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Re: A Música que nos inspira p/ HC
Administrador
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2/10/2021 14:11
Mensagens: 422
.
Agora tocaste num ponto sensível para mim, miss Horroris.
"O Estranho Mundo de Jack" é um dos meus filmes preferidos de todos os tempos.
Passados tantos anos, a animação continua a ser deslumbrante, o argumento brilhante e a banda sonora de cantar do início ao fim.
Fica aqui a minha canção preferida, de que tentei fazer uma tradução, que fica a milhas do original, mas...

JACK
Escutem todos!
Vou falar da cidade do Natal.
É um lugar peculiar,
tão difícil de encontrar,
tudo à volta me fascina e me tortura.
Um universo incomum,
como nunca vi nenhum
e, apesar de eu querer,
não consigo descrever
este sonho, esta aventura.
No entanto, meus amigos,
acreditem, é real,
mais verdade que os meus ossos,
este mundo excepcional.
Ouçam, vou explicar.
Esta coisa esquisita é um presente.
No início é apenas um embrulho.

DIABO
Um embrulho?

BRUXA
Tem feitiços?

DIABO
Faz barulho?

BRUXA
Tem lá dentro um pedregulho?

DIABO
Essa é boa, um pedregulho.

JACK
Por favor!
É um embrulho simples, colorido,
por cima tem uma espécie de laço.

DIABO
Um laço? Porquê?

BRUXA
O que há lá dentro, não se pode saber?

JACK
É essa a ideia, surpreender.

DIABO
É um rato.

BRUXA
É um morcego.

DIABO
É um cacto.

BRUXA
É um prego.

DIABO
É um sapato.

BRUXA
É um nó cego.

JACK

Ouçam, vocês perceberam tudo mal.
Não é para isso que existe o Natal.
Prestem atenção.
Vamos buscar uma meia
e penduramos assim, na lareira.

DIABO
Porque não a perna inteira?

BRUXA
Um calhau.

DIABO
Uma ratoeira.

JACK
Mau, mau. Escutem.
Não há pé nem perna, só doces,
às vezes um pequeno brinquedo.

DIABO
Brinquedo?

BRUXA
Ele ferra?

DIABO
Mete medo?

BRUXA
Ele berra?

DIABO
É um torpedo.

BRUXA
Talvez um segredo,
uma cabeça ou um dedo...

DIABO
Que ideia tão gira!
O Natal é espectacular!
Estamos de acordo,
temos que experimentar!

JACK
Calma, esperem um instante!
Não estão a perceber
o que é mais importante.
(Bem, vou dar-lhes o que eles tanto desejam...)
O melhor, vou-vos contar,
eu guardei para o final.
É que o rei da Cidade do Natal
tem voz grave, de estremecer,
foi assim que ouvi dizer.
Tenho medo, até gaguejo,
parece mesmo um caranguejo,
enorme e avermelhado.
Quando está para atacar
veste o trajo encarnado,
pega o saco, toca a andar,
assim dizem em todo o lado.
Numa noite sem luar,
tão escura como breu
atravessa o nevoeiro
como um abutre pelo céu.
E o seu nome é "Pai Mortal".
(Criei entusiasmo
com esta declaração.
Só é pena não sentirem
o Natal no coração).

Porque é Halloween sempre que o Homem quiser...

Criado em: 31/10/2023 19:44
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Re: A Música que nos inspira p/ Jorge
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2/10/2021 14:11
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Tenho um primo numa banda de que talvez gostes, Jorge.
Chamam-se Godiva e, ao que parece, têm feito algum sucesso aqui e lá fora. Não é a minha onda, mas reconheço-lhes a qualidade da produção musical e de vídeo. Fica aqui a sugestão:

Criado em: 31/10/2023 19:35
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Re: A Música que nos inspira
Administrador
Membro desde:
2/10/2021 14:11
Mensagens: 422
.
Mais que perfeito só o Tom :)

Criado em: 30/10/2023 20:31
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Re: A Música que nos inspira p/ HC
Administrador
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2/10/2021 14:11
Mensagens: 422
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Bem lembrado, o cante alentejano também dá essa sensação de duas notas simultâneas pela mesma voz.

Quanto ao virtuosismo, embirro com canções muito perfeitinhas.
Há vozes que me impressionam, mesmo sem terem muita técnica -- um pouco como acontece com a poesia.

Uma dessas vozes é a do Mark Eitzel, nesta canção cuja letra tem um dos melhores inícios que conheço:


Criado em: 30/10/2023 15:49
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Re: A Música que nos inspira
Administrador
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2/10/2021 14:11
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Às vezes, o YouTube tem sugestões inesperadas.
Quando dei conta, estava a ouvir canto polifónico de uma cantora que consegue produzir duas notas ao mesmo tempo.
Virtuosismo à parte, a canção vale por si.



Criado em: 23/10/2023 18:20
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Comentário a "rostos do oeste" p/ R. Beça e HC
Administrador
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2/10/2021 14:11
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Muito obrigado, caros amigos, pelo entusiasmo com que acolheram o meu texto. É uma honra e um prazer ter leitores assim.
Abraços.

Criado em: 9/10/2023 18:46
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Comentário a "Sinapse do Desencanto", de Aline Lima
Administrador
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2/10/2021 14:11
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Link para o texto original

"Sinapse do Desencanto", de Aline Lima

Do bem e do mal despertaram os meus desencantos.
Na escuridão do mundo vejo fantasmas,
demônios e santos.
Desalento em descrente oração.

Saudade descabida do não ser, do que não foi,
da palavra nunca dita.
É sempre noite no meu coração.

Obscuridade do viver sem vida,
quando quem deveria ficar
deixa-se morrer em despedida,
rostos vazios na multidão.

Existência de rastros
com os olhos rendidos ao chão,
sonhando com os astros,
mediocridade por devoção.

Portas fechadas, entrada somente para raros,
beco sem saída, pensamentos fora do fluxo,
sinapse em desconexão.
Alma se desmanchando por aí perdida,
sem nada de mim, solidão...

-----------------------------

Percurso de leitura nº 21 (se quiser conhecer os anteriores, fica aqui o link)

A escolha deste poema deve-se a uma casualidade, como é hábito acontecer e como costumo confidenciar a quem vai lendo estes comentários. O mês em que nos encontramos (Outubro) é marcado todos os anos pela atribuição dos prémios Nobel. Foi isso que me fez lembrar deste texto de Aline Lima que, na altura em que o li pela primeira vez, achei muito interessante. Todavia, o que poderá surpreender é que me lembrei dele não por causa do Nobel da Literatura, mas do da Medicina.

Há precisamente 60 anos, em 1963, o neurofisiologista John Eccles foi laureado com este prémio por ser um dos pioneiros no estudo das sinapses. Elson Montagno, num texto de homenagem a Eccles, explica o fenómeno de uma forma muito acessível:

"A sinapse é uma microscópica fenda altamente especializada da comunicação entre células nervosas, que transmitem impulsos ao longo de suas fibras. Substâncias químicas neurotransmissores deixam a membrana pré-sináptica da célula levando o impulso de energia-informação. […] Por exemplo, ao sair da medula espinhal, o impulso para flexionar o dedo tem que chegar ao nervo que vai até o músculo que, ao se contrair, efetua a flexão do dedo. É a sinapse que conecta a célula nervosa da medula com a célula nervosa do nervo que vai até o dedo. A sinapse é uma dentre a miríade de elementos e estruturas existentes entre a consciência de querer mover o dedo e a memória de como fazê-lo, utilizando bilhões de células nervosas e trilhões de sinapses." (1)

Assim sendo, a sinapse constitui uma metáfora em potência, riquíssima em termos interpretativos. Conjuga em si as ideias de comunicação, de impulso, de espontaneidade, de algo que une o desejo à ação, a imobilidade ao movimento, o presente à memória.

O título do poema associa a sinapse ao desencanto. E o que é o desencanto? Diríamos que se trata de uma especial forma de tristeza, que nasce da expectativa e do sonho quando se transformam em desilusão, concretizada numa sensação de amargura e de perda interior. Assim sendo, o título parece conter uma expressão algo contraditória. Considerando aquilo que se quer e aquilo que se atinge, temos por um lado a fusão proporcionada pela sinapse, por outro a cisão sentida no interior do "eu", dececionado com a perda que sofreu. Tendo esta tensão de ideias em mente, vamos ao encontro do poema para tentar compreendê-la melhor.

A primeira conclusão, numa leitura transversal, é que a metáfora da sinapse é guardada para a parte final do poema. A maior parte do texto será — para usar um termo caro à medicina — uma espécie de "anatomia" do desencanto.

Os "desencantos" aparecem no plural, sinal óbvio de que o desapontamento do sujeito poético é uma experiência que ocorreu várias vezes, é algo que conhece bem. O universo metafórico escolhido na primeira estrofe para retratar este sentimento é o da religião. Aos dilemas do "bem" e do "mal", dos "demônios" e dos "santos", o eu responde com o oxímoro da "descrente oração".

Essa oração é acompanhada pelo "desalento", um sentimento que, muitas vezes, se toma como sinónimo de desencanto, mas que etimologicamente traz-nos uma carga negativa acrescida, de falta de ânimo, de cansaço físico e psicológico: vem do verbo latino "anhelitare", frequentativo de "anhelare", que significava "respirar" (daí vem, por exemplo, a nossa palavra "hálito"). Essa "falta de ar" remete-nos para o risco em que se encontra a sobrevivência física ou interior, emocional e até moral, como veremos mais à frente. Todavia, também pode sugerir as sensações de constrição e de clausura interior, que experimentamos ao longo do poema.

Do desencanto à saudade, na segunda estrofe, vai um passo: sente-se aqui o ambiente malsão da falta de algo que não ocorreu (daí ser "descabida"), de algo que nem sequer pode ser verbalizado. A este propósito, recorro uma segunda vez à etimologia (e será a última para não me tornar ainda mais aborrecido). "Desencanto" nasce pela negação da palavra latina "incantare", que se forma com o prefixo "in-" (a preposição "em" português) justaposta a "cantare", com o sentido de "produzir um discurso atraente" (conhecemos bem esta aceção, por exemplo, no épico de Camões). Com o tempo, passou a designar as ideias de "encantar, seduzir". Assim se percebe, a angústia do sujeito poético, despojado do seu bem mais precioso — a palavra que enfeitiça, que envolve e fascina.

Recordo novamente o que disse relativamente à primeira estrofe: a ideia do desalento como um sentimento que põe em risco a sobrevivência, inclusivamente a moral. Na quarta estrofe, encontro a concretização dessa ideia: a dignidade do eu é completamente destruída pela desilusão, adotando uma "existência de rastros", de rendição no olhar, já que os "astros" estão longe, apenas ao alcance dos sonhos. A expressão "mediocridade por devoção" é a síntese perfeita desse estado de espírito, em que o sujeito poético se abandona num ritual absurdo à mediania, a ser mais um dos "rostos vazios na multidão" (como se diz na terceira estrofe), solitário, submisso, nulo perante a força do destino.

Chegámos à última estrofe e regressamos ao início, à sinapse do título. O intervalo que separa e, ao mesmo tempo, une. O espaço imóvel que permite o movimento. A ligação, sobretudo. Ao chegarmos ao final, a sinapse é negada na sua natureza: temos "portas fechadas", um "beco sem saída", as metáforas apontando o sentido de prisão, de asfixia, de impedimento. A "alma" em "desconexão" desfaz-se lentamente — o gerúndio confere essa ideia de algo em andamento, que não se pode interromper, a que o eu é obrigado a assistir como uma punição que parece não compreender. Repare-se também na expressão adverbial "por aí", que traduz com subtileza a apatia e desistência perante a perda — um pouco à semelhança da terceira estrofe quando, instado pelo dever de "ficar", de evitar um "viver sem vida", escuta-se a resposta mais terrível: "deixa-se morrer", a abdicação completa, a atração pela auto-destruição.

Em suma, estamos perante um retrato elegíaco muito bem feito, construindo um ambiente melancólico delicado e profundo que toca em aspetos que — para muitos de nós que já tiveram de se confrontar com os labirintos do desencanto — são particularmente difíceis emotivamente, mas poeticamente muito vívidos e merecedores de atenção.

(1) https://cerebromente.org.br/n01/elson/elson3.htm

Criado em: 4/10/2023 21:10
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O Poema Perfeito p/ HC e GabrielaM
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2/10/2021 14:11
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Graças à HorrorisCausa e à GabrielaMaria, encontrei as duas características que me faltavam na lista :)

1) Desassossego e procura -- A poesia é o lugar privilegiado para os insatisfeitos com os limites da realidade e da linguagem, que andam em busca de algo que não sabem exatamente o que é. O poema é o mapa desse vaguear.

2) Transformação interior -- Ao transformar a realidade e a linguagem, o poeta transforma-se a si mesmo. A busca de novas soluções é a busca de um si-mesmo novo. Os meus poemas preferidos são aqueles em que se nota essa mudança.

Obrigado às duas pelos comentários (no caso da Gabriela, agradeço duas vezes por causa do texto que deixou na sua página).

Criado em: 6/9/2023 8:13
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Re: O Poema Perfeito
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2/10/2021 14:11
Mensagens: 422
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Já agora: se quiserem tirar uma hora da vossa vida para ouvirem falar de poesia, um dos meus poetas preferidos, chamado João Luís Barreto Guimarães, esteve há dias na "Grande Entrevista" da RTP (está disponível na RTP Play):

https://www.rtp.pt/play/p11147/grande-entrevista

Ouçam o que ele diz sobre a surpresa na poesia, sobre a sua sonoridade, sobre a forma como se condensam as ideias nesta forma de escrita, sobre a inspiração etc.

E ouçam o longo silêncio deste poeta quando lhe perguntam se é preciso aprender a ler poesia...


Criado em: 2/9/2023 22:15
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O Poema Perfeito
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2/10/2021 14:11
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Sendo o meu vigésimo percurso de leitura (nunca pensei chegar tão longe!), achei que poderia assinalar a "efeméride" com algo um pouco diferente.
[Se quiser conhecer os anteriores, fica aqui o link]

O comentário de hoje parte de uma questão: o que é um "poema perfeito"? Não é necessário acrescentar a expressão "para mim", visto que que esta é, obviamente, uma pergunta tão subjetiva que cada um de nós terá juízos de valor divergentes sobre os textos que mais aprecia e sobre as razões dessa perspetiva.
Para quem conhece as minhas leituras neste espaço, não será difícil depreender os meus gostos, mas achei que valeria a pena sistematizar alguns dos aspetos que mais aprecio num poema, exemplificando com um texto que os reunisse.

Entre tantos poemas e poetas extraordinários, escolhi o texto de alguém de quem me sinto particularmente próximo, quer na construção poética, quer na área do comentário literário.
Chama-se Rogério Beça e até já houve mais do que um colega aqui do Luso a perguntar-me se eu seria um pseudónimo dele. Da primeira vez que aconteceu, fui apanhado de surpresa e confesso que fiquei um pouco incomodado — afinal de contas, todos desejamos ter uma identidade poética que se distinga das outras —, mas agora sinto essa associação como um elogio, atendendo à qualidade do seu trabalho, fonte permanente de prazer, de leitura e de aprendizagem.
A maioria dos poemas deste autor poderiam ter sido selecionados para este exercício, mas escolhi "a ex-mulher de Lot". Assim que o li pela primeira vez, logo me atraiu e, desde então, tenho feito a sua releitura várias vezes, levando-me a várias reflexões e descobertas. Passo a transcrevê-lo, mas, se desejarem ver o post original, basta clicar aqui.

"a ex-mulher de Lot", de Rogério Beça

Lavo as mãos e aponto o dedo,
indico,

prevejo a direcção.

Na lição do saco e do sustento
esqueço
o vento.

Sujo as mãos de sujo,
agarro,
esculpo
e desculpo;

sou um verde ma'duro Prometeu
amigado de águia, ou do condor.

Se olhar para trás
trazido pelo costume de olhar (vício maldito),
arribam os mesmos abismos,
singulares e circulares
e uma neoplasia:

subtraio das lágrimas
o sal.

Se tivesse de apontar a característica que, em primeiro lugar, mais me atrai num poema, penso que resumiria desta forma: não ser condescendente com o leitor. Não é a beleza, não é a mensagem, não é o virtuosismo… o primeiro fator de atração, para mim, é o desafio que o poeta nos coloca, que nos impede de ficarmos passivos perante o texto. É o facto de não nos explicar tudo e termos de ir à procura do sentido — dentro ou fora de nós.
Há um risco que se corre com textos destes, que o leitor se sinta ameaçado e desista, o que faz com que haja a tentação de o agradar facilitando o contacto com o desconhecido — esquecendo-se de que a falta de mistério perverte a natureza da poesia.

Por exemplo, o título do poema do Rogério tem uma referência a alguém em particular, chamada Lot. Um leitor indolente poderá não perder um minuto a procurar informação sobre a personagem, o que é pena.
Lot aparece na Bíblia, no Antigo Testamento, como alguém que conseguiu fugir do célebre desastre que se abateu sobre as cidades de Sodoma e Gomorra, até hoje conhecidas pela sua devassidão. Todavia, a mulher de Lot, no momento de retirada para as montanhas, desrespeitou um dos ditames divinos (não olhar para a cidade devastada), sendo castigada com a sua transformação numa estátua de sal.
Como título do poema, provoca no leitor uma grande curiosidade, que lhe dará certamente muito prazer enquanto faz perguntas a si próprio. De que tratará o poema? Do pecado e da devassidão? Da queda e da redenção? Da ousadia e do castigo?

O mesmo acontece com a figura de Prometeu, que surge na quinta estrofe. Este titã, segundo a mitologia grega, foi o responsável pela revelação do fogo aos homens, o que nos remete para os poderes que este ser possui e que o distinguem dos outros animais: a epifania da civilização, a intensidade dos sentimentos, as capacidades de construir e destruir…
No poema, o "eu" identifica-se com esta personagem, que luta pela criação (o termo grego "poiesis" tem precisamente esse sentido) e que acasala com a ave que o tortura (no mito original, Zeus castiga Prometeu, condenando-o ao suplício de uma águia que lhe dilacera as entranhas diariamente), dando a entender talvez o prazer das agruras que se sentem no momento do parto de um poema.

Nem sempre o mistério está relacionado com uma palavra isolada. Veja-se por exemplo o lavar das mãos no primeiro verso, que nos recorda o ritual purificador de muitas religiões, mas ao mesmo tempo o episódio bíblico de Pilatos, que se transformou na melhor representação do alijar de culpas quando se quer fugir à responsabilidade.
Neste poema, uma leitura do primeiro verso isoladamente parece referir-se a este segundo significado, mas a leitura dos versos restantes aponta para o rito de purificação — e é nesta indecisão de interpretação que se joga um dos prazeres da poesia.

Esta redução da informação ao mínimo, que cria ambiguidades e polissemias, é o segundo aspeto que aprecio num poema. Essa capacidade de intensificar o imaginário do sujeito poético num veículo linguístico condensado, que pode ser curtíssimo e aparentemente banal, como acontece por exemplo com os haicais. A arte da poesia é uma arte de depuração, em que se descarna o poema até ao tutano, até sobrar apenas o suficiente para permitir o devaneio do leitor.
O poema em análise é um bom exemplo disso: a sua curta dimensão articula-se com a imagem do "eu", concentrado no seu olhar enquanto meio privilegiado para acesso à realidade poética. Os nomes escolhidos para designar o universo em que se move são aparentemente simples, mas tão fortes que prescindem dos adjetivos, que têm um papel muito secundário no poema. A precisão é um dos segredos — como acontece no poema que, por exemplo, utiliza "águia" e "condor", em vez de simplesmente "ave" ou "pássaro".

A propósito do vocabulário, acrescento um terceiro aspeto, que é a necessidade de equilíbrio entre o invulgar e o que é simples ou comum. A riqueza do texto é importante, atrai-nos para a leitura, mas é preciso alguma contenção. Andar à cata de significados no dicionário ou na enciclopédia verso-sim-verso-sim, para além de cansativo, anestesia o efeito de surpresa no leitor, transformando o poema numa mera exibição de erudição. O mesmo em relação a termos que se tornaram lugares-comuns da poesia: palavras como "silêncio", "madrugada", "sonho", "violinos"… podem perder todo o seu fulgor se forem atiradas para os versos sem um contexto imprevisto que as reabilite e as "faça brilhar".
Por exemplo, no poema de Beça, as "lágrimas" deixam de ser uma mera marca de tristeza, a partir do momento em que se envolvem na extração de um dos seus elementos (o sal) e transformam-se em simples água, o elemento primordial mais forte neste poema.

O quarto aspeto que aprecio num poema está relacionado com outro tipo de equilíbrio, na representação de sentimentos. Todos sabemos que emoções fortes não são sinónimo de boa poesia. É aliás um dos maiores dramas do poeta — sentir intensamente algo e não conseguir transpor a sua experiência para as palavras. Uma coisa é certa: a solução raramente passa por uma poesia confessional. Nesse caso, enquanto leitor, posso até sentir respeito e empatia para com os dramas individuais do poeta, mas a experiência estética é praticamente nula.
O mesmo acontece com os poemas em que o "eu" se queixa de não conseguir, de estar aquém, de não ser um verdadeiro poeta... que normalmente são uma deixa para comentários de solidariedade. Pelo contrário, aprecio quem aceita as suas limitações e arrisca, como um chefe de cozinha que combina sensações doces, com ácidas e salgadas, lutando contra a mediocridade dos pratos de sabor intenso, mas enjoativos à primeira trincadela.
No poema do Rogério, há sentimentos fortes — contradições, desorientação, erros, arrependimento, amargura — mas esses sentimentos não nos são lançados à cara: são sugeridos, de forma subtil, por antíteses ("verde ma'duro"), por enumerações (toda a quarta estrofe), por símbolos ("neoplasia"), quer de forma séria, quer de forma sarcástica (como quando vitupera o "vício maldito" de "olhar").

Claro que alguns leitores se sentem melindrados por textos que não compreendem à primeira. Acham talvez que o autor está a ser propositadamente hermético para mostrar distanciação cultural em relação aos não iniciados em poesia. No meu caso, leio poesia não para compreender alguma coisa, mas para me desorientar, para me libertar da realidade convencional e vaguear por um mundo novo que desconheço. As sensações de estranhamento, de absurdo, de falta de lógica são o quinto aspeto da poesia que gostaria de salientar como algo que aprecio. O poema não é uma adivinha à espera de que eu descubra uma solução. A minha participação na criação é a de alguém que aceita que não há um sentido pré-existente no poema e que, por isso, não espera nada para além de se abandonar ao texto, ao jeito de um veraneante que flutua no mar enquanto isso lhe dá prazer, desfrutando do contacto da água na pele e contemplando os reflexos da luz nas ondas.
É por isso que, no poema de Rogério Beça, podem existir truísmos como "sujar as mãos de sujo" ou o "costume de olhar", que não nos impelem a "matar a charada", simplesmente nos transportam à autenticidade das coisas, na sua banalidade e redundância, como se voltássemos à infância, ao tempo da surpresa e descoberta constantes.

Este estranhamento puro que a poesia nos traz não quer dizer que os poemas sejam constituídos apenas por imagens aleatórias, justapostas umas às outras. Mesmo quando os versos nos são oferecidos não sabemos por quem (como dizia Daniel Faria), deve haver momentos de intervenção consciente do autor, caso contrário, o poema pode transformar-se numa espécie de papel de parede ou numa música de elevador, que são agradáveis e decorativos, nada mais. Tem de se sentir, no texto, um equilíbrio (novamente esta palavra) entre o consciente e o inconsciente, entre a espontaneidade e a lucidez — eis a sexta característica que é importante para mim num texto.
Um dos sinais desse equilíbrio é a existência daquilo a que chamamos a estrutura, ou seja, a forma como as ideias e as palavras se combinam entre si. Por exemplo, neste poema, não será por acaso que, a um momento inicial de limpeza que já referimos, se suceda o oposto, o sujar-se: à purificação e à antecipação inicial, segue-se a atividade caótica da criação, dominada pela dúvida e pelos erros. Se o título do poema apresenta uma figura transformada em sal, não será por acaso que o texto termina com essa palavra. Já agora, talvez não seja também coincidência que este elemento esteja presente no título daquela que é, para mim, a "magnum opus" de Eugénio de Andrade, "O sal da língua", sabendo eu que este é um dos escritores preferidos de Rogério Beça.

Sétima característica: ritmo e musicalidade. Não dou grande valor a poemas que apenas se podem chamar assim por causa da versificação, mas considero importante a sonoridade do texto. Há poetas que são virtuosos na técnica formal de construção poética, que se nota que estudaram e que têm a capacidade de utilizar os recursos que séculos de tradição nos legaram como herança. Estas competências não são inúteis, mas não me atraem só por si — até podem ser distrativas se não existirem em consonância com as ideias que veiculam. A métrica, a rima, as cesuras, as aliterações, os jogos de palavras, todos esses elementos, quando ao serviço de um corpo de significados, dão intensidade ao objeto-poema.
Em "a ex-mulher de Lot", escuto com prazer essa sonoridade, na alternância entre versos longos e outros curtos (às vezes só com um verbo), no jogo de palavras "esculpo" / "desculpo", no quiasmo de "olhar para trás" / "trazido pelo costume de olhar", nas assonâncias em "a", "u" e "i" etc.

Chego assim à última característica que valorizo em poesia. Ainda tentei que fossem dez, pela harmonia que este número implica, mas pareceu-me que seria forçado estar a acrescentar por acrescentar. Fico à espera de contributos para chegar a esse número :) Assim sendo, a oitava "regra" da poesia seria quebrar todas as regras. Não é uma ideia original minha e peço desculpa por não saber situar onde a li, apesar de ser fundamental para mim.
Não tenho fundamentalismos enquanto leitor, portanto, acontece frequentemente que encontro poemas em que uma ou mais destas características não existem e que, apesar disso, têm todo o poder encantatório que procuro neste tipo de textos. Talvez seja essa a primeira essência da poesia — o encantamento, esse abandono a algo que nos domina sem sabermos porquê.
O poeta Vasco Gato exprime isso tão bem: "se um poema não tomou de assalto um homem, das duas uma: ou não era um poema, ou não era um homem".

Criado em: 23/8/2023 17:16
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