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Re: A Música que nos inspira
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2/10/2021 14:11
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Acabei de ler "Pão de Açúcar", de Afonso Reis Cabral, um livro inspirado no triste episódio de Gisberta Salce Júnior, transexual assassinada em 2006 por um grupo de menores.
No final, o autor refere esta canção de homenagem, que foi composta por Pedro Abrunhosa, e interpretada pelo próprio e por Maria Bethânia:



"Trouxe pouco
Levo menos
A distância até ao fundo é tão pequena
No fundo, é tão pequena
A queda

E o amor é tão longe"

Criado em: 16/8/2023 9:48
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Re: Chat GPT
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2/10/2021 14:11
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As mensagens de Valdevinoxis e HorrorisCausa refletem sobre se as ferramentas de inteligência artificial são úteis e eficientes. Trata-se de questões muito interessantes, mas eu gostaria de trazer aqui uma outra ideia, talvez mais provocatória.

Parto da experiência do Valdevinoxis, referindo a forma educada e até humilde como um desses softwares, o ChatGPT, responde às nossas solicitações. Essa simulação de existência humana está sempre disponível para nos ajudar nas tarefas, para nos entreter e divertir, para nos aconselhar, para nos ensinar... E não é difícil admitirmos que, mais cedo do que tarde, ferramentas como esta ganhem corporalidade, aquilo que estamos habituados a ver, na ficção científica, como "androides". Teremos então algo que torna ainda mais perfeita a ilusão de uma presença humana.

A primeira questão que coloco é esta: A partir do momento em que existir a possibilidade de criar seres artificiais que respondem a todas as nossas necessidades e desejos, para que precisamos dos seres naturais, de carne e osso? Imaginemos que esta tecnologia se torna acessível ao comum dos mortais, que pode adquirir um androide como agora o faz com um telemóvel, de acordo com os seus gostos e interesses. Se cada um de nós pudesse escolher máquinas dessas, feitas à nossa medida para suprir as nossas carências e anseios, por que motivo racional haveríamos de optar por humanos cheios de imperfeições, indecisos, incoerentes, caprichosos, questionadores etc., etc.?

A segunda questão tem a ver com as implicações na forma como nos vemos a nós próprios, enquanto espécie: Que valor temos nós, na nossa natureza imperfeita, que faça com que tenhamos mais direito a existir do que estas máquinas? Há alguma base puramente racional para os humanos merecerem mais a existência do que os seres virtuais? Afinal de contas, nós temos uma natureza destrutiva que nos coloca num plano de inferioridade perante estas máquinas, que podem ser programadas para resolverem, de forma fria e lógica, desafios universais como, por exemplo, os problemas do ambiente. Estamos habituados a ver, no cinema, o mundo dominado pelas máquinas como um cenário apocalíptico. Mas será que o apocalipse não estará mais do nosso lado do que do lado de uma "inteligência artificial"?

É apenas uma provocação — não sou nenhum psicopata :)

Criado em: 13/8/2023 14:26
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Comentário a "Amor Alienígena", de ZeSilveiraDoBrasil
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2/10/2021 14:11
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"AMOR ALIENÍGENA", de ZESILVEIRADOBRASIL

abduzido, mas ainda sou teu,
ou não sei se ainda sou, eu...
meu corpo é éter, eternamente teu,
mesmo fractal, fatal...
sou tua presa, me lesas e tu ilesa;
invadiu-me, dominou-me, e evadiu-se...
fizeste com que as lágrimas não fossem mais
minhas,
prantos invisíveis...
dos meus risos não serem mais meus,
sons inaudíveis, sensações voláteis, insensíveis,
cores inodoras...
nuvens, névoas, pó;
verto-os e rio...
sonho sobrenatural,
porquanto, tu és domínio de mim
desacordado nesse amor alienígena.


-----------------------------

Percurso de leitura nº 19 (se quiser conhecer os anteriores, fica aqui o link)

Sempre tive inveja de quem consegue adaptar uma letra a uma melodia ou vice-versa. Já fiz várias experiências e acabei por desistir porque, para mim, é um exercício dificílimo. Não é só encaixar palavras e fazer rimas. É fundir sons que passam a não viver independentes uns dos outros. Adoro ver os vídeos do Zé Silveira, pois sinto que há ali qualquer coisa mágica que não sei bem explicar, mas que faz sentido. A verdadeira poesia também é assim. No caso deste poema, que (ainda) não foi musicado, há também esse lado eufónico, que se sente tão bem na declamação que se pode escutar no vídeo do YouTube que acompanha o texto:



Diria, a brincar, que este "Amor Alienígena" é um cruzamento de Camões com Gal Costa. É um vício que tenho, este de andar a cruzar memórias sempre que leio um texto. São vasos comunicantes que, inevitavelmente, se influenciam uns aos outros apesar da natureza diversa de que são compostos.

Camões tem um soneto cujo incipit é "Quem vê Senhora claro e manifesto", que explica que a felicidade de presenciar o olhar da amada merece que se lhe ofereça, em troca, absolutamente tudo: "a vida e alma e esperança". E mesmo assim, diz-lhe o poeta que "quanto mais vos pago, mais vos devo".

Quanto à Gal Costa, aparece aqui por causa de uma canção fabulosa, intitulada "Não identificado", que conheci através do filme "Bacurau" (surpreendente a todos os níveis). A letra identifica o "eu", solitário e enamorado, como um objeto não identificado a ser lançado no "espaço sideral".



No poema de Zé Silveira, as ideias do poeta português e da cantora brasileira estão bem presentes, mas são combinadas de outra forma, com uma estrutura que se constrói a partir de três recursos expressivos fundamentais: a alegoria, o oxímoro e o jogo de palavras.

Se tivéssemos de definir de uma forma o mais simples possível, a alegoria seria um conjunto de metáforas ligadas entre si. É uma figura de estilo que encontramos nos mais diversos campos — pensemos, por exemplo, nos carros ditos "alegóricos", presentes nos desfiles carnavalescos, mas também no campo religioso (os sermões de António Vieira e, antes dele, as parábolas de um tal de Jesus Cristo, são paradigmas absolutos no uso da alegoria).

Em "Amor Alienígena", há um campo lexical que remete para o imaginário da ficção científica, a começar pelo adjetivo do título e, depois, por palavras como "abduzido", "fractal", "invadiu"… Todas elas nos transportam para os testemunhos dos contactos imediatos de quinto grau, ou seja, quando os seres humanos — voluntariamente ou não — se aproximam diretamente dos extraterrestres. O alienígena será, então, o amor, um lugar estranho e desconhecido que subjuga o sujeito poético. Ele passa a uma simples "presa" e perde o autodomínio de tal forma que deixa de ser quem ele conhece e até mais: deixa de saber se ainda possui existência — repare-se no detalhe da vírgula no verso "ou não sei se ainda sou, eu".

É como se fosse contaminado por um vírus que não mais o abandonará, que o faz sofrer de uma forma nova, contraditória, como se pode observar nos oxímoros "sons inaudíveis" e "sensações […] insensíveis". Há uma espiritualização do amor, que converte o "eu" em "éter", essa terceira componente para além do corpo e da alma que, nas palavras de Saramago no "Memorial do Convento", é "a vontade dos homens que segura as estrelas, é a vontade dos homens que Deus respira". Nessa obra, a forma do éter é a de uma "nuvem fechada", que tem correspondência (por coincidência ou não) com o verso "nuvens, névoas, pó", tradução perfeita da sublimidade efémera do ser humano.

Essa efemeridade que procura a perenidade está bem presente no jogo de palavras do verso "meu corpo é éter, eternamente teu". Como este, existem outros jogos de palavras igualmente expressivos, como "me lesas e tu ilesa" ou "invadiu-me, dominou-me, e evadiu-se". Agrada-me especialmente a associação "fractal, fatal", em que a fragmentação que o "eu" experimenta se relaciona com o Destino e, eventualmente, com a morte do que era antes da paixão o arrebatar.

Para terminar, destaco no último verso o verbo "desacordar", que aponta para um duplo sentido particularmente interessante. Por um lado, temos a sugestão de um estado contrário ao da vigília, em que o sujeito poético entra na surrealidade das "cores inodoras", num universo de profunda letargia (o que, mais uma vez, nos transporta para os relatos oníricos de abdução da ficção científica). Por outro lado, temos a ideia de "desacordo", da estranheza interior que todos experimentamos quando nos apaixonamos — pois sempre pensamos saber o que é a natureza e as características do amor, mas a verdade é que sempre nos surpreende.

Criado em: 4/8/2023 11:26
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Comentário a "No Vale de Gimmerton", de Gyl
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2/10/2021 14:11
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"No Vale de Gimmerton", de Gyl

Uma cascata sonora
No vale de Gimmerton
Reverbera na pele rochosa
Uma lamúria de som.

Viola um reino xiita
Que prima por volição
Da água que dali evola
Da ave que dali volita.

Opróbrio servil inocula
Inócuos ósculos fugidios
Campestres galos no cio
Naquilo que não coagula.

Um verso vistoso e verídico
Percorre a planície e planilha
Cozendo a carranca do cínico
Nos sisos mortais da matilha.

O ocaso laranja o alpendre
O monte de Vênus que cobre
Desliza suave no ventre
Nos seios rosados que morre.

Um terço daquilo que faço
Recai sobre a planta mofina
Nos olhos daquela menina
Que me recusou um abraço.

Desfiz do giz e disfarço
Naquilo que à noite eu fazia
À espera do rei de Antioquia
Que um dia foi preso no mastro.

Não diga o que digo, meu caro
Que a festa não tem primazia
No raio do sol que eu me calo
Na réstia dessa... Poesia!


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Percurso de leitura nº 18 (se quiser conhecer os anteriores, fica aqui o link)

O título do poema parte da referência a uma localidade da famosa obra "O Monte dos Vendavais", de Emily Brontë ("O Morro dos Ventos Uivantes" é o título das edições brasileiras). É curiosa a escolha do vale em vez do monte. Já não me recordo do romance o suficiente para assinalar algum simbolismo inerente a este espaço em particular. Todavia, essa dualidade vale/monte sugere-me outros contrastes, como terra/céu ou corporeidade/espiritualidade, algo que se vai confirmar em certos momentos do texto.

A primeira pista aparece ainda na quadra inicial, enquanto escutamos o correr da água (a "cascata sonora", numa "lamúria de som") que provém de uma "pele rochosa". Pouco a pouco vai-se revelando um retrato, lembrando o efeito "mosaico": a partir de várias imagens, monta-se uma figura alegórica, neste caso uma mulher, caracterizada de forma sensual pelos sentidos da audição e do tato, apresentados simbolicamente no som da água que corre. Esta "pele rochosa", voltará a aparecer na segunda quadra, desta vez sob a forma do advérbio "dali".

Mas atentemos, antes, no primeiro verso da segunda estrofe. Sobre o xiismo, uma pesquisa simples dir-vos-á que se trata de uma das divisões do islamismo (a outra é o sunismo). Os xiitas estão conotados com uma interpretação mais rígida do Alcorão e com o desejo de poder político, embora haja muitos fiéis desta ala que sejam moderados. No poema, a referência está ligada à violência que, por sua vez, se associa ao desejo que incide sobre a água e a ave.

Estamos, julgo eu, perante a ebulição do amor, em toda a sua crueza (e também pureza e espiritualidade, há que dizê-lo), combinando-se com os elementos primordiais da terra, da água e do ar. E o fogo? Que é dele? Sempre implícito, está claramente sugerido na sensualidade das combinações sonoras do poema, sobretudo nas aliterações em "v" e em "l" ("viola", "volição", "dali", "evola", "ave", "volita") — o primeiro associado aos lábios e o outro à língua.

A aliteração é efetivamente um dos recursos mais importantes neste poema, embora nem sempre se consiga desfazer a ambiguidade da sua interpretação (e ainda bem que é assim). Na terceira quadra, por exemplo, a sonoridade continua a ser importante, nomeadamente com a assonância em "o", que marca um ritmo ondulante, quase como se fosse um trava-línguas.

Mas, neste passo do texto, o que mais me atrai é o contraste entre o tom latinizante do vocabulário ("opróbrio", "inocula", "inócuos", "ósculos") e, por outro lado, imagens muito concretas e extremamente fortes, quase gráficas (os "galos no cio").

O ímpeto brutal da atração contrasta, assim, com a escravidão a que está sujeito o "eu" — encerrado num "opróbrio servil", que faz lembrar Camões: "é querer estar preso por vontade; / é servir a quem vence, o vencedor". Perante esta torrente de sentimentos, o sujeito poético reage com "inócuos ósculos", beijos inofensivos.

Já agora, aproveito para deixar aqui uma curiosidade, sobre a distinção que se fazia, em latim, entre "osculum", "basium" e "suavium". O primeiro seria um beijo casto, entre amigos (até porque "osculum" nasce como diminutivo da palavra "boca", que em latim se designava "os"). O segundo era um beijo nos lábios de boca fechada (utilizado mesmo em cumprimentos familiares) e o terceiro, sim, era o beijo sensual dos amantes.

Esta sequência imponente de palavras de inspiração latina dá lugar ao momento pitoresco dos "campestres galos no cio / naquilo que não coagula". Um momento de puro frenesim declaradamente sexual, que corta com o tom solene dos dois versos anteriores.

Na quarta e na quinta estrofes, voltamos à alegoria da mulher como espaço, o local em que se vagueia sob a forma de poesia. Percorremos, com o poeta, a planície que desarma os cinismos, a "carranca" daqueles que desdenham os sentimentos e que, por isso, merecem os "sisos mortais da matilha". Note-se a ambivalência de "siso", designação de um tipo de dentição, mas também sinónimo de bom senso, maturidade. Efetivamente, o amor pode ser o espaço em que nos abandonamos completamente aos sentimentos/sentidos, ou o espaço onde nos encontramos com nós mesmos e amadurecemos.

Esta ideia de maturidade parece estar sugerida no "ocaso" que "laranja o alpendre", que lhe dá cor e intensidade. A experiência plena do prazer — por vezes, atingida apenas numa fase tardia da vida — exige tempo, persistência, conquista de uma sabedoria que destrinça o ouro do ouropel. É essa aprendizagem amadurecida de fruir o prazer que permite transformar a chegada às zonas mais íntimas num momento de transcendência, a "petite mort" com que se encerra a quinta estrofe.

Toda esta efabulação poética encontra na sexta estrofe o seu motivo: a recusa de um abraço feminino. Teria sido esse o ponto de partida para a elaborada construção a que assistimos.

Quanto ao rei a que Gyl faz referência, parece ser Antíoco IV Epifânio, considerado louco pelas suas excentricidades como governante, mas também no domínio sexual: por exemplo, criou escândalo a sua relação homossexual com o jovem ator e atleta Gádio. A escolha do episódio histórico do mastro (humilhação a que o rei foi sujeito depois de uma derrota contra os romanos) talvez também contenha, por detrás, uma sardónica sugestão sexual…

O poema chega ao fim com o silêncio do poeta que, depois de transformar a recusa da donzela em fonte de inspiração, dá por terminada a sua missão, sabendo que, no fundo, o mais importante é o poema que criou, esse "raio de sol" que nos oferece através da sua visão transformadora da realidade, que surge aos nossos olhos como especial, por mais trivial que seja a sua origem.

Criado em: 26/7/2023 18:51
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Livros favoritos (Valdevinoxis)
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Aproveito a dica de Valdevinoxis para falar um pouco de "As Aventuras de João Sem Medo", que é um dos livros da minha vida. Regresso a esta obra muitas vezes e nunca me desilude, pelo contrário, nunca deixa de me surpreender.

Atenção: o título engana! Não é um livro para crianças!

Um livro para crianças não diria que, para atingir a Felicidade Completa, temos de consentir que nos cortem a cabeça para não criarmos nela ideias perigosas, e que passemos a trazer nos pés e nas mãos correntes de ouro…

Ou que, num dos mundos visitados por JSM, os professores nas escolas "torcem os meninos até à incapacidade perfeita" e, nos teatros, os espectadores dão concertos de tosse e aplaudem-se a si mesmos….

É irónico (às vezes quase ácido no seu sarcasmo) e fantástico, no sentido literário do termo — uma construção surreal que nos leva a outros universos, a outras lógicas e ao que descobrimos existir dentro de nós.

Sim, porque o tema que mais me atrai neste livro é o crescimento, que nos leva à aventura e ao conformismo, à ternura e ao cinismo — ou seja, a forma como nos transformamos aos nossos olhos, sonhando a nossa própria identidade.

Criado em: 24/7/2023 17:34
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Comentário a "a esgalhar", de HorrorisCausa
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Link para o texto original

"a esgalhar", de HorrorisCausa

para que percebas
meus "percebas"
são peidos saídos...

pela ponta dos dedos
da minha mão esquerda
quando escrevo...

exalações de essências viscerais
transfiguram todas as matérias
celulares do meu ser...

inculta, sem erudição
iletrada, despreparada...

não sabe de punhetas, bucetas
incubar " egg(o)s cavos
mastubar sem recheio medular...

germinado no ventre de um keruv
(minha sábia mãe)
"fiat lux" a martelo e cinzel...

em vez de bisturi.


atenciosamente
HC

" quod tibi vis alteri ne facias "


" An ye harm none, do what ye will "

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Percurso de leitura nº 17 (se quiser conhecer os anteriores, fica aqui o link)

Informação prévia: Partes do texto seguinte podem ser consideradas chocantes ou impróprias por leitores mais sensíveis. As referências a canções e pinturas/fotos têm um link associado.

Meados dos anos 1960 — Scott Walker torna-se um verdadeiro ídolo juvenil, com sucessos de pop açucarada que ainda se ouvem em rádios vintage, como "Make It Easy on Yourself" ou "The Sun Ain't Gonna Shine Anymore".
2012 — Scott Walker edita "Bish Bosch", álbum em que a sua voz de crooner se ridiculariza a si mesma, desafinada e combinada com uma sonoridade avant-garde a que se juntam sons corporais, como gemidos e flatos.

O que explica uma mudança tão drástica num artista? O desejo de ser original? De simplesmente provocar e ganhar a atenção dos outros?

Ao longo da história, muitos foram os que — por estas ou por outras razões — trouxeram o que é repulsivo para o campo da arte. Assim de repente, nas artes plásticas, lembro-me de "Fountain" (1917), de Marcel Duchamp (um urinol transformado em fontanário), de "Tale" (1992), de Kiki Smith (escultura de uma mulher em tamanho natural, que arrasta uma cauda feita de algo parecido com excremento) ou de "Piss Christ" (1987), de Andrea Serrano (em que um crucifixo é fotografado no meio de um duche de urina).

Em Portugal, houve até um movimento abjecionista, na sequência do surrealismo literário, que deixou marcas em autores como Pedro Oom, Mário Cesariny ou Herberto Hélder. Veja-se, por exemplo, um excerto de um dos poemas de "A faca não corta o fogo" (2008), de Herberto: "ainda me está doendo do pêso de seu beijo / na risca rosa no meio de virilha até virilha, / e entra em mim e que as coxas me estremeçam, / te mete inteiro / por boca e cu e côna adentro, / que os que louvam a Deus esse Deus os devora".

E no caso do poema de HorrorisCausa? O que a moveu a trazer para este poema "peidos", vísceras, "punhetas", "bucetas", masturbação…?

O meu ponto de partida encontra-se, curiosamente, no final do texto: duas epígrafes, uma em latim e outra em inglês arcaico.
Comecemos pela segunda, que HC utiliza quase como uma assinatura dos seus poemas: "An ye harm none, do what ye will". Trata-se de uma divisa que poderia ser traduzida como "Faz o que quiseres, desde que não magoes ninguém". Uma pesquisa simples indicar-nos-á que esta frase está ligada ao movimento Wicca, que tem raiz nos cultos pagãos ligados à natureza, aparecendo, por exemplo, nos escritos do mago Aleister Crowley, amigo do nosso Pessoa.

Assim sendo, estamos perante uma afirmação de liberdade pessoal, que é matizada com a segunda epígrafe com que o texto é assinalado: "Quod tibi vis, alteri ne facias". É curioso que esta expressão latina normalmente não tem esta forma, falta-lhe aqui uma negação. A versão tradicional "quod tibi non vis, alteri ne facias" corresponderia à conhecidíssima afirmação "Não faças aos outros o que não gostarias que fizessem a ti". No caso do poema de HC, a tradução seria subtilmente diferente: "Não faças aos outros o que gostarias que fizessem a ti". Esta subversão traz consigo uma conotação especial, da total diferenciação do "eu" em relação ao "outro", um individualismo radical, em que assume que é eticamente reprovável impor a sua identidade e os seus gostos aos outros.

Assim sendo, o recurso a imagens e vocábulos aparentemente menos dignos de poesia seria uma forma — subversiva e destemida — de demonstrar esta ética. Parece-me particularmente interessante a forma como esta reflexão é feita, de uma maneira despojada, despretensiosa e escarnecedora da seriedade do tema, recorrendo, todavia, a segundos sentidos, a símbolos e a alusões místicas fascinantes.

O título é um bom exemplo da duplicidade de significados que é característica no poema: "a esgalhar" pode significar o lado expedito de uma ação, algo que se faz com desembaraço, mas também usamos esta expressão para designar o ato da masturbação (que terá uma referência direta mais à frente no texto).

O poema avança, logo de início, para o seu objetivo: perceber os "percebas" do "eu". Entendo o segundo termo do trocadilho como um convite à reflexão. Como se o sujeito poético dissesse ao seu interlocutor: "tem de compreender uma coisa antes de começarmos…" E o que vem a seguir aponta-nos o objeto dessa reflexão: a escrita.

O que o "eu" escreve é apresentado como "peidos", "exalações de essências viscerais", algo repelente que tem a intenção de mostrar, mesmo que possa parecer ridículo, errado ou anormal. O pormenor da "mão esquerda" pode ser um sinal disso: em latim e em italiano, "esquerdo" tem a designação, respectivamente, de "sinister" e "sinistro", palavras que, em português, associamos a algo funesto, negativo.

São precisamente esses elementos nefastos ou repugnantes que "transfiguram todas as matérias / celulares do meu ser", isto é, são a expressão que mais se aproxima da verdade interior do "eu", que se diz "inculta, sem erudição / iletrada, despreparada", que nem sequer "sabe de punhetas, bucetas / incubar egg(o)s cavos / masturbar sem recheio medular".
Trata-se de alguém que experimenta uma grande agitação interior, que tem a certeza de que essa agitação é a melhor (a única?) matéria poética de que dispõe, mas que reconhece que talvez ainda lhe falte dar o passo decisivo: perder os últimos receios e conseguir a transfiguração da realidade, mesmo que à custa da exposição da faceta mais irracional da natureza humana, em toda a sua verdade.

Podemos dizer que se trata de um momento místico genuíno do "eu" e, desse ponto de vista, talvez não seja por acaso a escolha de palavras como "incubar" ou "keruv".
"Incubar", numa primeira aceção, aponta para o momento anterior ao nascimento de algo (o trocadilho com o inglês "eggs" sugere esse significado). Neste caso, o objeto da incubação seria o "ego", o princípio da realidade freudiano, que estaria prestes a despontar (pois ainda é apenas uma imagem vazia — assim entendo as expressões "cavos" e "sem recheio modular"). Porém, interessa-me muito uma segunda aceção de "incubar", associado ao ato sexual, nomeadamente aos demónios designados íncubos, que atacavam as mulheres adormecidas.
Essa ideia de malignidade combina-se com a imagem do "keruv", o anjo querubim, espírito celestial que constituiu, em certas passagens da Bíblia, o mensageiro de Deus. Esse "keruv" é ligado à "mãe" — será uma referência à Mãe Terra, adorada pelos neo-pagãos, como os iniciados nos cultos Wicca?

É da simbiose entre o maléfico e o angelical, entre o asqueroso e o místico, que o "eu" procura a sua origem e a da sua escrita, duas realidades inseparáveis. Dessa busca interior, há apenas um sinal, um "fiat lux" como o do Génesis bíblico. Nessa altura, o sujeito poético tem uma epifania: de que não nasceu do "bisturi" — símbolo da precisão fria das transformações, a que associamos as cirurgias —, mas "a martelo e cinzel" — de uma forma ruidosa e bruta, mas, no final, aberta à beleza e à perenidade, como acontece com a arte da escultura.

Assim se transforma uma provocação em afirmação de dignidade: todos os rostos da humanidade merecem consideração poética, mesmo os mais sórdidos, pois muitas vezes são precisamente estes a melhor expressão dessa criatura sempre insatisfeita, sempre à procura de ser intransigentemente livre.

Criado em: 24/6/2023 18:59
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Comentário: "A noite...", de maria.ana p/ R.Beça e HC
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Tens razão, HC: as interpretações do Rogério são únicas, cheias de descobertas surpreendentes, momentos comoventes ao lado de ironias saborosíssimas.

Mas tenho todo o prazer em ver aqui outros pontos de vista, com outras experiências de leitura e outro estilo de crítica. Como, por exemplo, a tua perspetiva, nos dois comentários que tiveste a iniciativa de escrever, com entusiasmo e clarividência.

Agradeço, também, a referência aos exercícios que escrevo por aqui e que me ajudam a refletir cada vez melhor (assim espero, pelo menos) sobre as palavras e as coisas.

Abraços aos três (maria.ana, R. Beça e HC)

Criado em: 18/6/2023 20:31
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Comentário a "declaração de rendimentos" p/ R. Beça
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As críticas não precisam de ser sempre sérias, ou melhor dizendo, a seriedade da crítica não quer dizer necessariamente falta de graça. Assim sendo, adorei o comentário -- criativo, engraçado e perspicaz, como é habitual nos teus textos de crítica e não só.
Fui aprendendo que o autor não deve revelar muito sobre o que está na origem dos poemas, para não condicionar a liberdade interpretativa do leitor. Todavia, vou abrir uma exceção, pela dívida que tenho para com um livro que li há uns meses, o primeiro tomo do clássico absoluto de Proust, "Em busca do tempo perdido". Daí vem a "murta" e o verbo "bemolizar" deste poema, bem como as "madalenas" e a "lanterna mágica" do meu anterior "madalenas e tangerinas". Fica a sugestão de leitura.
Muito obrigado por continuares a dedicar tanta atenção aos meus textos. Abraço!

Criado em: 1/6/2023 16:14
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A Música que nos inspira - Emily Bronte
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Emily Bronte ficou mais conhecida pelo romance "O Monte dos Vendavais" do que pela sua poesia, mas é pena passar ao lado da beleza triste dos seus textos.

As irmãs Unthanks lançaram em 2018 um álbum inspirado nos poemas de EB, com o telurismo delicado que lhes é característico.

Esta "The night is darkening round me" é uma das minhas canções preferidas:

"The giant trees are bending
Their bare boughs weighed with snow;
The storm is fast descending,
And yet I cannot go."



Criado em: 24/5/2023 20:53
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Re: A Música que nos inspira p/ HC
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A propósito da Billie Eilish (HC), fica aqui um vídeo para os fãs da cantora, do Danny Elfman, do Tim Burton e da Sally :)

I sense there's something in the wind
That feels like tragedy's at hand
And though I'd like to stand by him
Can't shake this feeling that I have
The worst is just around the bend
And does he notice my feelings for him
And will he see how much he means to me
I think it's not to be



Criado em: 14/5/2023 10:23
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