em teu louvor tens ouvido, Maria! Sê, pois, comigo, ó Mãe de Deus, eternamente, quer no bem ou no mal, na dor ou na alegria!
No tempo que passou veloz, brilhante, quando nunca nuvem qualquer meu céu escureceu, temeste que me fosse a inconstância empolgando e guiaste minha alma a ti, para o que é teu.
Hoje, que o temporal do Destino ao Passado e sobre o meu Presente espessas sombras lança, fulgure ao menos meu Futuro, iluminado por ti, pelo que é teu, na mais doce esperança.
Dantes, silente vale sorria. Era um vale onde ninguém vivia. Haviam todos partido em guerra, deixando os doces olhos de estrelas noturnamente velarem pelas flores formosas daquela terra, em cujos braços, dia após dia, a luz vermelha do sol dormia. Não há viajante que, hoje, não fale sobre a inquietude do triste vale. Lá, agora, tudo é só movimento, exceto os ares, pesando, adustos, nas soledades de encantamento. Ah! nenhum vento move os arbustos que vibram como as ondas geladas em torno às Hébridas enevoadas! Ah! nenhum vento essas nuvens guia, murmurejantes, nos céus insanos, e que se arrastam, por todo o dia, sobre violetas, que alguém diria serem milhares de olhos humanos, e sobre lírios, de haste pendida, chorando em tumba desconhecida, tremendo; e sempre caem, com o perfume, gotas de orvalho do flóreo cume, chorando; e desce, nas hastes frias, um pranto eterno de pedrarias.
Cheio de espuma e âmbar misturados Esvaziarei este copo novamente Visões as mais hilariantes embarafustam Pela alcova de meu cérebro Pensamentos os mais curiosos fantasias as mais extravagantes Ganham vida e se dissipam; O que me importa o passar das horas? Hoje estou tomando cerveja.
A Flor do Sonho, alvíssima, divina, Miraculosamente abriu em mim, Como se uma magnólia de cetim Fosse florir num muro todo em ruína.
Pende em meu seio a haste branda e fina E não posso entender como é que, enfim, Essa tão rara flor abriu assim! ... Milagre... fantasia... ou, talvez, sina...
Ó flor que em mim nasceste sem abrolhos, Que tem que sejam tristes os meus olhos Se eles são tristes pelo amor de ti?!...
Desde que em mim nasceste em noite calma, Voou ao longe a asa da minh'alma E nunca, nunca mais eu me entendi...
Como pálpebras roxas que tombassem Sobre uns olhos cansados, carinhosas, A noite desce... Ah! doces mãos piedosas Que os meus olhos tristíssimos fechassem!
Assim mãos de bondade me embalassem! Assim me adormecessem, caridosas, E em braçadas de lírios e mimosas, No crepúsculo que desce me enterrassem!
A noite em sombra e fumo se desfaz... Perfume de baunilha ou de lilás, A noite põe-me embriagada, louca!
E a noite vai descendo, muda e calma... Meu doce Amor, tu beijas a minh'alma Beijando nesta hora a minha boca!
Teci durante a noite a teia astuciosa Dum poema. Armei o laço ao sol que há-de nascer. Rede frágil de versos, É nela que o meu sono se futura Eterno e natural, Embalado na própria sepultura. Vens ou não vens agora, astro real, Doirar os fios desta baba impura?
Olhai! a Morte edificou seu trono numa estranha cidade solitária por entre as sombras do longínquo oeste. Lá, os bons, os maus, os piores e os melhores, foram todos buscar repouso eterno. Seus monumentos, catedrais e torres (torres que o tempo rói e não vacilam!) em nada se parecem com os humanos. E em volta, pelos ventos olvidadas, olhando o firmamento, silenciosas e calmas, dormem águas melancólicas.
Ah! luz nenhuma cai do céu sagrado sobre a cidade, em sua imensa noite. Mas um clarão que vem do oceano lívido invade dos torreões, silentemente, e sobe, iluminando capitéis, pórticos régios, cúpulas e cimos, templos e babilônicas muralhas; sobe aos arcos templos magníficos, sem conta, onde os frios se enroscam e entretecem de vinhedos, violetas, sempre-vivas.
Olhando o firmamento, silenciosas, calmas, dormem as águias melancólicas. Torreões e sombras tanto se confundem que é tudo como solto nos espaços. E a Morte, do alto de soberba torre, contempla, gigantesca, o panorama. Lá, os sepulcros e os templos se escancaram mesmo ao nível das águas luminosas; mas não pode a riqueza portenhosa dos ídolos com olhos de diamante, nem das jóias que riem sobre os mortos, tirar as vagas de seu leito imóvel; pois, ai! nem leve movimento ondula esse imenso deserto cristalino! Nem ondas falam de possíveis ventos sobre mares distantes, mais felizes; ondas nào contam que existiram ventos em mar de menos espantosa calma.
Mas, vede! Um frêmito percorre os ares. Uma onda... Fez-se ali um movimento! e dir-se-ia que as torres vacilaram e afundaram de leve na água turva, abrindo com seus cumes, debilmente, um vazio nos céus enevoados. As ondas têm, agora, luz mais rubra, as horas fluem, lânguidas e fracas. E quando, entre gemidos sobre-humanos, a cidade submersa for fixar-se no fundo, o Inferno, erguido de mil tronos, curvar-se-á, reverente.
Dia da vida Noite da morte... O verso E o reverso Da medalha. E não há desespero que nos valha, Nem crença, Nem descrença, Nem filosofia. Esta brutalidade, e nada mais: Sol e sombra - o binómio dos mortais.
Só que o sol vem primeiro, E a sombra depois... E à luz do sol é tudo o que sabemos: Juventude, Beleza, Poesia, E amor - Amargo fruto que na sepultura, Em vez de apodrecer, ganha doçura.
Tenho sofrido poesia como quem anda no mar. Um enjoo. Uma agonia. Sabor a sal. Maresia. Vidro côncavo a boiar.
Dói esta corda vibrante. A corda que o barco prende à fria argola do cais. Se vem onda que a levante vem logo outra que a distende. Não tem descanso jamais.
Eu te peço perdão por te amar de repente Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos Das horas que passei à sombra dos teus gestos Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos Das noites que vivi acalentado Pela graça indizível dos teus passos eternamente fugindo Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente. E posso te dizer que o grande afeto que te deixo Não traz o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas Nem as misteriosas palavras dos véus da alma... É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias E só te pede que te repouses quieta, muito quieta E deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem fatalidade o olhar extático da aurora.
Eu queria trazer-te uns versos muito lindos colhidos no mais íntimo de mim... Suas palavras seriam as mais simples do mundo, porém não sei que luz as iluminaria que terias de fechar teus olhos para as ouvir... Sim! Uma luz que viria de dentro delas, como essa que acende inesperadas cores nas lanternas chinesas de papel! Trago-te palavras, apenas... e que estão escritas do lado de fora do papel... Não sei, eu nunca soube o que dizer-te e este poema vai morrendo, ardente e puro, ao vento da Poesia... como uma pobre lanterna que incendiou!
Escritor português, natural de Vila do Conde, onde viveu até completar o quinto ano do liceu, após o que continuou a estudar no Porto. José Régio, pseudónimo de José Maria dos Reis Pereira, publicou, em Vila do Conde, nos jornais O Democrático e República, os seus primeiros versos. Aos 18 anos, foi para Coimbra, onde se licenciou em Filologia Românica (1925), com a tese «As Correntes e As Individualidades na Moderna Poesia Portuguesa». Esta foi pouco apreciada, sobretudo pela valorização que nela fazia de dois poetas então quase desconhecidos, Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa. Esta tese, refundida, veio a ser publicada com o título Pequena História da Moderna Poesia Portuguesa (1941). Com Branquinho da Fonseca e João Gaspar Simões fundou, em 1927, a revista Presença (cujo primeiro número saiu a 10 de Março, vindo a publicar-se, embora sem regularidade, durante treze anos), que marcou o segundo modernismo português e de que Régio foi o principal impulsionador e ideólogo. Para além da sua colaboração assídua nesta revista, deixou também textos dispersos por publicações como a Seara Nova, Ler, O Comércio do Porto e o Diário de Notícias. No mesmo ano iniciou a sua vida profissional como professor de liceu, primeiro no Porto (apenas alguns meses) e, a partir de 1928, em Portalegre, onde permaneceu mais de trinta anos. Só em 1967 regressou a Vila do Conde, onde morreu dois anos mais tarde. Participou activamente na vida pública, fazendo parte da comissão concelhia de Vila do Conde do Movimento de Unidade Democrática (MUD), apoiando o general Nórton de Matos na sua candidatura à Presidência da República e, mais tarde, a candidatura do general Humberto Delgado. Integrou ainda a Comissão Eleitoral de Unidade Democrática (CEUD), nas eleições de 1969. Como escritor, José Régio dedicou-se ao romance, ao teatro, à poesia e ao ensaio. Centrais, na sua obra, são as problemáticas do conflito entre Deus e o Homem, o indivíduo e a sociedade, numa análise crítica das relações humanas e da solidão, do dilaceramento interior perante a relação entre o espírito e a carne e a ânsia humana do absoluto. Levando a cabo uma auto-análise e uma introspecção constantes, a sua obra é fortemente marcada pelo tom psicologista e, simultaneamente, por um misticismo inquieto que se revela em motivos como o angelismo ou a redenção no sofrimento. A sua poesia, de grande tensão lírica e dramática, apresenta-se frequentemente como uma espécie de diálogo entre níveis diferentes da consciência. A mesma intensidade psicológica, aliada a um sentido de crítica social, tem lugar na ficção. Como ensaísta, dedicou-se ao estudo de autores como Camões, Raul Brandão e Florbela Espanca. Na revista Presença, assinou um editorial («Literatura Viva») que constituiu uma espécie de manifesto dos autores ligados a este órgão do segundo modernismo português, defendendo a necessidade de uma arte viva, e não livresca, que reflectisse a profundidade e a originalidade virgens dos seus autores.
Estreou-se, em 1926, com o volume de poesia Poemas de Deus e do Diabo, a que se seguiram Biografia (1929, poesia), Jogo da Cabra-Cega (1934, primeiro romance), As Encruzilhadas de Deus (1936, livro de poesia e tido como a sua obra-prima), Primeiro Volume de Teatro: Jacob e o Anjo e Três Máscaras (1940), Davam Grandes Passeios aos Domingos (novela publicada em 1941 e incluída, em 1946, em Histórias de Mulheres), Fado (1941, livro de poesia com desenhos do irmão Júlio, principal ilustrador da sua obra), O Príncipe Com Orelhas de Burro (1942, romance), A Velha Casa (obra inacabada, mas de que chegaram a sair os volumes Uma Gota de Sangue, em 1945, As Raízes do Futuro, em 1947, Os Avisos do Destino, em 1953, As Monstruosidades Vulgares, em 1960, e As Vidas São Vidas, em 1966), Mas Deus É Grande, (1945, poesia), Benilde ou a Virgem-Mãe (1947, peça de teatro adaptada ao cinema, em 1974, por Manuel de Oliveira), El-Rei Sebastião (1949, «poema espectacular em 3 actos»), A Salvação do Mundo (1954, tragicomédia em três actos), A Chaga do Lado (1954, sátiras e epigramas), Três Peças em Um Acto: Três Máscaras, O Meu Caso e Mário ou Eu Próprio-O Outro (1957), O Filho do Homem (1961), Há Mais Mundos (1962, livro de contos, pelo qual recebeu o Grande Prémio de Novelística da Sociedade Portuguesa de Escritores), Cântico Suspenso (1968, poesia) e, a título póstumo, Música Ligeira (1970, poesia), Colheita da Tarde (1971, poesia) e Confissão Dum Homem Religioso (1971, obra de reflexão). Na sua obra ensaística, destacam-se ainda os Três Ensaios Sobre Arte (1967), que reúnem textos publicados anteriormente, e Páginas de Doutrina e Crítica da Presença, recolha feita por Alberto Serpa, relativamente à colaboração de Régio na Presença (1977). Partilhou ainda, com o irmão Júlio, o gosto pelas artes plásticas, tendo chegado a desenhar uma capa para a Presença e feito os oito desenhos que, a partir da 5ª edição, ilustram os Poemas de Deus e do Diabo. É considerado, por alguns, como um dos vultos mais significativos da moderna literatura portuguesa. Recebeu, em 1961, o prémio Diário de Notícias e, postumamente, em 1970, o Prémio Nacional de Poesia, pelo conjunto da sua obra poética. As suas casas de Vila do Conde e de Portalegre são hoje museus.
Não sei se isto é amor. Procuro o teu olhar, Se alguma dor me fere, em busca de um abrigo; E apesar disso, crê! nunca pensei num lar Onde fosses feliz, e eu feliz contigo.
Por ti nunca chorei nenhum ideal desfeito. E nunca te escrevi nenhuns versos românticos. Nem depois de acordar te procurei no leito Como a esposa sensual do Cântico dos Cânticos.
Se é amar-te não sei. Não sei se te idealizo A tua cor sadia, o teu sorriso terno... Mas sinto-me sorrir de ver esse sorriso Que me penetra bem, como este sol de Inverno.
Passo contigo a tarde e sempre sem receio Da luz crepuscular, que enerva, que provoca. Eu não demoro o olhar na curva do teu seio Nem me lembrei jamais de te beijar na boca.
Eu não sei se é amor. Será talvez começo... Eu não sei que mudança a minha alma pressente... Amor não sei se o é, mas sei que te estremeço, Que adoecia talvez de te saber doente.
Camilo de Almeida Pessanha nasceu no dia 7 de setembro de 1867 na cidade de Coimbra em Portugal. Após formar-se em Direito foi para Macau, na China, onde exerceu a função de Professor. Acometido de Tuberculose e, segundo alguns estudiosos, viciado em ópio, o que contribuía para o agravamento da doença, retornou várias vezes para a Portugal para tratar da sua saúde.
Essas viagens de pouco valeram, uma vez que o poeta faleceu em 1º de março de 1926 em Macau. Camilo Pesanha que é, sem sombra de dúvidas, o maior e mais autêntico poeta Simbolista português foi fortemente influenciado pela poesia de do poeta frances Verlaine.
Sua poesia, que influenciou vários poetas modernistas, como por exemplo Fernando Pessoa, mostra o mundo sob a ótica da ilusão, da dor e do pessimismo. O exílio do mundo e a desilusão em relação à Pátria também estão presentes em sua obra e passam a impressão de desintegração do seu ser. A sua obra mais famosa é " Clepsidra", relógio de água, que contém poemas com musicalidade marcante e temas até certo ponto dramáticos.
Tenho mais que fazer que reler-me. Reler-me custa. É pensar prisioneiro. Nenhuma, cadeia nenhuma serve ao pensamento livre E a cadeia que em nós pomos na cabeça é a pior, é a pior de todas. Já alguém alguma vez viu no ar um pássaro voando com as suas próprias asas? não, isso é engano. O pássaro que voa, voa ajudado pelo vento. E faz de conta que asas não tem. O ar o ajuda? Talvez… o ar o ajuda… Se o pássaro, porém, quiser voar duas vezes: não voa, não voa!, com as dele mesmo asas. Dele é e não é o voo que lhe pertence. E irrepetível é o ar que o move. Dentro de si circula.
Raul Maria de Carvalho nasceu em Alvito, Baixo Alentejo, a 4 de Setembro de 1920. As memórias da infância passadas nesse local manifestam-se em todos os seus livros de cunho autobiográfico. Chegou a Lisboa na década de 40 e tornou-se frequentador do café Martinho da Arcada, contactando com personalidades do meio literário.
Preocupado com a condição dos mais desfavorecidos, assumiu algumas afinidades com os neo-realistas. Conjugou esta preocupação com a aprendizagem de uma liberdade surrealista. Foi colaborador das revistas Távola Redonda, Cadernos de Poesia e Árvore, de que foi co-director (1951-1953).
Em 1956 foi premiado com o «Prémio Simon Bolívar», no Concurso Internacional de Poetas de Siena, em Itália.
Morreu a 3 de Setembro de 1984, no Hospital de São João, no Porto.
A injustiça avança hoje a passo firme Os tiranos fazem planos para dez mil anos O poder apregoa: as coisas continuarão a ser como são Nenhuma voz além da dos que mandam E em todos os mercados proclama a exploração; isto é apenas o meu começo
Mas entre os oprimidos muitos há que agora dizem Aquilo que nòs queremos nunca mais o alcançaremos
Quem ainda está vivo não diga: nunca O que é seguro não é seguro As coisas não continuarão a ser como são Depois de falarem os dominantes Falarão os dominados Quem pois ousa dizer: nunca De quem depende que a opressão prossiga? De nòs De quem depende que ela acabe? Também de nòs O que é esmagado que se levante! O que está perdido, lute! O que sabe ao que se chegou, que há aì que o retenha E nunca será: ainda hoje Porque os vencidos de hoje são os vencedores de amanhã
Não sei se respondo ou se pergunto. Sou uma voz que nasceu na penumbra do vazio.
Estou um pouco ébria e estou crescendo numa pedra. Não tenho a sabedoria do mel ou a do vinho. De súbito, ergo-me como uma torre de sombra fulgurante. A minha tristeza é a da sede e a da chama. Com esta pequena centelha quero incendiar o silêncio. O que eu amo não sei. Amo. Amo em total abandono. Sinto a minha boca dentro das árvores e de uma oculta nascente. Indecisa e ardente, algo ainda não é flor em mim. Não estou perdida, estou entre o vento e o olvido. Quero conhecer a minha nudez e ser o azul da presença. Não sou a destruição cega nem a esperança impossível. Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra.
Eu pronuncio teu nome nas noites escuras, quando vêm os astros beber na lua e dormem nas ramagens das frondes ocultas. E eu me sinto oco de paixão e de música. Louco relógio que canta mortas horas antigas.
Eu pronuncio teu nome, nesta noite escura, e teu nome me soa mais distante que nunca. Mais distante que todas as estrelas e mais dolente que a mansa chuva.
Amar-te-ei como então alguma vez? Que culpa tem meu coração? Se a névoa se esfuma, que outra paixão me espera? Será tranqüila e pura? Se meus dedos pudessem desfolhar a lua!!
mais do que um sonho: comoção! sinto-me tonto, enternecido, quando, de noite, as minhas mãos são o teu único vestido.
e recompões com essa veste, que eu, sem saber, tinha tecido, todo o pudor que desfizeste como uma teia sem sentido; todo o pudor que desfizeste a meu pedido.
mas nesse manto que desfias, e que depois voltas a pôr, eu reconheço os melhores dias do nosso amor.
Deito fora as imagens, Sem ti para que me servem as imagens?
Preciso habituar-me a substituir-te pelo vento, que está em toda a parte e cuja direcção é igualmente passageira e verídica.
Preciso habituar-me ao eco dos teus passos numa casa deserta, ao trémulo vigor de todos os teus gestos invisíveis, à canção que tu cantas e que mais ninguém ouve a não ser eu.
Serei feliz sem as imagens. As imagens não dão felicidade a ninguém.
Era mais difícil perder-te, e, no entanto, perdi-te.
Era mais difícil inventar-te, e eu te inventei.
Posso passar sem as imagens assim como posso passar sem ti.
E hei-de ser feliz ainda que isso não seja ser feliz.
Compreende-se que lá para o ano três mil e tal ninguém se lembre de certo Fernão barbudo que plantava couves em Oliveira do Hospital,
ou da minha virtuosa tia-avó Maria das Dores que tirou um retrato toda vestida de veludo sentada num canapé junto de um vaso com flores.
Compreende-se.
E até mesmo que já ninguém se lembre que houve três impérios no Egipto (o Alto Império, o Médio Império e o Baixo Império) com muitos faraós, todos a caminharem de lado e a fazerem tudo de perfil, e o Estrabão, o Artaxerpes, e o Xenofonte, e o Heraclito, e o desfiladeiro das Termópilas, e a mulher do Péricles, e a retirada dos dez mil, e os reis de barbas encaracoladas que eram senhores de muitas terras, que conquistavam o Lácio e perdiam o Épiro, e conquistavam o Épiro e perdiam o Lácio,
e passavam a vida inteira a fazer guerras, e quando batiam com o pé no chão faziam tremer todo o palácio, e o resto tudo por aí fora, e a Guerra dos Cem Anos, e a Invencível Armada, e as campanhas de Napoleão, e a bomba de hidrogénio, e os poemas de António Gedeão.
Compreende-se.
Mais império menos império, mais faraó menos faraó, será tudo um vastíssimo cemitério, cacos, cinzas e pó.
Como acordar sem sofrimento? Recomeçar sem horror? O sono transportou-me àquele reino onde não existe vida e eu quedo inerte sem paixão.
Como repetir, dia seguinte após dia seguinte, a fábula inconclusa, suportar a semelhança das coisas ásperas de amanhã com as coisas ásperas de hoje?
Como proteger-me das feridas que rasga em mim o acontecimento, qualquer acontecimento que lembra a Terra e sua púrpura demente? E mais aquela ferida que me inflijo a cada hora, algoz do inocente que não sou?
Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios Que largam do cais arrastando nas águas por sombra Os vultos ao sol daquelas árvores antigas... O porto que sonho é sombrio e pálido E esta paisagem é cheia de sol deste lado... Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol... Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo... O vulto do cais é a estrada nítida e calma Que se levanta e se ergue como um muro, E os navios passam por dentro dos troncos das árvores Com uma horizontalidade vertical, E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma dentro... Não sei quem me sonho... Súbito toda a água do mar do porto é transparente e vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse desdobrada, Esta paisagem toda, renque de árvore, estrada a arder em aquele porto, E a sombra duma nau mais antiga que o porto que passa Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagem E chega ao pé de mim, e entra por mim dentro, E passa para o outro lado da minha alma...
II
Ilumina-se a igreja por dentro da chuva deste dia, E cada vela que se acende é mais chuva a bater na vidraça... Alegra-me ouvir a chuva porque ela é o templo estar aceso, E as vidraças da igreja vistas de fora são o som da chuva ouvido por dentro... O esplendor do altar-mor é o eu não poder quase ver os montes Através da chuva que é ouro tão solene na toalha do altar... Soa o canto do coro, latino e vento a sacudir-me a vidraça E sente-se chiar a água no fato de haver coro... A missa é um automóvel que passa Através dos fiéis que se ajoelham em hoje ser um dia triste... Súbito vento sacode em esplendor maior A festa da catedral e o ruído da chuva absorve tudo Até só se ouvir a voz do padre água perder-se ao longe Com o som de rodas de automóvel... E apagam-se as luzes da igreja Na chuva que cessa...
III
A Grande Esfinge do Egito sonha pôr este papel dentro... Escrevo - e ela aparece-me através da minha mão transparente E ao canto do papel erguem-se as pirâmides... Escrevo - perturbo-me de ver o bico da minha pena Ser o perfil do rei Quéops... De repente paro... Escureceu tudo... Caio por um abismo feito de tempo... Estou soterrado sob as pirâmides a escrever versos à luz clara deste candeeiro E todo o Egito me esmaga de alto através dos traços que faço com a pena... Ouço a Esfinge rir por dentro O som da minha pena a correr no papel... Atravessa o eu não poder vê-la uma mão enorme, Varre tudo para o canto do teto que fica por detrás de mim, E sobre o papel onde escrevo, entre ele e a pena que escreve Jaz o cadáver do rei Queóps, olhando-me com olhos muito abertos, E entre os nossos olhares que se cruzam corre o Nilo E uma alegria de barcos embandeirados erra Numa diagonal difusa Entre mim e o que eu penso... Funerais do rei Queóps em ouro velho e Mim!...
IV
Que pandeiretas o silêncio deste quarto!... As paredes estão na Andaluzia... Há danças sensuais no brilho fixo da luz... De repente todo o espaço pára..., Pára, escorrega, desembrulha-se..., E num canto do teto, muito mais longe do que ele está, Abrem mãos brancas janelas secretas E há ramos de violetas caindo De haver uma noite de Primavera lá fora Sobre o eu estar de olhos fechados...
V
Lá fora vai um redemoinho de sol os cavalos do carroussel... Árvores, pedras, montes, bailam parados dentro de mim... Noite absoluta na feira iluminada, luar no dia de sol lá fora, E as luzes todas da feira fazem ruídos dos muros do quintal... Ranchos de raparigas de bilha à cabeça Que passam lá fora, cheias de estar sob o sol, Cruzam-se com grandes grupos peganhentos de gente que anda na feira, Gente toda misturada com as luzes das barracas, com a noite e com o luar, E os dois grupos encontram-se e penetram-se Até formarem só um que é os dois... A feira e as luzes das feiras e a gente que anda na feira, E a noite que pega na feira e a levanta no ar, Andam por cima das copas das árvores cheias de sol, Andam visivelmente por baixo dos penedos que luzem ao sol, Aparecem do outro lado das bilhas que as raparigas levam à cabeça, E toda esta paisagem de primavera é a lua sobre a feira, E toda a feira com ruídos e luzes é o chão deste dia de sol... De repente alguém sacode esta hora dupla como numa peneira E, misturado, o pó das duas realidades cai Sobre as minhas mãos cheias de desenhos de portos Com grandes naus que se vão e não pensam em voltar... Pó de oiro branco e negro sobre os meus dedos... As minhas mãos são os passos daquela rapariga que abandona a feira, Sozinha e contente como o dia de hoje..
VI
O maestro sacode a batuta, E lânguida e triste a música rompe... Lembra-me a minha infância, aquele dia Em que eu brincava ao pé de um muro de quintal Atirando-lhe com uma bola que tinha dum lado O deslizar dum cão verde, e do outro lado Um cavalo azul a correr com um jockey amarelo... Prossegue a música, e eis na minha infância De repente entre mim e o maestro, muro branco, Vai e vem a bola, ora um cão verde, Ora um cavalo azul com um jockey amarelo... Todo o teatro é o meu quintal, a minha infância Está em todos os lugares, e a bola vem a tocar música, Uma música triste e vaga que passeia no meu quintal Vestida de cão tornando-se jockey amarelo... (Tão rápida gira a bola entre mim e os músicos...) Atiro-a de encontro à minha infância e ela Atravessa o teatro todo que está aos meus pés A brincar com um jockey amarelo e um cão verde E um cavalo azul que aparece por cima do muro Do meu quintal... E a música atira com bolas À minha infância... E o muro do quintal é feito de gestos De batuta e rotações confusas de cães verdes E cavalos azuis e jockeys amarelos... Todo o teatro é um muro branco de música Por onde um cão verde corre atrás de minha saudade Da minha infância, cavalo azul com um jockey amarelo... E dum lado para o outro, da direita para a esquerda, Donde há arvores e entre os ramos ao pé da copa Com orquestras a tocar música, Para onde há filas de bolas na loja onde comprei E o homem da loja sorri entre as memórias da minha infância... E a música cessa como um muro que desaba, A bola rola pelo despenhadeiro dos meus sonhos interrompidos, E do alto dum cavalo azul, o maestro, jockey amarelo tornando-se preto, Agradece, pousando a batuta em cima da fuga dum muro, E curva-se, sorrindo, com uma bola branca em cima da cabeça, Bola branca que lhe desaparece pelas costas abaixo...
O mundo quer-me mal porque ninguém Tem asas como eu tenho! Porque Deus Me fez nascer Princesa entre plebeus Numa torre de orgulho e de desdém.
Porque o meu Reino fica para além... Porque trago no olhar os vastos céus E os oiros e clarões são todos meus! Porque eu sou Eu e porque Eu sou Alguém!
O mundo? O que é o mundo, ó meu Amor? - O jardim dos meus versos todo em flor... A seara dos teus beijos, pão bendito...
Meus êxtases, meus sonhos, meus cansaços... - São teus braços dentro dos meus braços, Via Láctea fechando o Infinito.
Chegando nu, cantei. Cantei, é certo, Minha nudez ansiosa e lastimável. Fez-se, em redor de mim, terror, deserto... Que uma nudez assim é pouco amável.
"Esta gente esperava-me encoberto", (Pensei) "mas eu nunca soube ser afável...", E então vagueei cantando, em meu deserto, Minha nudez ansiosa e lastimável.
Só, vagabundo, assim desci mais fundo: Na Torre de Babel da minha ermida, Já vivo mais do que a minha própria vida!
Já, repelido, em vós me continuo... Sim!, só a mim me entrego e me possuo, Porque eu me busco para achar o mundo!
Venho da terra assombrada, do ventre da minha mãe; não pretendo roubar nada nem fazer mal a ninguém. Só quero o que me é devido por me trazerem aqui, que eu nem sequer fui ouvido no acto de que nasci.
Trago boca para comer e olhos para desejar. Com licença, quero passar, tenho pressa de viver. Com licença! Com licença! Que a vida é água a correr. Venho do fundo do tempo; não tenho tempo a perder.
Minha barca aparelhada solta o pano rumo ao norte; meu desejo é passaporte para a fronteira fechada. Não há ventos que não prestem nem marés que não convenham, nem forças que me molestem, correntes que me detenham. Quero eu e a Natureza, que a Natureza sou eu, e as forças da natureza nunca ninguém as venceu.
Com licença! Com licença! Que a barca se faz ao mar. Não há poder que me vença. Mesmo morto hei-de passar. Com licença! Com licença! Com rumo à estrela polar.
"Os sentimentos que mais doem, as emoções que mais pungem, são os que são absurdos - a ânsia de coisas impossíveis, precisamente porque são impossíveis, a saudade do que nunca houve, o desejo do que poderia ter sido, a mágoa de não ser outro, a insatisfação da existência do mundo. Todos estes meios tons da inconsciência da alma criam em nós uma paisagem dolorida, um eterno sol-pôr do que somos...O sentirmo-nos é então um campo deserto a escurecer, triste de juncos ao pé de um rio sem barcos, negrejando claramente entre margens afastadas."
(Livro do Desassossego: Composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa / Fernando Pessoa)
Amazonas, capital das sílabas da água, pai patriarca, és a eternidade secreta das fecundações, te caem os rios como aves, te cobrem os pistilos cor de incêndio, os grandes troncos mortos te povoam de perfume, a lua não pode vigiar-te ou medir-te. És carregado de esperma verde como árvore nupcial, és prateado pela primavera selvagem, és avermelhado de madeiras, azul entre a lua e as pedras, vestido de vapor ferruginoso, lento como um caminho de planeta.
Estuda o elementar: para aqueles cuja a hora chegou não é nunca demasiado tarde. Estuda o abc. Não basta, mas estuda. Não te canses. Começa. Tens de saber tudo. Estás chamado a ser um dirigente.
Freqüente a escola, desamparado! Persegue o saber, morto de frio! Empunha o livro, faminto! É uma arma! Estás chamado a ser um dirigente.
Não temas perguntar, companheiro! Não te deixes convencer! Compreende tudo por ti mesmo.
O que não sabes por ti, não o sabes. Confere a conta. Tens de pagá-la. Aponta com teu dedo a cada coisa e pergunta: "Que é isto? e como é?" Estás chamado a ser um dirigente.
Tenho tanto sentimento Que é freqüente persuadir-me De que sou sentimental, Mas reconheço, ao medir-me, Que tudo isso é pensamento, Que não senti afinal.
Temos, todos que vivemos, Uma vida que é vivida E outra vida que é pensada, E a única vida que temos É essa que é dividida Entre a verdadeira e a errada.
Qual porém é a verdadeira E qual errada, ninguém Nos saberá explicar; E vivemos de maneira Que a vida que a gente tem É a que tem que pensar.
O Olho é uma espécio de globo, é um pequeno planeta com pinturas do lado de fora. Muitas pinturas: azuis, verdes, amarelas. É um globobrilhante: parece cristal, é como um aquário com plantas finamente desenhadas: algas, sargaços, miniaturas marinhas, areias, rochas, naufrágios e peixes de ouro.
Mas por dentro há outras pinturas, que não se vêem: umas são imagens do mundo, outras são invetadas.
O Olho é um teatro por dentro. E às vezes, sejam atores, sejam cenas, e às vezes, sejam imagens, sejam ausências, formam, no Olho, lágrimas.
há-de flutuar uma cidade no crepúscolo da vida pensava eu... como seriam felizes as mulheres à beira mar debruçadas para a luz caiada remendando o pano das velas espiando o mar e a longitude do amor embarcado
por vezes uma gaivota pousava nas águas outras era o sol que cegava e um dardo de sangue alastrava pelo linho da noite os dias lentíssimos... sem ninguém
e nunca me disseram o nome daquele oceano esperei sentada à porta... dantes escrevia cartas punha-me a olhar a risca de mar ao fundo da rua assim envelheci... acreditando que algum homem ao passar se espantasse com a minha solidão
(anos mais tarde, recordo agora, cresceu-me uma pérola no coração. mas estou só, muito só, não tenho a quem a deixar.)
um dia houve que nunca mais avistei cidades crepusculares e os barcos deixaram de fazer escala à minha porta inclino-me de novo para o pano deste século recomeço a bordar ou a dormir tanto faz sempre tive dúvidas que alguma vez me visite a felicidade
Um sonho alado que nasceu um instante, Erguido ao alto em horas de demência... Gotas de água que tombam em cadência Na minh'alma tristíssima, distante...
Onde está ele, o Desejado? O Infante? O que há de vir e amar-me em doida ardência? O das horas de mágoa e penitência? O Príncipe Encantado? O Eleito? O Amante?
E neste sonho eu já nem sei que sou... O brando marulhar dum longo beijo Que não chegou a dar-se e que passou...
Um fogo-fátuo rútilo, talvez... E eu ando a procurar-te e já te vejo! E tu já me encontraste e não me vês!...
Passa uma borboleta por diante de mim E pela primeira vez no Universo eu reparo Que as borboletas não têm cor nem movimento, Assim como as flores não têm perfume nem cor. A cor é que tem cor nas asas da borboleta, No movimento da borboleta o movimento é que se move, O perfume é que tem perfume no perfume da flor. A borboleta é apenas borboleta E a flor é apenas flor.
Ó mar salgado, quanto do teu sal São lágrimas de Portugal! Por te cruzarmos, quantas mães choraram, Quantos filhos em vão rezaram! Quantas noivas ficaram por casar Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena Se a alma não é pequena. Quem quer passar além do Bojador Tem que passar além da dor. Deus ao mar o perigo e o abismo deu, Mas nele é que espelhou o céu.
Escuta: nos renós tilintam sinos argentinos! Ah! que de mundo de alegria o som cantante prenuncia! Como tinem, lindo, lindo, no ar da noite fria e bela! Vão tinindo e o céu inteiro se constela, florescente, refulgindo com deleites cristalinos! Dão ao Tempo uma cadência tão constante como um rúnico descante, com os tintinabulares, pequeninos sons, bem finos, que nascendo vão dos sinos, sim, dos sinos, sim, dos sinos, saltitantes, bimbalhantes, dentre os sinos.
II
Escuta: em núpcias vão cantando os sinos, áureos sinos! Quantos mundos de ventura seu tanger nos prefigura! No ar da noite, embalsamado, como entoam seu enlevo abençoado! Tons dourados, lentas notas concordantes... E tão límpido poema aí flutua para as rolas que o escutam, divagantes, vendo a lua! Volumoso, vem das celas retumbantes todo um jorro de eufonia que se amplia, "O futuro é belo e bom!" - clama o som, que arrebata, com em êxtases divinos, no balanço repicante que lá soa, que tão bem, tão bem ecoa na vibrante voz dos sinos, sinos, sinos, carrilhões e sinos, sinos, no rimado, consonante som dos sinos.
III
Escuta: em longo alarma bradam sinos, brônzeos sinos! Ah! que história de agonia, turbulenta, se anuncia! Treme a noite, com pavor, quando os ouve em seu bramido assustador. Tanto é o medo que, incapazes de falar, se limitam a gritar, em tons frouxos, desiguais, clamorosos, apelando por clemência ao surdo fogo, contendendo loucamente com o frenesi do fogo, que se lança bem mais alto, que em desejo audaz estua de, no empenho resoluto de algum salto (sim! agora ou nunca mais!), alcançar a fronte pálida da lua! Oh! os sinos, sinos, sinos! De que lenda pavorosa, de alarmar, falam tanto? Clangorantes, ululantes, graves, finos, quanto espanto vertem, quanto, no fremente seio do ar! E por eles bem a gente sabe - ouvindo seu tinido, seu bramido - se o perigo é vindo ou findo. Bem distintamente o ouvido reconhece pela luta, na disputa, se o perigo morre ou cresce, pela ampliante ou descrescente voz colérica dos sinos, badalante voz dos sinos, sim, dos sinos, sim, dos sinos, do clamor e do clangor que vêm dos sinos!
IV
Escuta: dobram, lentamente, os sinos, férreos sinos! Ah! que mundo pensares tão solenes põem nos ares! Na silente noite fria, quando a alma se arrepia à ameaça desse canto melancólico de espanto! Pois em cada som saído da garganta enferrujada há um gemido! E os sineiros (ah! essa gente que, habitando o campanário solitário, vai dobrando, badalando a redobrada voz monótona e envolvente...), quão ufanos ficam eles, quando vão tombar pedras sobre o humano coração! Nem mulher nem homem são, nem são feras: nada mais do que seres fantasmais. E é seu Rei quem assim tange, é quem tange, e dobra, e tange. E reboa triunfal, do sino, a loa! E seu peito de ventura se intumesce com os hinos funerários lá dos sinos; dança, ulula, e bem parece ter o Tempo num compasso tão constante qual de rúnico descante, pelos hinos lá dos sinos! Ah! dos sinos! Leva o Tempo num compasso tão constante como em rúnico descante, pela pulsação dos sinos, a plangente voz dos sinos, pelo soluçar dos sinos! Leva o Tempo num compasso tão constante, que a dobrar se sente, ovante, bem feliz esse rúnico descante, com o reboar que vem dos sinos, a gemente voz dos sinos, o clamor que sai dos sinos, a alucinação dos sinos, o angustioso, lamentoso, lutuoso som dos sinos!
Estou farto do lirismo comedido Do lirismo bem comportado Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor. Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo. Abaixo os puristas Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis Estou farto do lirismo namorador Político Raquítico Sifilítico De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo De resto não é lirismo Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc Quero antes o lirismo dos loucos O lirismo dos bêbedos O lirismo difícil e pungente dos bêbedos O lirismo dos clowns de Shakespeare
— Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.
"... eu só escrevo quando eu quero, eu sou uma amadora e faço questão de continuar a ser amadora. Profissional é aquele que tem uma obrigação consigo mesmo de escrever, ou então em relação ao outro. Agora, eu faço questão de não ser profissional, para manter minha liberdade."
"É um nome latino, né, eu perguntei para o meu pai desde quando havia Lispector na Ucrânia. Ele disse que há gerações e gerações anteriores. Eu suponho que o nome foi rolando, rolando, perdendo algumas sílabas e se transformando nessa coisa que parece "LIS NO PEITO", em latim: flor de lis".
"Tenho várias caras. Uma é quase bonita, outra é quase feia. Sou um o quê? Um quase tudo".
"Marcada pela solidão. Marcada pelo grande amor de sua vida. Marcada pela luta constante contra a quase miséria material. Marcada pelas mãos maceradas pelo fogo, em defesa da vida de um filho, e pela sombra da insanidade rondando a vida do outro." Tristão de Athayde.
"Antes dos sete anos eu já fabulava e já inventava histórias. Por exemplo, inventei uma história que não acabava nunca, é muito complicado explicar esta história. Quando eu comecei a ler e a escrever, eu comecei a escrever também pequenas histórias."
"Eu misturei tudo, eu lia livro, romance para mocinha, livro cor de rosa, misturado com Dostoievski, eu escolhia os livros pelos títulos e não por autores, porque eu não tinha conhecimento...fui ler aos 13 anos Herman Hesse, tomei um choque: O Lobo da Estepe. Aí comecei a escrever um conto que não acabava nunca mais. Terminei rasgando e jogando fora."
"Em uma outra vida que tive, aos 15 anos, entrei numa livraria, que me pareceu o mundo que gostaria de morar. De repente, um dos livros que abri continha frases tão diferentes que fiquei lendo, presa, ali mesmo. Emocionada, eu pensava: mas esse livro sou eu! Só depois vim a saber que a autora era considerada um dos melhores escritores de sua época: Katherine Mansfield."
"Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador. Escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada."
Eu escrevi um poema triste E belo, apenas da sua tristeza. Não vem de ti essa tristeza Mas das mudanças do Tempo, Que ora nos traz esperanças Ora nos dá incerteza... Nem importa, ao velho Tempo, Que sejas fiel ou infiel... Eu fico, junto à correnteza, Olhando as horas tão breves... E das cartas que me escreves Faço barcos de papel!
São belas - bem o sei, essas estrelas, Mil cores - divinais têm essas flores; Mas eu não tenho, amor, olhos para elas: Em toda a natureza Não vejo outra beleza Senão a ti - a ti!
Divina - ai! sim, será a voz que afina Saudosa - na ramagem densa, umbrosa. Será: mas eu do rouxinol que trina Não oiço a melodia, Nem sinto outra harmonia Senão a ti - a ti!
Respira - n'aura que entre as flores gira, Celeste - incenso de perfume agreste. Sei... não sinto: a minha alma não aspira, Não percebe, não toma Senão o doce aroma Que vem de ti - de ti!
Formosos - são os pomos saborosos, É um mimo - de néctar o racimo: E eu tenho fome e sede... sequiosos, Famintos meus desejos Estão... mas é de beijos É só de ti - de ti!
Macia - deve a relva luzidia Do leito - ser por certo em que me deito Mas quem, ao pé de ti, quem poderia Sentir outras carícias, Tocar noutras delícias Senão em ti - em ti!
A ti! ai, a ti só os meus sentidos, Todos num confundidos, Sentem, ouvem, respiram; Em ti, por ti deliram. Em ti a minha sorte, A minha vida em ti; E, quando venha a morte, Será morrer por ti.
Para viver um grande amor, preciso é muita concentração e muito siso, muita seriedade e pouco riso — para viver um grande amor.
Para viver um grande amor, mister é ser um homem de uma só mulher; pois ser de muitas, poxa! é de colher... — não tem nenhum valor.
Para viver um grande amor, primeiro é preciso sagrar-se cavalheiro e ser de sua dama por inteiro — seja lá como for. Há que fazer do corpo uma morada onde clausure-se a mulher amada e postar-se de fora com uma espada — para viver um grande amor.
Para viver um grande amor, vos digo, é preciso atenção como o "velho amigo", que porque é só vos quer sempre consigo para iludir o grande amor. É preciso muitíssimo cuidado com quem quer que não esteja apaixonado, pois quem não está, está sempre preparado pra chatear o grande amor.
Para viver um amor, na realidade, há que compenetrar-se da verdade de que não existe amor sem fidelidade — para viver um grande amor. Pois quem trai seu amor por vanidade é um desconhecedor da liberdade, dessa imensa, indizível liberdade que traz um só amor.
Para viver um grande amor, il faut além de fiel, ser bem conhecedor de arte culinária e de judô — para viver um grande amor.
Para viver um grande amor perfeito, não basta ser apenas bom sujeito; é preciso também ter muito peito — peito de remador. É preciso olhar sempre a bem-amada como a sua primeira namorada e sua viúva também, amortalhada no seu finado amor.
É muito necessário ter em vista um crédito de rosas no florista — muito mais, muito mais que na modista! — para aprazer ao grande amor. Pois do que o grande amor quer saber mesmo, é de amor, é de amor, de amor a esmo; depois, um tutuzinho com torresmo conta ponto a favor...
Conta ponto saber fazer coisinhas: ovos mexidos, camarões, sopinhas, molhos, strogonoffs — comidinhas para depois do amor. E o que há de melhor que ir pra cozinha e preparar com amor uma galinha com uma rica e gostosa farofinha, para o seu grande amor?
Para viver um grande amor é muito, muito importante viver sempre junto e até ser, se possível, um só defunto — pra não morrer de dor. É preciso um cuidado permanente não só com o corpo mas também com a mente, pois qualquer "baixo" seu, a amada sente — e esfria um pouco o amor. Há que ser bem cortês sem cortesia; doce e conciliador sem covardia; saber ganhar dinheiro com poesia — para viver um grande amor.
É preciso saber tomar uísque (com o mau bebedor nunca se arrisque!) e ser impermeável ao diz-que-diz-que — que não quer nada com o amor.
Mas tudo isso não adianta nada, se nesta selva escura e desvairada não se souber achar a bem-amada — para viver um grande amor.
Definitivo, como tudo o que é simples. Nossa dor não advém das coisas vividas, mas das coisas que foram sonhadas e não se cumpriram.
Por que sofremos tanto por amor?
O certo seria a gente não sofrer, apenas agradecer por termos conhecido uma pessoa tão bacana, que gerou em nós um sentimento intenso e que nos fez companhia por um tempo razoável, um tempo feliz.
Sofremos por quê?
Porque automaticamente esquecemos o que foi desfrutado e passamos a sofrer pelas nossas projecções irrealizadas, por todas as cidades que gostaríamos de ter conhecido ao lado do nosso amor e não conhecemos, por todos os filhos que gostaríamos de ter tido junto e não tivemos, por todos os shows e livros e silêncios que gostaríamos de ter compartilhado, e não compartilhamos. Por todos os beijos cancelados, pela eternidade.
Sofremos não porque nosso trabalho é desgastante e paga pouco, mas por todas as horas livres que deixamos de ter para ir ao cinema, para conversar com um amigo, para nadar, para namorar.
Sofremos não porque nossa mãe é impaciente conosco, mas por todos os momentos em que poderíamos estar confidenciando a ela nossas mais profundas angústias se ela estivesse interessada em nos compreender.
Sofremos não porque nosso time perdeu, mas pela euforia sufocada.
Sofremos não porque envelhecemos, mas porque o futuro está sendo confiscado de nós, impedindo assim que mil aventuras nos aconteçam, todas aquelas com as quais sonhamos e nunca chegamos a experimentar.
Como aliviar a dor do que não foi vivido?
A resposta é simples como um verso: Se iludindo menos e vivendo mais!!!
A cada dia que vivo, mais me convenço de que o desperdício da vida está no amor que não damos, nas forças que não usamos, na prudência egoísta que nada arrisca, e que, esquivando-se do sofrimento, perdemos também a felicidade.
Sim, foi por mim que gritei. Declamei, Atirei frases em volta. Cego de angústia e de revolta.
Foi em meu nome que fiz, A carvão, a sangue, a giz, Sátiras e epigramas nas paredes Que não vi serem necessárias e vós vedes.
Foi quando compreendi Que nada me dariam do infinito que pedi, -Que ergui mais alto o meu grito E pedi mais infinito!
Eu, o meu eu rico de baixas e grandezas, Eis a razão das épi trági-cómicas empresas Que, sem rumo, Levantei com sarcasmo, sonho, fumo...
O que buscava Era, como qualquer, ter o que desejava. Febres de Mais. ânsias de Altura e Abismo, Tinham raízes banalíssimas de egoísmo.
Que só por me ser vedado Sair deste meu ser formal e condenado, Erigi contra os céus o meu imenso Engano De tentar o ultra-humano, eu que sou tão humano!
Senhor meu Deus em que não creio! Nu a teus pés, abro o meu seio Procurei fugir de mim, Mas sei que sou meu exclusivo fim.
Sofro, assim, pelo que sou, Sofro por este chão que aos pés se me pegou, Sofro por não poder fugir. Sofro por ter prazer em me acusar e me exibir!
Senhor meu Deus em que não creio, porque és minha criação! (Deus, para mim, sou eu chegado à perfeição...) Senhor dá-me o poder de estar calado, Quieto, maniatado, iluminado.
Se os gestos e as palavras que sonhei, Nunca os usei nem usarei, Se nada do que levo a efeito vale, Que eu me não mova! que eu não fale!
Ah! também sei que, trabalhando só por mim, Era por um de nós. E assim, Neste meu vão assalto a nem sei que felicidade, Lutava um homem pela humanidade.
Mas o meu sonho megalómano é maior Do que a própria imensa dor De compreender como é egoísta A minha máxima conquista...
Senhor! que nunca mais meus versos ávidos e impuros Me rasguem! e meus lábios cerrarão como dois muros, E o meu Silêncio, como incenso, atingir-te-á, E sobre mim de novo descerá...
Sim, descerá da tua mão compadecida, Meu Deus em que não creio! e porá fim à minha vida. E uma terra sem flor e uma pedra sem nome Saciarão a minha fome.
Poeta português, natural de Vila Nogueira de Azeitão, Setúbal. Concluiu o curso de Filologia Românica na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em 1947, e ainda nesse ano iniciou a sua actividade de professor, que exerceu em Lisboa, Setúbal e Estremoz. Foi colaborador das revistas Árvore e Távola Redonda. Sebastião da Gama ficou para a história pela sua dimensão humana, nomeadamente no convívio com os alunos, registado nas páginas do seu famoso Diário (iniciado em 1949). Literariamente, não esteve dependente de qualquer escola, afirmando-se pela sua temática (amor à natureza, ao ser humano) e pela candura muito pessoal que caracterizou os seus textos. Atingido pela tuberculose, que causaria a sua morte precoce, passou a residir no Portinho da Arrábida, com a panorâmica serra da Arrábida a alimentar o culto pela paisagem presente na sua obra. Foi, entretanto, instituído, com o seu nome, um Prémio Nacional de Poesia. Estreou-se com Serra Mãe, em 1945. Publicou ainda Loas a Nossa Senhora da Arrábida (1946, em colaboração com Miguel Caleiro), Cabo da Boa Esperança (1947) e Campo Aberto (1951). Após a sua morte, foram editados Pelo Sonho é que Vamos (1953), Diário (1958), Itinerário Paralelo (1967), O Segredo é Amar (1969) e Cartas I (1994).
Floriram por engano as rosas bravas No Inverno: veio o vento desfolhá-las... Em que cismas, meu bem? Porque me calas As vozes com que há pouco me enganavas?
Castelos doidos! Tão cedo caístes!... Onde vamos, alheio o pensamento, De mãos dadas? Teus olhos, que num momento Perscrutaram nos meus, como vão tristes!
E sobre nós cai nupcial a neve, Surda, em triunfo, pétalas, de leve Juncando o chão, na acrópole de gelos...
Em redor do teu vulto é como um véu! Quem as esparze --- quanta flor! --- do céu, Sobre nós dois, sobre os nossos cabelos?
Todos os dias os ministros dizem ao povo Como é difícil governar. Sem os ministros O trigo cresceria para baixo em vez de crescer para cima. Nem um pedaço de carvão sairia das minas Se o chanceler não fosse tão inteligente. Sem o ministro da Propaganda Mais nenhuma mulher poderia ficar grávida. Sem o ministro da Guerra Nunca mais haveria guerra. E atrever-se ia a nascer o sol Sem a autorização do Führer? Não é nada provável e se o fosse Ele nasceria por certo fora do lugar.
2
E também difícil, ao que nos é dito, Dirigir uma fábrica. Sem o patrão As paredes cairiam e as máquinas encher-se-iam de ferrugem. Se algures fizessem um arado Ele nunca chegaria ao campo sem As palavras avisadas do industrial aos camponeses: quem, De outro modo, poderia falar-lhes na existência de arados? E que Seria da propriedade rural sem o proprietário rural? Não há dúvida nenhuma que se semearia centeio onde já havia batatas.
3
Se governar fosse fácil Não havia necessidade de espíritos tão esclarecidos como o do Führer. Se o operário soubesse usar a sua máquina E se o camponês soubesse distinguir um campo de uma forma para tortas Não haveria necessidade de patrões nem de proprietários. E só porque toda a gente é tão estúpida Que há necessidade de alguns tão inteligentes.
4
Ou será que Governar só é assim tão difícil porque a exploração e a mentira São coisas que custam a aprender?
Pintor e poeta português, natural de Lisboa. A sua formação artística inclui o curso da Escola de Artes Decorativas António Arroio e estudos na área de música, com Fernando Lopes Graça. Mais tarde, viria a frequentar a Academia de La Grande Chaumière, em Paris, cidade onde conheceu André Breton, em 1947. Rapidamente atraído pelas propostas do movimento surrealista francês, tornou-se um dos mais importantes defensores do movimento em Portugal. Ainda nesse ano, integrou o Grupo Surrealista de Lisboa. Cesariny, figura sempre inquieta e questionadora, afastava-se assim, de maneira definitiva, do movimento neo-realista. Passou a adoptar uma atitude estética de constante experimentação, logo visível nas suas primeiras colagens e pinturas informalistas realizadas com tintas de água, e distribuídas no suporte de forma aleatória. Seria este princípio anárquico que conduziria a obra de Cesariny ao longo da sua vida (incluindo a sua produção poética, que o autor considerava construir a partir deste desregramento inicial das suas experiências na pintura). A continuidade da sua prática plástica levá-lo-ia, portanto, a seguir uma corrente gestualista, por vezes pontuada de um corrosivo humor. Dinamizador da prática surrealista em Lisboa, Cesariny iria criar «antigrupos», com a mesma orientação mas questionando e procurando um grau extremo de espontaneidade, tentativa também visível na sua obra poética. Participou, em 1949 e 1950, nas I e II Exposições dos Surrealistas, pólos de atenção de novos pintores, mas ignoradas pela imprensa. Crescentemente dedicado à escrita, Cesariny viria a publicar as obras poéticas Corpo Visível (1950), Discurso Sobre a Reabilitação do Real Quotidiano (1952), Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos (1953), Manual de Prestidigitação (1956), Pena Capital (1957), Nobilíssima Visão (1959), Poesia, 1944-1955 (1961), Planisfério e Outros Poemas (1961), Um Auto para Jerusalém (1964), As Mãos na Água a Cabeça no Mar (1972), Burlescas, Teóricas e Sentimentais (1972), Titânia e a Cidade Queimada (1977), O Virgem Negra. Fernando Pessoa Explicado às Criancinhas Naturais & Estrangeiras (1989), e a obra de ficção Titânia (1994). A edição da sua obra não segue linearmente a cronologia da sua produção. Corpo Visível é o volume em que as características surrealistas são já dominantes — em textos anteriores, a denúncia social aproximava-se, por vezes, do neo-realismo, embora já em Nobilíssima Visão esta escola fosse objecto de um olhar crítico. O humor, o recurso ao non-sense e ao absurdo, são marcas da escrita de Cesariny, de uma ironia por vezes violenta, que incide sobre figuras e mitos consagrados da cultura portuguesa e ocidental. Da sua obra escrita sobre a temática do surrealismo, que analisou e teorizou em vários textos, fazem parte A Intervenção Surrealista (1958), a organização e autoria parcial da Antologia Surrealista do Cadáver Esquisito (1961), a antologia Surreal-Abjection(ismo) (1963), Do Surrealismo e da Pintura (1967), Primavera Autónoma das Estradas (1980) e Vieira da Silva – Arpad Szènes, ou O Castelo Surrealista (1984).
Realmente, vivemos tempos sombrios! A inocência é loucura. Uma fronte sem rugas denota insensibilidade. Aquele que ri ainda não recebeu a terrível notícia que está para chegar. Que tempos são estes, em que é quase um delito falar de coisas inocentes, pois implica em silenciar sobre tantos horrores.
Quem construiu Tebas, a das sete portas? Nos livros vem o nome dos reis, Mas foram os reis que transportaram as pedras? Babilónia, tantas vezes destruida, Quem outras tantas a reconstruiu? Em que casas Da Lima Dourada moravam seus obreiros? No dia em que ficou pronta a Muralha da China para onde Foram os seus pedreiros? A grande Roma Está cheia de arcos de triunfo. Quem os ergueu? Sobre quem Triunfaram os Césares? A tão cantada Bizâncio Sò tinha palácios Para os seus habitantes? Até a legendária Atlântida Na noite em que o mar a engoliu Viu afogados gritar por seus escravos.
O jovem Alexandre conquistou as Indias Sózinho? César venceu os gauleses. Nem sequer tinha um cozinheiro ao seu serviço? Quando a sua armada se afundou Filipe de Espanha Chorou. E ninguém mais? Frederico II ganhou a guerra dos sete anos Quem mais a ganhou?
Em cada página uma vitòria. Quem cozinhava os festins? Em cada década um grande homem. Quem pagava as despesas?
Deixa ficar comigo a madrugada, para que a luz do Sol me não constranja. Numa taça de sombra estilhaçada, deita sumo de lua e de laranja.
Arranja uma pianola, um disco, um posto, onde eu ouça o estertor de uma gaivota... Crepite, em derredor, o mar de Agosto... E o outro cheiro, o teu, à minha volta!
Depois, podes partir. Só te aconselho que acendas, para tudo ser perfeito, à cabeceira a luz do teu joelho, entre os lençóis o lume do teu peito...
Podes partir. De nada mais preciso para a minha ilusão do Paraíso.
Um pouco mais de sol - eu era brasa. Um pouco mais de azul - eu era além. Para atingir, faltou-me um golpe de asa... Se ao menos eu permanecesse aquém...
...
Num ímpeto difuso de quebranto, Tudo encetei e nada possuí... Hoje, de mim, só resta o desencanto Das coisas que beijei mas não vivi...
Na grande confusão deste medo deste não querer saber na falta de coragem ou na coragem de me perder me afundar perto de ti tão longe tão nu tão evidente tão pobre como tu oh diz-me quem sou eu quem és tu?
Amor de minhas entranhas, morte viva, em vão espero tua palavra escrita e penso, com a flor que se murcha, que se vivo sem mim quero perder-te. O ar é imortal. A pedra inerte nem conhece a sombra nem a evita. Coração interior não necessita o mel gelado que a lua verte.
Porém eu te sofri. Rasguei-me as veias, tigre e pomba, sobre tua cintura em duelo de mordiscos e açucenas. Enche, pois, de palavras minha loucura ou deixa-me viver em minha serena noite da alma para sempre escura.
A noite trocou-me os sonhos e as mãos dispersou-me os amigos tenho o coração confundido e a rua é estreita estreita em cada passo as casas engolem-nos sumimo-nos estou num quarto só num quarto só com os sonhos trocados com toda a vida às avessas a arder num quarto só Sou um funcionário apagado um funcionário triste a minha alma não acompanha a minha mão Débito e Crédito Débito e Crédito a minha alma não dança com os números tento escondê-la envergonhado o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente e debitou-me na minha conta de empregado Sou um funcionário cansado dum dia exemplar Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever? Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço Soletro velhas palavras generosas Flor rapariga amigo menino irmão beijo namorada mãe estrela música São as palavras cruzadas do meu sonho palavras soterradas na prisão da minha vida isto todas as noites do mundo numa só noite comprida num quarto só
Houve um tempo em que minha janela se abria sobre uma cidade que parecia ser feita de giz. Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco. Era uma época de estiagem, de terra esfarelada, e o jardim parecia morto. Mas todas as manhãs vinha um pobre com um balde e, em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas. Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse. E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros e meu coração ficava completamente feliz. Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor. Outras vezes encontro nuvens espessas. Avisto crinças que vão para a escola. Pardais que pulam pelo muro. Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais. Borboletas brancas, duas a duas, como refelectidas no espelho do ar. Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Vega. Às vezes um galo canta. Às vezes um avião passa. Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino. E eu me sinto completamente feliz. Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas, e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.
O que me tranquiliza é que tudo o que existe, existe com uma precisão absoluta. O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete não transborda nem uma fração de milímetro além do tamanho de uma cabeça de alfinete. Tudo o que existe é de uma grande exatidão. Pena é que a maior parte do que existe com essa exatidão nos é tecnicamente invisível. O bom é que a verdade chega a nós como um sentido secreto das coisas. Nós terminamos adivinhando, confusos, a perfeição.
Eu sei que o meu desespero não interessa a ninguém. Cada um tem o seu, pessoal e intransmissível: com ele se entretém e se julga intangível.
Eu sei que a Humanidade é mais gente do que eu, sei que o Mundo é maior do que o bairro onde habito, que o respirar de um só, mesmo que seja o meu, não pesa num total que tende para infinito.
Eu sei que as dimensões impiedosos da Vida ignoram todo o homem, dissolvem-no, e, contudo, nesta insignificância, gratuita e desvalida, Universo sou eu, com nebulosas e tudo.
Serei tudo o que disserem por inveja ou negação: cabeçudo dromedário fogueira de exibição teorema corolário poema de mão em mão lãzudo publicitário malabarista cabrão. Serei tudo o que disserem: Poeta castrado não!
Os que entendem como eu as linhas com que me escrevo reconhecem o que é meu em tudo quanto lhes devo: ternura como já disse sempre que faço um poema; saudade que se partisse me alagaria de pena; e também uma alegria uma coragem serena em renegar a poesia quando ela nos envenena.
Os que entendem como eu a força que tem um verso reconhecem o que é seu quando lhes mostro o reverso:
Da fome já não se fala - é tão vulgar que nos cansa - mas que dizer de uma bala num esqueleto de criança?
Do frio não reza a história - a morte é branda e letal - mas que dizer da memória de uma bomba de napalm?
E o resto que pode ser o poema dia a dia? - Um bisturi a crescer nas coxas de uma judia; um filho que vai nascer parido por asfixia?! - Ah não me venham dizer que é fonética a poesia!
Serei tudo o que disserem por temor ou negação: Demagogo mau profeta falso médico ladrão prostituta proxeneta espoleta televisão. Serei tudo o que disserem: Poeta castrado não!
O portugal futuro é um país aonde o puro pássaro é possível e sobre o leito negro do asfalto da estrada as profundas crianças desenharão a giz esse peixe da infância que vem na enxurrada e me parece que se chama sável Mas desenhem elas o que desenharem é essa a forma do meu país e chamem elas o que lhe chamarem portugal será e lá serei feliz Poderá ser pequeno como este ter a oeste o mar e a espanha a leste tudo nele será novo desde os ramos à raiz À sombra dos plátanos as crianças dançarão e na avenida que houver à beira-mar pode o tempo mudar será verão Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz mas isso era o passado e podia ser duro edificar sobre ele o portugal futuro
Não saibas: imagina... Deixa falar o mestre, e devaneia... A velhice é que sabe, e apenas sabe Que o mar não cabe Na poça que a inocência abre na areia.
Sonha! Inventa um alfabeto De ilusões... Um a-bê-cê secreto Que soletres à margem das lições...
Voa pela janela De encontro a qualquer sol que te sorria! Asas? Não são precisas: Vais ao colo das brisas, Aias da fantasia...
Sonho que sou a Poetisa eleita, Aquela que diz tudo e tudo sabe, Que tem a inspiração pura e perfeita, Que reúne num verso a imensidade!
Sonho que um verso meu tem claridade Para encher todo o mundo! E que deleita Mesmo aqueles que morrem de saudade! Mesmo os de alma profunda e insatisfeita!
Sonho que sou Alguém cá neste mundo... Aquela de saber vasto e profundo, Aos pés de quem a Terra anda curvada!
E quando mais no céu eu vou sonhando, E quando mais no alto ando voando, Acordo do meu sonho...E não sou nada!...
Niels Armstrong pôs os pés na Lua e a Humanidade inteira saudou nele o Homem Novo. No calendário da História sublinhou-se com espesso traço o memorável feito.
Tudo nele era novo. Vestia quinze fatos sobrepostos. Primeiro, sobre a pele, cobrindo-o de alto a baixo, um colante poroso de rede tricotada para ventilação e temperatura próprias. Logo após, outros fatos, e outros e mais outros, catorze, no total, de película de nylon e borracha sintética. Envolvendo o conjunto, do tronco até os pés, na cabeça e nos braços, confusíssima trama de canais para circulação dos fluidos necessários, da água e do oxigénio. A cobrir tudo, enfim, como um balão de vento, um envólucro soprado de tela de alumínio. Capacete de rosca, de especial fibra de vidro, auscultadores e microfones, e, nas mãos penduradas, tentáculos programados, luvas com luz nos dedos.
Numa cama de rede, pendurada da parede do módulo, na majestade augusta do silêncio, dormia o Homem Novo a caminho da Lua.
Cá de longe, na Terra, num borborinho ansioso, bocas de espanto e olhos de humidade, todos se interpelavam e falavam do Homem Novo, do Homem Novo, do Homem Novo.
Sobre a Lua, Armstrong pôs finalmente os pés. Caminhava hesitante e cauteloso, pé aqui, pé ali, as pernas afastadas, os braços insuflados como balões pneumáticos, o tronco debruçado sobre o solo.
Lá vai ele. Lá vai o Homem Novo medindo e calculando cada passo, puxando pelo corpo como bloco emperrado.
Mais um passo. Mais outro. Num sobrehumano esforço levanta a mão sapuda e qualquer coisa nela. Com redobrado alento avança mais um passo, e a Humanidade inteira, com o coração pequeno e ressequido, viu, com os olhos que a terra há-de comer, o Homem Novo espetar, no chão poeirento da Lua, a bandeira da sua Pátria, exactamente como faria o Homem Velho.
Acordar da cidade de Lisboa, mais tarde do que as outras, Acordar da Rua do Ouro, Acordar do Rocio, às portas dos cafés, Acordar E no meio de tudo a gare, que nunca dorme, Como um coração que tem que pulsar através da vigília e do sono.
Toda a manhã que raia, raia sempre no mesmo lugar, Não há manhãs sobre cidades, ou manhãs sobre o campo. À hora em que o dia raia, em que a luz estremece a erguer-se Todos os lugares são o mesmo lugar, todas as terras são a mesma, E é eterna e de todos os lugares a frescura que sobe por tudo.
Uma espiritualidade feita com a nossa própria carne, Um alívio de viver de que o nosso corpo partilha, Um entusiasmo por o dia que vai vir, uma alegria por o que pode acontecer de bom, São os sentimentos que nascem de estar olhando para a madrugada, Seja ela a leve senhora dos cumes dos montes, Seja ela a invasora lenta das ruas das cidades que vão leste-oeste, Seja
A mulher que chora baixinho Entre o ruído da multidão em vivas... O vendedor de ruas, que tem um pregão esquisito, Cheio de individualidade para quem repara... O arcanjo isolado, escultura numa catedral, Siringe fugindo aos braços estendidos de Pã, Tudo isto tende para o mesmo centro, Busca encontrar-se e fundir-se Na minha alma.
Eu adoro todas as coisas E o meu coração é um albergue aberto toda a noite. Tenho pela vida um interesse ávido Que busca compreendê-la sentindo-a muito. Amo tudo, animo tudo, empresto humanidade a tudo, Aos homens e às pedras, às almas e às máquinas, Para aumentar com isso a minha personalidade.
Pertenço a tudo para pertencer cada vez mais a mim próprio E a minha ambição era trazer o universo ao colo Como uma criança a quem a ama beija. Eu amo todas as coisas, umas mais do que as outras, Não nenhuma mais do que outra, mas sempre mais as que estou vendo Do que as que vi ou verei. Nada para mim é tão belo como o movimento e as sensações. A vida é uma grande feira e tudo são barracas e saltimbancos. Penso nisto, enterneço-me mas não sossego nunca.
Dá-me lírios, lírios E rosas também. Dá-me rosas, rosas, E lírios também, Crisântemos, dálias, Violetas, e os girassóis Acima de todas as flores...
Deita-me as mancheias, Por cima da alma, Dá-me rosas, rosas, E lírios também...
Meu coração chora Na sombra dos parques, Não tem quem o console Verdadeiramente, Exceto a própria sombra dos parques Entrando-me na alma, Através do pranto. Dá-me rosas, rosas, E lírios também...
Minha dor é velha Como um frasco de essência cheio de pó. Minha dor é inútil Como uma gaiola numa terra onde não há aves, E minha dor é silenciosa e triste Como a parte da praia onde o mar não chega. Chego às janelas Dos palácios arruinados E cismo de dentro para fora Para me consolar do presente. Dá-me rosas, rosas, E lírios também...
Mas por mais rosas e lírios que me dês, Eu nunca acharei que a vida é bastante. Faltar-me-á sempre qualquer coisa, Sobrar-me-á sempre de que desejar, Como um palco deserto.
Por isso, não te importes com o que eu penso, E muito embora o que eu te peça Te pareça que não quer dizer nada, Minha pobre criança tísica, Dá-me das tuas rosas e dos teus lírios, Dá-me rosas, rosas, E lírios também..
Tinham o rosto aberto a quem passava. Tinham lendas e mitos e frio no coração. Tinham jardins onde a lua passeava de mãos dadas com a água e um anjo de pedra por irmão.
Tinham como toda a gente o milagre de cada dia escorrendo pelos telhados; e olhos de oiro. onde ardiam os sonhos mais tresmalhados.
Tinham fome e sede como os bichos, e silêncio à roda dos seus passos. Mas a cada gesto que faziam um pássaro nascia dos seus dedos e deslumbrado penetrava nos espaços.
Existe somente uma idade para a gente ser feliz,somente uma época na vida de cada pessoa em que é possível sonhar e fazer planos e ter energia bastante para realiza-los a despeito de todas as dificuldades e obstáculos. Uma só idade para a gente se encontrar com a vida e viver apaixonadamente e desfrutar tudo com toda intensidade sem medo nem culpa de sentir prazer. Fases douradas em que a gente pode criar e recriar a vida à nossa própria imagem e semelhança e vestir-se com todas as cores e experimentar todos os sabores e entregar-se a todos os amores sem preconceito nem pudor. Tempo de entusiasmo e coragem em que todo desafio é mais um convite à luta que a gente enfrenta com toda disposição de tentar algo NOVO, de NOVO e de NOVO, e quantas vezes for preciso. Essa idade tão fugaz na vida da gente chama-se PRESENTE e tem a duração do instante que passa.
[porque se não fosse este homem eu nunca me entregaria à poesia, porque quando me sentei no seu colo ele me disse "Tu és diferente mas lembra-te, é na diferença que reside a igualdade. És especial!", pela sua boca eu aprendi a ser-me poesia]