Armando Freitas Filho: poeta formador/deformador
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Publicado por Felipe Mendonça em 02-Sep-2013 18:00
Armando Freitas Filho: poeta formador/deformador

José Felipe Mendonça da Conceição
Mestre em Literatura Brasileira pela FL/UFRJ

A expressão do eu, do corpo e do mundo exterior é a senda e a procura da poesia de Armando Freitas Filho. Como materializar, poeticamente, ou seja, pela palavra, o pensamento, as agruras do corpo e os objetos de consumo do mundo circundante é a busca incessante da poesia freitasiana. Diante disso, a problemática inaugural da obra de Armando pode ser formulada da seguinte maneira: que linguagem é apropriada para objectualização do conteúdo interior (pensamento) ou do eu; de que signos deve valer-se o poeta para materializar sua linguagem, no decorrer do processo de interação verbal e social formativo do indivíduo e do próprio artista?
Eis a questão que intentamos responder no presente ensaio. Em suma, buscamos identificar os signos e os recursos formais de que o poeta se vale para superar “a parede feita de raiva”, “a mão que não engrena” (Freitas Filho, 2003, p.35) . O que o poeta deseja é o encontro com a linguagem que “morda a realidade” (Bosi, 2003, p.20) do corpo e, principalmente, a do “eu” que o corpo encerra; ele quer encontrar a expressão que objectualize sua estrutura corporal e interioridade, a fim de apreendê-las como objetos cognoscíveis e cognoscentes.
Antes de qualquer resposta, deve-se levar em conta que a palavra não é só veículo que serve de vaso comunicante entre o conteúdo interior e a expressão; ela é, sobretudo, a própria forma da expressão, ela é a expressão, especialmente em poesia, sempre inserida num contexto lingüístico-histórico bem delineado. Tal fato leva-nos a reformular a questão inicial da seguinte maneira: não só que linguagem (signos), mas que forma poética é mais adequada e, portanto, eleita, na obra freitasiana, para objectualizar o indivíduo?
O poeta, já no primeiro fragmento do livro Numeral/Nominal, começa a delinear respostas para essas intrincadas questões, indicando-nos o processo do qual se valerá, a fim de encontrar a linguagem, as palavras, ou seja, sua expressão poética. Para superar “a mão que não engrena”, “a parede feita de raiva”, iniciará intensa reflexão sobre o seu corpo e o do outro, o que classifica como “pulo para dentro de você e de mim”. É através desse pulo poético-existencial para dentro de si e do outro, pulo sem reservas, pois é “do coração que parte com todos os cavalos”, que o poeta intentará objetivar-se (p.35).
Vale dizer que a obra de Armando abarca objetos da realidade circundante muito bem definidos e em torno dos quais gravita reiteradamente, configurando-se como verdadeiras obsessões que perpassam toda a obra deste poeta. Dentre esses objetos ou signos, podemos destacar no mínimo três: o corpo, a propaganda e os objetos da cultura de massa. Não por acaso, portanto, que Armando diz considerar-se “um poeta do real” e que “vida, amor e morte são três temas recorrentes em sua obra” (Bastos et al, 2007, p.43).
Desse modo, o salto estético e ontológico do poeta para dentro de si e do mundo vai em direção à realidade exterior dos homens e objetos, mas também ao “eu” e ao corpo. O fragmento número oito (como indicado em Numeral/Nominal) evidencia a importância do corpo e do eu como signos na obra do poeta. Ele revela do que é feito o corpo, de que estrutura é composto:

Corpo feito no grito. De um grito.
Por um grito. Pelo grito úmido
e escuro, configura-se na emissão
e na escuta: no circuito de si mesmo.
Na escrita. Por um feixe de gritos
Amarrados tão juntos que parecem ser
A soma certa e alta de um só – sumo.

Corpo de porquês. Que levanta
da cadeira, do pensamento
e vai pegar o que se diz em pé:
(senão o sentido escapa pelos
sentidos afora), e vai buscar
sem garantia de receber ou de sequer
encontrar o que pensou existir
para anotar logo em pedaço de papel
beira de jornal, no canhoto, na palma
da mão, em qualquer zine que passe (p.38).

Na confluência de tantos gritos e porquês, o poeta intenta, portanto, encontrar a palavra ou a expressão para o eu do corpo, um sentido que está sempre escapando “pelos sentidos afora (p.38).” Vale lembrar que o grito, a par da linguagem, é forma peculiar de expressão humana sem qualquer palavra. Exatamente por ser assim que ainda não é a maneira mais acabada de o corpo objetivar-se. Claro que, em certas situações, bastante específicas, um grito diz mais que qualquer palavra ou frase, porém, em se tratando de escrita, e, num âmbito mais abrangente, de literatura, é a palavra que ocupa o centro do discurso. É do grito para a palavra, ou da expressão bruta para outra mais específica, porém não menos violenta e exasperada, que o poeta procura orientar-se.
Para tanto, imagem recorrente na poesia de Armando é a metáfora do repórter. Assim como o repórter anota e escreve sobre diversas situações e contextos diferentes, o poeta desenvolverá um eu-lírico que se tornará jornalista de si mesmo, sujeito que pretende anotar e registrar, mesmo que de modo caótico, as ínfimas variações físicas, de estado e estéticas do corpo misterioso e do eu enigmático. O poeta, enfim, será aquele que “na beira do jornal, no canhoto, na palma da mão” anota “qualquer zine que passe” (p.38).
No entanto, Armando chega à conclusão que esta tarefa é árdua. Conferir expressão ou forma à sua existência é uma empreitada que passa por uma profunda reflexão acerca do fazer poético e da própria vida. Para ele, escrever não é apenas uma tarefa lingüística, não se restringe somente à escolha de palavras e ao trabalho de depuramento formal. Para Armando, escrever é viver: “escreviver” (p.300), como ele próprio afirma. Assim, segundo o poeta, escrita e vida são indissociáveis, faces de uma mesma moeda, num mundo assoberbado de mensagens, objetos e ideologias.
Armando sabe que o homem está imerso na linguagem e que este mesmo homem também a produz, tornando-se assim produto e produtor da linguagem. Portanto, é nesse território comum que o poeta trabalha e se desenvolve: o território da palavra e da vida.
Mas, ele sabe também que a expressão poética e a objectualização do ser passam pela questão dos sentidos, pois, antes da linguagem, é através dos sentidos que o homem trava seus primeiros contatos com a realidade. Na verdade, o poeta aborda tal questão como elemento de formação da fala social e de concepção do mundo à sua volta.
Assim, Armando comunica-nos a necessidade de “passar a limpo os cinco sentidos”, para usá-los “todos novos em folha” (p.395). Como há estreita relação entre formação do discurso e do pensamento e apreensão da realidade pelo homem, através dos sentidos, a necessidade de passá-los a limpo, isto é, de uma depuração poética dos sentidos e da linguagem, segundo o poeta, impor-se-ia, pois, se eles estiverem automatizados, obviamente, tais fatores limitarão o pensamento, bem como as escolhas lingüísticas e, por fim, a própria expressão poética.
Portanto, para conseguirmos utilizar os sentidos “novos em folha”, torna-se mister usá-los livres de “luvas, óculos, fones/ perfumes de meio ambiente/ e com a boca livre de lembranças”(p.395). Tais versos, bastante enigmáticos, significam que para a restauração dos sentidos, tê-los novos em folha, é necessário libertá-los de certos objetos culturais e simbólicos que impedem contato mais natural e autêntico com a realidade e com os outros indivíduos. O que Armando propõe, portanto, é um recomeço perceptivo, lingüístico e simbólico.
É, então, contra a fixidez lingüística que o poeta voltará seu arsenal de recursos formais. A vontade dele é desautomatizar a fala social e o discurso da propaganda. Para tanto, valer-se-á da técnica da paródia e da apropriação, bem como da bricolagem dos objetos, signos e marcas da cultura de massa.
A reinvenção expressiva na poesia de Armando, o novo começo lingüístico e perceptivo a que se propõe significa produzir fissuras e dissonâncias no interior do tecido simbólico do horizonte propagandístico dos objetos de consumo da cultura de massa. Isso se dá, pois o objetivo do poeta é superar o drama da realidade inexprimível pela palavra e conferir à poesia caráter transformador, que não se deixa apanhar fácil por qualquer teoria poética ou discurso social. Por isso, Armando, poeta altamente construtivo, um “reescritor, com lápis de dentro” (p.35), tal qual se define, reescreve, continuamente, tudo que pode embotar os sentidos e a linguagem humana; em suma, o construtor torna-se também desconstrutor, o formador, um deformador, arrasador de signos e frases feitas.
Essa desconstrução das frases feitas dá-se, na poética freitasiana, pela paródia, pois ela contesta e desloca, promovendo uma ruptura ou descontinuidade em relação a discursos que ora se encontram em repouso. A paródia, portanto, estabelece o conflito no interior dos gêneros discursivos e da fala social, cristalizados pelos jargões lingüísticos e chavões populares. A paródia imprime outra fala no circuito das vozes tradicionais que predomina no universo comunicacional dos indivíduos, propagando, portanto, um contra-estilo a serviço de uma contra-ideologia. Nesse sentido, para Affonso Romano de Sant’Anna (1998): “assumindo uma atitude contra-ideológica, na faixa do contra-estilo, a paródia foge ao jogo de espelhos denunciando o próprio jogo e colocando as coisas fora de seu lugar ‘certo’” (p.29).
Assim, no quinto fragmento de longa vida, a famosa e tão repetida frase feita “quem viver verá” transforma-se em “quem escreviver verá” e o “quem espera sempre alcança” vira “quem escreve sempre alcança” (p.300 e 301). Mais à frente, “o engolir sapos” é também engolir “poemas e sopapos”, e a disputa por um “lugar ao sol” acirra-se de tal maneira que já não é mais “ao sol”, mas “o lugar do sol” (p.310). Nesse sentido, o “Subir a escada do sucesso” é desconstruído de tal forma que se converte no “descendo-subindo ou o contrário/ a escada rolante/ a escalada, o escândalo/ do sucesso/ até conseguir/ o crime perfeito” (p.310), descortinando, portanto, com ironia e humor, os tipos de ideologia e de relações sociais escondidos por detrás desses chavões e ditados que orientam, no âmbito do senso comum, a vida em sociedade, pois o desejo do poeta, em sua incursão inventiva pela fala social, é “melhor despir os nus de todos nós” (p.330).
Por fim, “amor com amor se paga” transforma-se em “amor com amor se pega” até chegar ao máximo de sua desconstrução irônica e paródica em “amor com amor se pica” (p.320 e 330). O ditado, então, oriundo de uma fala comum sentimental, ganha novos contornos significativos, de humor e de erotismo fálico, o que lembra os poemas satírico-eróticos de Gregório de Matos .
Além da paródia, o poeta vale-se também da apropriação, na sua tentativa de reinvenção sígnica e simbólica do mundo contemporâneo. Segundo Affonso Romano de Sant’Anna (1998) a técnica da apropriação
Identifica-se com a colagem: a reunião de materiais diversos encontráveis no cotidiano para a confecção de um objeto artístico. Ela já existia nos ready-made de Marcel Duchamp, que consistia em apropriar-se de objetos produzidos pela indústria e expô-los em museus ou galerias, como se fossem objetos artísticos (p.43).

Desse modo, poder-se-ia falar de dois tipos básicos de apropriação: a de primeiro e a de segundo graus. Na apropriação de primeiro grau, segundo Affonso Romano, “é o próprio objeto que entra em cena”; já na de segundo grau, “ele é representado, traduzido para um outro código”. Esse último tipo de apropriação, ele exemplifica com as latas de sopa Campbell pintadas por Andy Wahrol. Com relação à apropriação de primeiro grau, ele cita Daniel Spoerri em seu “Quadro armadilha”, em que pega diversos objetos cotidianos e os cola sob determinada superfície (p.44 e 45).
Em vista desses conceitos, verifica-se que Armando praticaria a apropriação de segundo grau, uma vez que opera uma tradução para outro código: o lingüístico-poético. Ocorre, no entanto, que, na poesia, a apropriação não se dá de modo literal ou através da representação visual como na pintura de Wahrol. Ela é concretizada através da linguagem, ou seja, o suporte é a palavra. No caso de Armando, por exemplo, ele toma o produto por sua marca ou logotipo, assim não é um pedaço do pão de forma de marca Plus Vita que ele come, mas, simplesmente, um pedaço de Plus Vita. Do mesmo modo, não é um copo de leite da marca Longa Vida ou CCPL que ele bebe, mas tão-só um copo de Longa Vida ou CCPL. Assim, mais do que os objetos em si, são as marcas registradas que entram no jogo da apropriação da linguagem poética, por meio da metonímia.
Segundo Affonso Romano (1998), o artista que se vale da técnica da apropriação, para compor sua obra, tem um claro propósito não só estético, mas, sobretudo, político, que é o de “contestar o conceito de propriedade dos textos e objetos” (p.46). Ou seja:
Desvincula-se um texto-objeto de seus sujeitos anteriores, sujeitando-o a uma nova leitura. Se o autor da paródia é um estilizador desrespeitoso, o da apropriação é o parodiador que chegou ao seu paroxismo (p.46).

O caráter político e também histórico da paródia, na conjuntura da arte contemporânea, já é anotado por Linda Hutcheon (1987) em seu célebre estudo sobre a poética do Pós-modernismo:
Mas quero afirmar que é exatamente a paródia – esse formalismo aparentemente introvertido – que provoca, de forma paradoxal, uma confrontação direta com o problema da relação do estético com o mundo de significação exterior a si mesmo, com um mundo discursivo de sistemas semânticos socialmente definidos (o passado e o presente) – em outras palavras, com o político e o histórico (p.42).

Para Huchteon, o problema da relação entre o estético e o mundo exterior “dos sistemas semânticos socialmente definidos” dá-se por meio da paródia no contexto pós-moderno. É ela que provoca a confrontação da arte com o político e o histórico. Formalismo que, segundo a estudiosa, não se confunde com “canabilização aleatória”, ou seja, com o pastiche (p.47). Mais do que reunião ou ajuntamento neutro e inexpressivo de elementos do passado e presente da arte, bem como de objetos da cultura de massa, a arte contemporânea caracterizar-se-ia pelo “discurso auto-reflexivo (...) inextricavelmente preso ao discurso social” (p.58). Para Hutcheon, “o formalismo paródico – ainda mais auto-reflexivo – do pós-modernismo revela que é a arte como discurso que se vincula intimamente aos âmbitos político e social (p.58)”. Daí, o caráter de crítica ideológica da paródia e sua capacidade de construir um retrato industrial de seu tempo, como nos afirma Affonso Romano de Sant’Anna.
É, exatamente, um retrato político e industrial de seu tempo que Armando intenta em longa vida, valendo-se das técnicas da paródia e da apropriação, no sentido de confrontar o estético e, em última análise, o próprio indivíduo “com o mundo de significação exterior a si mesmo, com um mundo discursivo de sistemas socialmente definidos”, conforme teorizado por Hutcheon.
Deve-se apontar, ainda, que a paródia e a apropriação favorecem a atividade do bricoleur. Nesse sentido, devido ao caráter político e ideológico de ambas as técnicas de composição artística, a bricolagem não é acrítica, realizada com materiais escolhidos ao acaso, visando ao pastiche neutro e inexpressivo do que é apropriado ou parodiado. Pelo contrário, tal seleção é extremamente criteriosa, visando à descontrução reflexiva de diversos discursos e signos sociais da cultura de massa, não se confundindo, portanto, com a mera canibalização aleatória. O que Armando faz, por exemplo, é bricolagem da fala social e dos produtos e signos da cultura de massa, no sentido de estabelecer nova relação da arte e dos sujeitos com o que é bricolado, além de trazer, à tona do tecido social, a crítica à ideologia de seu tempo e ao contexto midiático e industrial em que arte e indivíduos inserem-se. Nesse sentido, podemos afirmar que Armando é um poeta pop.
Em outras palavras, ele apropria-se de determinados signos e objetos da cultura de massa e os desestabiliza, no interior do próprio sistema de produção e consumo, de modo que os indivíduos passam a tê-los “re-apresentados na sua estranhidade” (Sant’Anna, 1998, p.45), algo que, em tese, instaura nos sujeitos novos circuitos de significação e relacionamento com esses mesmos produtos. Armando empreende tal tarefa, a fim de mostrar, aos leitores, o drama do homem contemporâneo à procura de prazer e transcendência em objetos que, no máximo, podem oferecer-lhe transitória ilusão de saúde e perenidade:

Mesmo que a vida dure
apenas uma hora
eu como
um pedaço de Plus Vita.
Mesmo que dure
menos
eu bebo
meu copo de Longa Vida;
mesmo que o coração
possa morrer
em 2000 – CCPL
(cuidado coração parando lentamente)
ou no próximo segundo
dentro do peito
longa
continua a ser – sempre –
a vida
sob telhados
e espaçonaves de Eternit (p. 317).

Enfim, Armando intenta demonstrar que a cultura de massa e urbana artificializa as relações sociais e o próprio entendimento que o indivíduo tem de si mesmo e do estar-no-mundo. Em última instância, para o poeta deve-se ter “a boca livre de lembranças” (p.395), no intuito de se alcançar o grau zero da língua. Só, então, depois dessa depuração sensório-lingüística, que o poeta sente-se em condições de lançar novo olhar para o mundo e seus símbolos, combinando e reinventando os signos e discursos sociais, dentre o estoque de possibilidades semânticas e sintáticas que a língua lhe oferece. Como dissemos, o que Armando propõe é um novo começo de arranque em direção à realidade, ao corpo e a si mesmo.

*

Com os sentidos depurados, o poeta consegue, então, provocar em sua poesia efeitos perceptivos apuradíssimos que traduzem obra desejosa de registrar as minúcias da realidade. Com isso, Armando constrói a estética da não-incolumidade e do vertiginoso em que tudo, desde experiências sensórias a objetos, atinge e atravessa-lhe o corpo e a subjetividade, tornando-os depositários de inúmeras sensações provocadas pelo contato intenso com objetos e outros sujeitos.
O sensorialismo torna-se, portanto, marca principal dessa poesia dos sentidos e do vertiginoso. Os sentidos passam a ser descritos como sentinelas que não permitem que o pensamento assuma o controle. Depreende-se disso que há, nos poemas de Armando, a recusa recorrente ao cerebralismo, a uma vida-poesia feita apenas de intelectualismos assépticos, que abdique do imundo, do que chama de “cara a cara com a cara / de sua voz” no poema “Trans” (p.546). Há neles, sempre, a predominância do sensório e do corporal, do gosto, do tato, de saliva, sêmen, hálito e suor - “o peso do cheiro do corpo” de “No quarto final” (p.547); em suma, das excreções e secreções corporais. Assim, são os sentidos que protegem a poesia das sensações contra o domínio do pensamento, ou seja, contra racionalidade que impediria o contato sensorial e vertiginoso do sujeito com a realidade circundante.
O poeta passa, então, a estabelecer identidade com o residual. Assim, não só os sentidos, mas também a memória torna-se elemento de capital importância na construção da poesia freitasiana, pois a reminiscência liga o sujeito poético a objetos que já não conservam sua integridade física. Ela torna-se causa não só do aguçamento perceptivo e do apuro estético, mas também de verdadeira fusão entre sujeito e objeto.
Assim, tais fatores geram na poesia de Armando a estética da não-incolumidade e do vertiginoso, responsável pela reunião de restos e sobras de objetos e sensações que não deixam que o sujeito poético se passe mais “a limpo, incólume” (p.438). Tudo o que sobra e sobrevive, através da memória sensorial e da linguagem poética, não morre, nunca se dissipa totalmente e se transforma em parte integrante do ser: “O que sobrou é sombra minha para sempre/ manto que não morre, atrás/ e dói, arrastado/ sem se afastar” (p.438).
Percebe-se, assim, que tal obra revela a permanência do que não conservou integridade nos objetos e vidas do quotidiano, do que o poeta chama de “sombra minha para sempre/ manto que não morre” (p.438). Essa precária conservação do sobrante torna-se, portanto, responsável pelo surgimento de comunhão ou profunda cumplicidade entre os entes. Tal cumplicidade é fruto da fusão sujeito-objeto que fragmenta a subjetividade e o corpo humanos e os faz estabelecer relação de identidade com o residual. Cabe ressaltar, entretanto, que a fragmentação do sujeito, no instante da constituição da identidade deste com os objetos e o sobrante, produz, paradoxalmente, uma totalidade fragmentária sujeito-objeto a qual, na concretude da realidade dos entes, é, essencialmente, objectual e fruto da identidade entre as coisas, servindo de suporte a todo o conjunto de seres, lembranças e sensações.
A memória sensorial nasce, portanto, como recurso perceptivo-lingüístico que atesta o movimento e a precariedade dos seres e dos objetos, bem como a certeza individual da morte. Tal fato gera, estética e ontologicamente, a necessidade de eleição de parâmetros poéticos para abordagem do ser e do mundo circundantes. Armando empreende tal tarefa e aponta no cânone suas referências poéticas.
O poeta comunica-nos a “receita de rigor: Valéry-Cabral” (p.387 e 388), receita que ele diz tomar em overdose na veia. A princípio, verifica-se que ela serve tanto para o sujeito manter a compostura psicológica e corporal: “para não perder a cabeça/ nem despentear o cabelo”, quanto “para sumir solene, dopado/ composto, com missa/ de corpo presente, sem saber/ a minha causa mortis” (p.387 e 388). Isso significa que a linguagem poética tem por função, na obra de Armando, manter a mínima integridade física e psíquica do sujeito poético, ou seja, a preservação do indivíduo, embora cindido como se nota em longa vida (p.301 a 303). Nesse sentido, a expressão poética torna-se tábua de salvação do ser, pois, para ele, escrever é viver, o que corrobora com as seguintes palavras de Viviana Bosi (2003):
Em Armando, encontramos os dois movimentos essenciais ao trapezista: o pulo e a procura do tempo exato. Na sua poesia (...), a primeira qualidade – do risco – parece predominar. Uma urgência aflora, como se escrever fosse questão de sobrevivência, num arranque para a vida (grifo nosso) (p.11).

Ocorre que a mesma receita convém, outrossim, para o poeta “sumir solene” (p.388), o que significa que ela vale tanto à preservação do sujeito quanto à desintegração poética de um eu fragmentado. A forma lingüístico-poética tem, portanto, a dupla função de preservação da ordem e de desestabilização da mesma, ou seja, a linguagem é tanto tábua de salvação, num ambiente varrido e sem memória, quanto aquela que comunica a própria provisoriedade e vertiginosidade dos seres e objetos que compõem o mundo e se incorporam ao corpo do sujeito poético.
Vale dizer ainda que, esteticamente, a receita de rigor Valéry-Cabral não será seguida, fielmente, pelo poeta no decorrer de sua obra, pois a consciência do mundo em permanente transformação, de objetos e seres que se realizam sob o signo do provisório, não deixa que o faça. Ademais, segundo as palavras de Eduardo Coelho (2006), “o estilo valéryano-cabralino parece ser para Armando alvo fácil pela fixidez” (p.171), e o que o poeta procura é exatamente o contrário, na tentativa de compreensão e desafio ao mundo.
Não por acaso, quanto a isso, que certas regras de composição poética do estilo Valéry-Cabral são postas em discussão logo no primeiro livro de Armando - Palavra. No poema “Projeto” (p.109 e 110), são apresentadas ao leitor duas formas de composição que, a despeito de alguns pontos importantes de contato, operam em espaços diferentes e se utilizam de técnicas de composição também diversas. Referimo-nos às metáforas do jardineiro e do engenheiro. Segundo o poeta, os dois são ligados “por linha e rima” (p.109), ou seja, trabalham sobre uma planta. No entanto, apesar dos pontos em comum entre ambos, o engenheiro tem sua planta milimetrada, definida nos mínimos detalhes, ao passo que o jardineiro a deixa largada, indicando o rigor cabralino em oposição a estilo mais livre e não tão metódico. Há que se observar, outrossim, que a planta do jardineiro é traçada no mormaço, evidenciando contato telúrico e instintivo com a realidade, ao contrário da do engenheiro, que é mediada pela razão e pelo cálculo.
A metáfora do jardineiro, através de seus instrumentos de trabalho, como a tesoura de jardim e o facão de mato, revela composição poética que imprime marcas indeléveis no poema, o qual ganha forma através da palavra-instante, da palavra-febril e da palavra cega, bruta, fruto do corte conectivo brusco, de vocabulário repleto de abreviações e de estrutura sintático-frasal que resiste à leitura fluida, tornando-se, essencialmente, antidiscursiva e antiestética.
É, portanto, a ética dos alicates e facões que rege o labor poético freitasiano. Uma poesia feita de corte, mas não do corte preciso, da incisão de bisturi, por exemplo, mas sim do talhe severo, brusco, fruto de uma sintaxe nada convencional, realizada sem a mediação clara de preposições, conectivos ou pontuação, pois o encadeamento sintático, na poesia de Armando, constrói-se de modo muito mais instintivo do que lógico ou racional. Ela é feita de premência e aflição, da “letra selvagem que não se agüenta na linha” (p.488).
Tal ética encontra-se, intimamente, ligada à estética da não-incolumidade que revela o desejo do poeta de não deixar passar nada. Ele sempre devolve, através do tiro da escrita, a marca que sua subjetividade sofreu no devir de todos os objetos e seres, unidos pela cumplicidade que vem da certeza de que tudo é finito. Tal fato gera profunda consciência não só da irremediabilidade da morte, mas também da História que liga o sujeito a todos os outros na roda dos eventos humanos: “Sim, sou culpado/ até da morte de Gardel!/ Lua e pulso./ A árvore canta no ar/ parada” (p.453).
Assim, na árdua empresa de resistir à lei fatal dos dias - a morte -, a linguagem poética, para Armando, adquire importância capital, pois ela se torna tábua de salvação ou, ainda, válvula de escape que o ajuda a evitar o pulo do trampolim, do despenhadeiro: “as letras já me salvaram/do despenhadeiro: SOS XPTO R.S.V.P./Passeio completo etc” (p.369). Em suma, a linguagem evita, ainda que temporariamente, o incendiar-se de corpo lenhoso e idôneo ao fogo:

Feito a machado
a partir de um cepo
de um tronco, tão tosco
este corpo que todas as manhãs
desperta, estala e treme
a luz que espreita
a lenha que o fez
e que pára – à beira do fogo
e mais uma vez adia
sine die, o incêndio (p.375).

Ela torna-se, sobretudo, campo de batalha entre o novo e o conservador ou entre a tradição e a ruptura. Por isso, o poeta opõe os “dinossauros-dicionários” (p. 373 e 374), que é a palavra fossilizada ou estável no interior de dado sistema lingüístico, com usos e circunstâncias comunicacionais bem delimitados, aos “verbetes-balas” (p.373 e 374) que representam a palavra desestabilizadora, responsável por rupturas (síncopes) e ruídos (lapsos) na linguagem quotidiana. Em suma, os verbetes-balas são a metáfora para a palavra-instante, em torno da qual se configurará a trama poética freitasiana, elegendo o corpo como signo principal de desestabilização da ordem social vigente:

Ai que dor
cabe
num haicai!
Os dinossauros-dicionários
desabam
entre a sintaxe e a síntese
fulminados
pelo sentido exato
dos verbetes-bala:
silepse, lapso e síncope (p.373 e 374).

Portanto, em linguagem ardorosamente construída, o eu-lírico sobrevive “sine die” (p.375). Tal linguagem veicula uma estética do vertiginoso e do fulminante que desorienta as convencionalidades lingüísticas da sintaxe tradicional e a fixidez semântica da língua dicionarizada.


REFERÊNCIAS:

BASTOS, Dau. Papos Contemporâneos 1. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras/ Centro de Letras e Artes da UFRJ, 2007.

BOSI, Viviana. “Objeto urgente”. In: Máquina de Escrever. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003.

COELHO, Eduardo. “A peste de Hamlet”. In: Poesia Sempre. Rio de Janeiro: ano 13, n. 22, janeiro/ março 2006.

FREITAS FILHO, Armando. Máquina de Escrever - Poesia Reunida e Revista. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003.

HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-modernismo. Rio de Janeiro: Imago, 1987.

SANT’ANNA, Affonso Romano. Paródia, Paráfrase & CIA. São Paulo: Ática, 1998.



RESUMO:
O presente ensaio tem por objetivo identificar as técnicas utilizadas por Armando Freitas Filho no processo de desconstrução da fala social e de reinvenção sígnica e sensorial da linguagem e do mundo circundante. Para tanto, identificaremos não só os recursos formais e técnicas lingüísticas, mas também as principais imagens e metáforas, empregadas pelo poeta, que evidenciam uma ética artística e um modo de ele encarar e se relacionar com o mundo dos signos, objetos e marcas da cultura de massa.
Palavra-chave: Armando Freitas Filho, técnicas lingüísticas, reinvenção sígnica e sensorial.

ABSTRACT:
The present essay has for objective to identify the used techniques by Armando Freitas Filho in the process of desconstrution of the social speech and of signical and sensory reinvention of the language and of the surrounding world. For so much, we will identify not only the formal resources and linguistic techniques, but also main images and metaphors, employed by the poet, which show up an artistic ethics and his way to face and to be connected with the world of the signs, objects and marks of the culture of mass.
Key-word: Armando Freitas Filho, linguistic techniques, signical and sensory reinvention.