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Comentário a "sóleo" de benjamin

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6/11/2007 15:11
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Este comentário estará também disponível na página do autor, na caixa de comentários do poema.
Abaixo, a sua reprodução integral.

Estes poemas curtos, ou poemetos como podem ser denominados, têm desafios muito interessantes, pelo seu elevado grau de dificuldade.
Tinha um amigo na minha velha infância, que me dizia que falava pouco para errar pouco. Quando mais se escreve maior probabilidade de os erros irem surgindo, nem que seja na ortografia, por exemplo.
Na poesia, para mim é ao contrário.
Apesar de eu ter uma amiga que me diz que me destaco muito na forma de poemeto, porque depois, lá sai um ou dois versos “impoéticos” que estragam um conjunto que podia ser de grandeza superior até eles surgirem.

O peso que cada palavra tem em poemas muito curtos é muito grande.
Revolucionar a mente de alguém com oito a dez palavras não é tarefa fácil.

O escritor Pedro Sá um dia disse-me que adorava os poetas, porque segundo ele, eles tinham de apresentar todo um conjunto de regras que aprendemos (introdução, desenvolvimento e conclusão) em poucos versos. Fez uma comparação deste tipo, é como começar e acabar de fazer a casa na sala de jantar.

Se isto é verdade de quem escreve poesia, para quem escreve prosa, então o que dizer se o que se diz quase nem tem meio parágrafo? Ou pontuação?

Há alguns poetas aqui no Luso que o fazem muito bem. A MarySsantos é assustadora, por exemplo. Segundo a supracitada amiga, eu não me saio muito mal.
Com este autor é difícil dizer, uma vez que ele tem o toque de Midas.

Este “sóleo” começa por me intrigar precisamente no título.
Parece-me uma gralha em que se misturou duas palavras com sentidos não muito complementares:
Sol e Óleo.
O Sol aquece o óleo.
O óleo ameniza os efeitos do Sol na pele, por exemplo.
Sonoramente começa com um só.
E acaba com um li-o.
Só li-o?

Depois lemos os 3 versos e não há nada disto. Boa.
Lá vou eu falar com deus, e o google diz-me que o sóleo afinal é o meu velho conhecido músculo Solhar.
Para quem não sabe de anatomia, este é localizado na parte de trás da perna (entre o joelho e o pé), e tem particularidades poéticas bem interessantes.
Segundo os anatomistas, o Sóleo é o músculo responsável pelo equilíbrio. Impede o corpo de se desequilibrar para a frente permitindo o ortostatismo.
De que equilíbrio se referirá o sujeito poético?

Logo na primeira palavra do primeiro verso, há uma dor, e uma dor incapacitante.
Quem não se lembra de ver numa televisão a imagem de um jogador de futebol deitado no chão, quase lavado em lágrimas, com outro a segurar-lhe no pé numa posição de extensão esquisita?
As “...cãibras...” têm vários motivos, entre os quais a desidratação, a falta de sais minerais (como o s'ódio), e o excesso de exercício. Um dos principais músculo da panturrilha (gosto da palavra) afectados numa é, o nosso amigo, “sóleo...”.
O músculo em questão tem ainda a particularidade de se localizar sob o tendão de Aquiles, símbolo clássico para a fragilidade.
Isto é, está abaixo do que nos é frágil e permite o equilíbrio?!

Estará o título a doer? O que causará a dor?

“...de sermos...” Estranha a quebra de verso num verbo.
Os verbos transitivos têm beleza de nos transportar.
E sendo o verbo ser aquilo que nos define (e não o ter ou o estar) acho que importa repararmos no verso seguinte, que o verbo antecede:

“...a estrada de Caim...”

Este é o verso deste poema.
Segundo a mitologia Judaico-cristã Caim foi o primeiro filho de Adão e Eva (e da serpente?).
O fruto da maçã. Da queda em tentação do casal, criado por Jeová (ou Deus) para viver no paraíso.
Ora segundo o Génesis, Caim era humano.
Quando o seu irmão Abel (engraçado que em inglês able, ligeiramente parecido, é o mesmo que hábil ou capaz) nasceu, apesar de ter nascido com a capacidade para vir a ser, como os restantes familiares, centenário (lol), aquilo mexeu com Caim.
Quem é Pai de dois sabe que o bébé é meio-brinquedo nas mãos do primogénito, por muito cuidado que tenhamos. Como será um brinquedo quando o bébé deixar o berço, e começar a andar (e a correr). Somos todos brinquedos uns dos outros, no fundo (a não ser que a diferença de idades seja demasiado grande).
Caído em tentação por inveja, Caim foi o primeiro assassino da história, matando Abel com uma pedra. Foi amaldiçoado por Deus, como os pais tinham sido a partir do Éden, assim como todos os seus descendentes, à má fama e à eternidade.
Há referências ao sinal de Caim e o vampirismo.
Aproveitou para ter proveito e tornou-se violento e polígamo, seguindo o mal.

Ora a “...estrada de Caim...” é essa predisposição para o mal que há em cada Homem. Sendo que o “...estrada...” tem um óbvio sentido metafórico de caminho de vida, progressão.

Tem graça que é crido que a descendência de Caim morreu no dilúvio do episódio da Arca de Noé, não é?

O último verso é o mais amargo, pois é muito ingrato termos a noção que se toda a gente é, ou pode ser assim, significa que os nossos entes mais queridos (os filhos e os seus filhos) também assim serão...
Seremos desequilibrados sem violência?

Referências finais à forma:
Este poema tem 10 palavras. É engraçado que o 10 é o primeiro número com dois algarismos.
Será Caim o 1 e Abel o 0?
Além disso tem todo o formato dum Haikai canónico. Métrica 5-7-5, mas com um sentido metafórico tão lato não pode ser considerado, que esses são mais literais.

Muito obrigado por mais uma pérola para o meu colar...



sóleo


cãibras de sermos
a estrada de caim
dos nossos filhos

Criado em: 18/3/2022 6:32
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Re: Comentário a "Sede", de Katz

Membro desde:
6/11/2007 15:11
Mensagens: 1938
Minha cara,

Bem-vinda ao mundo dos que sentem demais e escrevem.
Como nova utilizadora, vais encontrar, neste espaço, leitores, comentadores e outros utilizadores que escrevem pior ou melhor do que tu.
É que é isso mesmo. Ninguém vai escrever como tu, isso seria plágio e quem o faz é banido daqui.
Já frequento o luso-poemas quase há quinze anos. Passei por muitas batalhas, perdi quase todas.
A única que ganhei foi a resiliência, a de nunca ter desistido ou abandonado quando aconteceu o pior.

A aprendizagem aqui é dinâmica. Obviamente que vai depender essencialmente de ti.

Prepara-te também para a maldade humana. Este sítio é tão humano que até a sua maldade vem agarrada a ele.

Sobre não entender muito de poesia, bem-vinda ao meu mundo.
A poesia é um código, uma língua (gosto de pensar), que necessita de uso frequente para dominar com alguma qualidade.
Ler, ler muito (ou muito mais), certamente ajuda.
Arriscar o erro, escrever mal, muitas vezes, também.
O meu poeta favorito, hoje em dia é Eugénio de Andrade, o homem é um tratado!
Se pegares em Fernando Pessoa, nem se fala.

Gostei muito desta mensagem, que me faz afastar alguns fantasmas.
E talvez acreditar que o site possa ter salvação.

Abraço

Ps.
Esta frase que escreveste seria um verso bem poético:

"...Sou tão mar, oceanando por aí..."

Criado em: 14/3/2022 5:43
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Re: Comentário a "Sede", de Katz

Membro desde:
6/11/2007 15:11
Mensagens: 1938
Não há que desvalorizar a tusa... lol
Como um edifício abandonado que tinha uns delinquentezinhos em forma de Okupa (cheguei quase a fazer parte do movimento "Okupa e resiste" há certa de 26 anos atrás) este espaço crítico foi revitalizado.
Fez-se uma limpezazinha e agora está bem mais arrumadinho.
Parece quase um centro de saúde. Ou uma biblioteca.
Não é bem uma obra do estado, mas é mais um semi-privado. Falta o resto do estado aparecer.
É importante que se cheguem vozes diferente da tua e da minha e façam, por escrito um percurso de leitura também, por aqui.
E arrisquem um pouco.
Arrisquem a fazer mal, como certamente fizemos no início. E nunca o será, verdadeiramente.
Pode ser que as pérolas tenham uma coloração diferente...

Abraço.

Criado em: 12/3/2022 21:28
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Re: Comentário a "Sede", de Katz

Membro desde:
6/11/2007 15:11
Mensagens: 1938
O 7 é o algarismo que mais gosto e um número que me define.
O teu comentário fez prestar atenção ao texto e à autora.
Acho que essa é a principal utilidade deste fórum que criaste.

Sobre o percurso de leitura que fizeste gostaria de salientar o rigor quase científico, as citações e fontes, duma riqueza que engrandece o poema e quem o lê.
Além de, claro, não saberes escrever mal, quer em poesia, quer em prosa.

Da "Sede" começo por sublinhar o terceiro verso.

"...Acredito em mágica. Ou em páginas em branco?..."
Como se ao referir-se ao contrário das "...páginas em branco..." (que são as páginas sem ser em branco, ou as escritas) serem "...mágica...".
Cai muito bem.
Porque há magia na poesia, na prosa poética, nos contos, nas novelas, nos romances, nas enciclopédias...
A tinta em si é um invento. Coisa de engenhocas.

Na segunda estrofe, a chuva é um mau presságio clássico. E lê-se que foram removidos os pequenos prazeres da vida. Uma vida sem os mais pequenos prazeres o que é?

No monóstico "...escureceu..." a continuação do ambiente soturno é clara.
Precisamente é uma metamorfose do claro para o breu. Do menino para o velho, do sábio para o ignoto, da liberdade para a prisão.

Os dois últimos versos também são perturbadores porque colocam o sujeito poético junto a um "...rio..." (será do verbo rir?) sem que o possa beber, como o "...seca..." parece sugerir.

Abraço aos dois

Criado em: 11/3/2022 6:19
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Re: Comentário a Efeito Borboleta - de MarySsantos

Membro desde:
6/11/2007 15:11
Mensagens: 1938
Eu percebi, efectivamente, que os dois últimos versos eram o mote.
Com inteligência esse poema ressurge no dia da mulher, o 8 de Março.
Ouvi dizer a uma senhora dum café que essa data existe num grito de revolta.
Foi nessa data há umas décadas atrás que um grupo de trabalhadoras fabris morreram num incêndio, algures na Rússia, da fábrica onde estariam a trabalhar.
Coincidentemente, essas mesmas trabalhadoras tinham estado envolvidas numa luta sindical pelos direitos das trabalhadoras, entre os quais a igualdade (salarial, entre outras).
A sua morte correu mundo e a comunidade internacional dedicou a data à mulher e aos seus direitos.
Eu gosto de mulheres.
A minha Mãe, a minha irmã e a minha filha são grandes mulheres.
A sociedade é machista e patriarcal há demasiado tempo.
Eu considero-me um feminista convicto.
As mulheres deveriam governar os países.
Seriam bem melhores que os homens, que nem sabem governar as próprias casas.
Somos todos feitos do mesmo barro.

Obrigado pelo feedback, que permitiu o meu...

Abraço irmã

Criado em: 11/3/2022 5:52
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Comentário a "Efeito Borboleta" - de MarySsantos

Membro desde:
6/11/2007 15:11
Mensagens: 1938
Este comentário também se encontra disponível na página da autora, na caixa de comentários do referido poema.
Na sua integra o mesmo virá, depois do comentário que podem ler...

Apraz-me muito fazer este comentário.

Acompanho a escrita da Maria há anos e ela é das autoras que tem a qualidade de ser também boa leitora. Poderemos verdadeiramente separar os dois?

Do que mais retenho dela é a capacidade de síntese e de fazer poemas de qualidade superior com muito poucas palavras.
Nos outros também se sai bem, mas lembro-me de um que chamou “somos lagos” poderosíssimo, por exemplo.

Este não foge muito a essa regra. As palavras não são muitas.
Estruturalmente este poema é composto por 7 dísticos. O equivalente a um soneto. 14 versos.
A métrica é curta, e nisso diferencia-se do soneto, que procuram mais os alexandrinos, ou pelo menos oito sílabas.
No máximo são 6. No 2º, 3º e 6º dístico.

Tenho tido muito gosto de ler e fazer poemas no formato de dístico, ultimamente.

Sobre o que é poesia:

O título é muito sugestivo.

Ele leva-me para a teoria do caos, que diz que o bater de asas duma borboleta aqui pode fazer uma guerra na Ucrânia. Causa e efeito. Tudo tem e tudo terá. Como a lei do karma (grosso modo) que diz que aquilo que se dá ao universo recebe-se a dobrar.

Mas leva-me também ao conceito belissimo da mudança, e viajo um pouco até Camões e os seus sonetos a Dinaméne, “...mudam-se os tempos\mudam-se as vontades...” ou a Ovídio e o seu épico “as metamorfoses”. Porque a Borboleta é um símbolo clássico de metamorfose.

De crisálida, ou lagarta, se o desejarmos, à alada criatura cheia de cores.
As mais resistentes vivem um verão. Ou seja 3 meses em vida duma é equivalente a quase 100 anos.

E são, por exemplo, obsessão de coleccionadores. Lepidopterologista, é o seu nome.

O animal em si, é um caçador carnívoro que se alimenta de outros insectos.

Mas...

Depois, na primeira estrofe fala-nos o sujeito poético da Tora (no pentateuco) e do primeiro homem (sim, em minúsculas).

Repartem-se as seguintes, por elementos que fazem antíteses entre si, durante os restantes dísticos.
Isto na estrofe 2,3,e 4.
Gostei da linguagem um pouco menos literária.
Começa no paraíso e acaba na favela. Interessante, o começo de Adão e o presente (ou o fim) de Adão.

Mas a surpresa maior, vem mais para o fim, cheia de graça e humor.
E resta-me aceitar, dizer que sim, que a maior (r)evolução do homem, é sem dúvida, a Mulher.

De salientar que o facto de ser em dísticos faz a separação espacial e isso, a meu ver, simula o voo da borboleta.


Muito obrigado pelo poema, e pela releitura.


Efeito Borboleta



mal sabia
Adão

que do paraíso
ao mundão

da metrópole
ao sertão

da estopa
ao cetim

da elite
à favela

causaria
tanta revolução

aquela frágil
costela

Criado em: 9/3/2022 9:43
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Comentário a Retrato – de Esqueci

Membro desde:
6/11/2007 15:11
Mensagens: 1938
Este comentário também pode ser lido na página da autora, na caixa de comentários do poema.

De tempos a tempo, surgem enormidades na página desta autora. A regularidade pode ser trabalhada, mas não é assim tão irregular, na minha opinião.

Quando começamos na leitura, o sujeito poético começa por nos ludibriar, logo no título.

Antigamente, um retrato era uma fotografia de busto. Tiravam-nos retratos para a caderneta da escola.
Engraçado que, “tirar” fotografias, é uma acção de remoção.
Como tirar um dente. Mas dão-nos, pelo menos, antes uma folha de papel fotográfico com a imagem. A auto-imagem ou a imagem doutrém.
De quem será este retrato, então?

Ler.
A primeira imagem (será um retrato?), vem no primeiro verso que vai percorrendo os restantes dois:
“Correm-me as lágrimas\Como um rio\A lavar a saudade...”
A corrida é um movimento rápido, mas as “...lágrimas...” não caem em câmara lenta.
O rio é uma bela personificação. Como o Homem, ele nasce, tem um caminho e morre.
A comparação, como figura de estilo, está bem feita. Geralmente uso pouco, tento transformá-las em metáforas.
O choro é uma forma artesanal de lidar com a dor, neste caso, a da “saudade”, ou da falta.
Apesar de ser um pouco cliché, não deixa de ter uma forte dose poética.

Os dois versos seguintes têm mais um enigma.
Porque parece que a codificação da linguagem e do mote, é um dado adquirido neste poema, “...Cristalino é o sol lá fora\E nada vejo!...”. A cegueira, neste caso, não se encontra no exterior do sujeito poético. O cristal é um vidro de enorme qualidade e pureza. Há transparência, mas uma opacidade também.
Os últimos 4 versos da primeira estrofe são duma lógica absurda.
Partem de uma incapacidade do sujeito poético, assumida. Assume que é incapaz de dar liberdade.
E há um certo remorso perceptível.

Na segunda estrofe, o “...pouco tenho para te dar...” coloca uma segunda personagem em cena, pela segunda vez.
Há uma ligação à primeira estrofe, muito bem conseguida, com “um grito\Cego...”, que confirma a incapacidade de ver o sol acima referido.
Interessante a quebra de verso em Cego e ser apenas uma palavra em maiúscula. Não sei se foi coincidência, mas, se fiquei na dúvida, foi de génio.

Na terceira estrofe, o retrato muda de figura.
Retrato vem do verbo retratar, que pode dar em retratação, ou pedido de desculpas.
Perdemos então todas as imagens, todas as selfies, pois não é disso (de egoísmo) que fala o sujeito poético.

“...Peço desculpa
Por levar estes meus dedos
Magoados
e leigos a escrever
À tua boca...”

Belo, não é. Que dizer?
Esta estrofe seria um belíssimo poema.

Devo dizer que não gostei dos dois últimos dísticos.
Não acrescentam muito ao poema e tornam-no um pouco lamechas.

As desculpas evitam-se, mas então, o que faremos com o divino perdão?

Favoritei, como de costume

Obrigado pela leitura irmã


Retrato


Correm-me as lágrimas
Como um rio
A lavar a saudade.
Cristalino é o sol lá fora
E nada vejo!
Queria escrever nos montes
Com todas as certezas,
Abraçar as nuvens coladas aos teus olhos
E deixar-te ir para onde tu quisesses em liberdade.

Mas agora, pouco tenho para te dar
Só um grito
Cego,
Que apalpei agora mesmo com todas as letras
Seguindo todas as linhas retas
Que não soube pronunciar.

Peço desculpa
Por levar estes meus dedos
Magoados
e leigos a escrever
À tua boca

E nessa mesma
Erguer uma onda de sal.

Igual aquela mesma que me deixaste um dia
Tão Infernal.









Criado em: 26/2/2022 5:15
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Comentário a “Circo a duas mãos” de benjamin

Membro desde:
6/11/2007 15:11
Mensagens: 1938
Este comentário também pode ser lido na caixa de comentários na página e no texto do autor.

Abaixo está o poema na sua integra


Este caçula está com uma maioridade difícil, e prazeirosa, de acompanhar.
Antes de começar no poema e no texto, quero que os leitores se lembrem ou, pelo menos, reparem a data em que foi publicado.

O dia de São Valentim tem muito que se lhe diga, e o sujeito poético deste poema coloca-nos na difícil posição de desconhecermos, sem sombra de dúvida o que ele acha da data e do que se comemora.

O autor não tem o hábito de nos dar sonetos a ler.
Formalmente, parece uma incongruência, mas um antigo utilizador do site ensinou-me que o soneto tem raiz etimológica igual a sono. Será que o tema dá-lhe sono?

Ao ler o título começamos logo por entrar num universo amargo e irónico. O circo é um local de entretenimento centenário.
Tem palhaços, pobres e ricos. Tem malabaristas (eu com 3 bolas ainda faço umas gracinhas, com mais é uma palhaçada), trapezistas (há uns, os sem rede, que devem conhecer os hospitais do país bastante bem), feras cheias de drogas para não comerem os tratadores\donos, contorcionistas (sou um pouco, no trabalho tenho muita flexibilidade), etc...
A expressão “tu gostas é de ver o circo a arder” é usada enquanto noção de caos, ou confusão extrema. Quando o Circo é escrito com maiúscula, quando o autor não liga muito a rigor e adora intenção tem muito que se lhe diga.
É, pelo menos um circo para o grande, penso.

No dia dos namorados vemos as duas mãos pelo menos de duas maneiras: ou são dois e cada um dá (ou não) a mão a outro. Ou é apenas um\uma.
Tem de ser o leitor a escolher, e isso eu não posso fazer por ninguém a não ser por mim.
Se forem duas pessoas, há duas mãos em falta, para fechar o circulo que um par faz.

Imageticamente um frente a outro, mãos nas mãos, faz uma espécie de círculo.

Deixando o circo entregue ao apresentador, começamos com a primeira estrofe.

No primeiro verso: “castas aos círculos nos areais...” reparo que o círculo, que também tem a forma e a raiz de circo, é uma expressão de movimento.
O circular é não sair do lugar. Fazer o mesmo circuito (também terá a ver?) na areia é um caminho muito instável. As areias movediças, por exemplo, engolem pessoas.
A areia também é consequência da erosão de minerais maiores.
A areia, como piso deveria ser um nome coletivo, tão enorme é o seu número de grãos num areal, comparável ao de estrelas no céu.
Assim, para mim o areal é também um símbolo de infinito bastante original.
A castidade, que a primeira palavra indica, misturada com o circo que está no título parece de imediato uma antítese.

Há uma ironia latente que rebenta no segundo verso.
“...serpentes mudas em forma de deus...”
Protagonistas mor do pecado original da Tora, a castidade é atribuída às serpentes.
E o caldo que já parecia ferver, entornou, e ainda estamos na primeira palavra do segundo verso.
Há uma doce ambiguidade nas “...mudas...”. É de conhecimento geral que as serpentes mudam de pele sazonalmente e sobretudo quando estão em crescimento.
Como diria Camões num dos seus mais belos sonetos “ ...mudam-se os tempos, mudam-se as vontades...” e como tão bem esmiuçou Ovídio nas metamorfoses, até de um dia para o outro (ou do dia para a noite) nada permanece.
A ambiguidade é no emudecer. A alusão ao silêncio imposto é muito violenta. Entre o verbo emudecer e mudar já andei a brincar um pouco, saiu poema fraquinho que dificilmente publicarei aqui. O silêncio no mutismo não é uma escolha.
Há uma insinuação de falta de escolhas que parece pouco visível.
O forma de Deus pertence ao Homem. Então que serpentes são estas?
As serpentes têm muitas formas e raças. As formas mais perigosas são as venenosas e as constritoras. Gosto mais das segundas, embora não adore jibóias.

Mas apesar de elas estarem aos círculos, no terceiro verso “...fogem às chamas diretas ao cais...” o fogo do inferno e do pecado regressa e embora tenha vários amigos lá, eu não acredito sequer que exista.
O cais é mais uma partida do sujeito poético, pois é uma conhecida imagem de abrigo, mas também é do verbo cair, na segunda pessoa do singular, presente do indicativo. Para efeitos de narrativa vou escolher o primeiro.
Depois do supracitado “...areal...”, haver um “...cais...” cada vez mais parece haver uma praia (estranho, porque é uma conjugação paradisíaca). A indicação “ao cais...” parece também ser algum específico. Podia ter escrito “...fogem às chamas diretas a um cais” que teria um sentido mais lato.

Comportamentos muitos suspeitos para “... serpentes...”...

A segunda estrofe perde um pouco de fulgor, mas não era fácil manter a toada.
Agora, terá ganho algo?
O primeiro verso é uma clara alusão ao cio.
No segundo o sujeito poético pega em Shakespeare e estradalhaça o amorzinho fofinho e enjoadinho que sabe tão bem, com um poderoso “...fartos de julietas e romeus...”.
Reparem que, no verso, os nomes próprios do conhecido poema estão escritos em letra pequena.
Há algo de sórdido nisso. Há uma desvaloração das personagens. Desse tipo de amor que nunca chega à cama.
A crítica à corte e à sedução parece mais clara agora.
O terceiro verso, faz uma ligeira alteração do sujeito poético. Ao optar pela primeira pessoal do plural, há uma forte moral associada. Um mea culpa.
Com mestria, somos levados ao chão, e a comportarmo-nos como as cobras, e levados para os “...matagais...”, um local conhecido nos meios rurais (e não só) para o pecado de comer a maçã de Eva.
E sim, como tudo na vida, a segunda quadra acaba com um aforismo quase brilhante. Certo como o destino : “... no primeiro encontro há o primeiro adeus...”, é só ler.

Acabámos a parte do soneto das duas quadras em rima cruzada em ais e eus.
Curioso, certo? Os ais são gemidos, os eus é o esforço egoísta (de procurar, por exemplo, o orgasmo).
A métrica ao decassílabo mostra o rigor de sonetista, que este autor mostra agora também ter.


No primeiro terceto o tom passa a ser assumidamente sério. Quase de aviso.
A crítica é começada e procura um jogo temporal presente-passado muito agressiva, mas como a serpente, com algum veneno:

“...se pudemos viver de possessivos
adiante seremos reféns do nada...”

Isto é, as relações patriarcais sempre foram marcadas por disfuncionalidades como o ciúme, como a paixão, como a violência doméstica, entre outras em que a posse do outro é um elemento chave. Um tipo de escravatura, em papéis assinados em casamentos, consentido, é certo, mas nem sempre sabemos ao que vamos.
Mas sabemos que duma forma geral, tudo o que temos é passageiro.
Só sobrará o pó.
Que usufruto fará um faraó morto das riquezas que tem uma pirâmide?
Interessante a inclusão de reféns no segundo verso, que ela determina estarmos na posse de alguém... A personificação da posse quase aparece...
O terceiro verso parece a despropósito, mas ele é a ponte para a estrofe final.

E sim, concordo. Mais vale fingirmos que estamos vivos, apesar de estarmos vencidos pela monotonia, do que aceitarmos a certa morte, o cabal fim.

Os últimos dois versos, determinam também isso. Que quando se perde a novidade, dificilmente se volta a ganhá-la, por isso
“...e os chacais que fomos estão cativos
seguindo sem destino co'a manada...”

No sentido em que não há heróis, apenas a sua ilusão, que temos o dever e o direito de fabricar...


Muito obrigado por mais uma leitura que me deixou perto do êxtase...



Circo a duas mãos


castas aos círculos nos areais
serpentes mudas em forma de deus
fogem às chamas diretas ao cais
de onde partem os teus sonhos e os meus

prestes a sentir febres animais
fartos de julietas e romeus
vamos rastejando p'los matagais
no primeiro encontro há o primeiro adeus

se pudemos viver de possessivos
adiante seremos reféns do nada
é mais fácil fingir que estamos vivos

que avistar ao longe a curva da estrada
e os chacais que fomos estão cativos
seguindo sem destino co'a manada






Criado em: 20/2/2022 6:25
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Re: Comentário a “a semente na taça inventada” - de Zita Viegas

Membro desde:
6/11/2007 15:11
Mensagens: 1938
A riqueza e a complexidade de alguns poemas levam-nos por caminhos incompletos.
A uma releitura reparei que no primeiro comentário faltou-me esmiuçar um pouco o quadro maior.
A referência ao coração é inevitável.
Como é claro, não falamos do músculo cardíaco.
A metáfora para os sentimentos, para aquilo que quase sempre, ou pelo menos em algum momento, guia a vida do ser humano, é um dos pontos maiores que podemos constatar aqui.
Mas como falar do coração, e já agora, do amor, da alma, da saudade sem nos repetirmos?
O maior receio, e mais bem fundamentado das relações (vamos lá falar disto) é quase de certeza, a monotonia. A monotonia que surge com o passar do tempo, em que muitas vezes perdemos forças e sobretudo criatividade para apimentar o nosso dia-a-dia.
Falar de amor e escrever "amor" torna-se monótono, na minha opinião.
Cabe aos poetas procurar novas formas de falar de amor sem se ser chato. Variar o tom.
E isso é uma das coisas que este poema (e a grande maioria dos poemas da Zita) tem de melhor.

Como se não bastasse, tem o condão de simular todo o percurso da vida de qualquer Homem, em que "...germina..."na primeira palavra, isto é, nasce, e termina com "...perece" na última.



Criado em: 19/2/2022 6:07
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Comentário a “a semente na taça inventada” - de Zita Viegas

Membro desde:
6/11/2007 15:11
Mensagens: 1938
Este texto também pode ser lido na secção de comentários do autor.


Começo por afirmar que adoro “ter” de fazer este comentário.
Zita Viegas é, neste site, um caso raro de lirismo e qualidade. É sempre muito bom sinal quando ela volta. E escreve, e muito.

Começo, também, duma forma que me é pouco habitual. A análise estrutural quanto ao número de versos é, de certo modo, peculiar. A primeira estrofe tem 13 versos e as restantes 3, 6.
Descobri, via google, que há um termo para o medo ao número 13, a triscaidecafobia. Dizem dar azar. Não me vou alongar nessa superstição.
A conjugação do número 666 também não costuma ser bom augúrio. A associação a forças do mal tem sido divulgada mais recentemente do que o primeiro.
Ambos têm algo de negativo.
Mas será este poema assim tão negativo?
Em matemática pura, quando se junta dois números negativos surge um positivo (menos com menos dá mais).

Lendo o poema, o título é bastante intrigante.
“ A semente na taça inventada” é uma metáfora que pode ter várias interpretações.

A “...taça...”, como receptáculo pode ser um recipiente simples (mas com elegância, não um simples caneco), como pode ser o útero, ou o santo Graal.
Os recipientes simples podem levar todo o tipo de substância. Desde a água, o vinho, a terra (ser um vaso).
O útero é o ponto fértil para a reprodução animal (desde o Homem ao rato), portanto de representação de crescimento, evolução.
O santo Graal é o recipiente da espiritualidade.

“ A semente...” é símbolo do projecto, do começo , da criação. Nas plantas é o início e a certeza da flor (fim) nas circunstâncias certas de solo e clima.

O “...inventada...” é a palavra mais literal do conjunto. Mas nem por isso menos bela.
Os inventos são o brilho do engenho, são criação pura e dura, mas pela mão do Homem. E, se muitas taças são cópias que advém de processos industriais, cada modelo original foi inventado.
Assim como a primeira das primeiras, o arquétipo.

Não há como não achar este título poético.


A primeira estrofe começa com um verbo na primeira pessoa.
Portanto o princípio é de presença. E o verbo é germinar. Ora o verbo vem do Latim germen, derivado de gen-men,  descendência, crescimento. Faz-me pensar em germes e a doença (estranhamente).
A conjugação “Germina no peito\uma semente...” parece ser referência metafórica ao coração, para ser no “...peito...”. Gosto desdes dois versos na melodia, no ritmo que a métrica permite. Um começo BOM.
Segues com um “...Pousada numa taça inventada...”. O pousada faz-me lembrar os locais que usamos que não são as nossas casas, mas que usamos para re-pousar. A invenção da taça parece pertencer a um debate poético acerca do papel do coração nas relações, ou no amor\ódio. Não será sempre o cérebro a ter esse papel?

Os dois versos seguintes são talvez um indicador. “...De pedra\ou de silêncio...” coração de pedra ainda pode ser sem sentimentos, mas de silêncio?! Mais complexo... Será que sente, mas esconde?
Quando me ponho a fazer perguntas é bom sinal.
“...Por vezes, engana a razão.\ Outras vezes, é como trigo imaturo,\ ondula quando tocada...”. As emoções, as endorfinas, afectam um bocado o normal funcionamento cardíaco (coitadas das coronárias). O “...ondula quando tocada...” tem uma forte carga sensual. De novo emoções (ou sensações?).

Mais dois versos que reparo: “...Muitas vezes, abre em chaga, \ em tremor oculto...” os angófonos usam a expressão heartbreak para os desgostos amorosos e para a depressão que deles advém. A metáfora da “...chaga...” para fugir è desgastada ”dor” é mais uma prova do lirismo supracitado, ou no mínimo, empenho. O “...oculto...” repete o silêncio e funciona quase como um pleonasmo escondido (lol).

A primeira estrofe segue cheia de possibilidades e os versos seguinte desafiam.
“...Leva dentro a passiflora,\ em toada, \ de canto de canora....” A passiflora é a flor do maracujareiro (palavrinha difícil) em inglês (de novo) passion fruit. E aqui a paixão volta ao de cima.
Sendo a paixão, aquela da duplicidade amor\dor. Emoções fortes, refere o sujeito poético, quase sem eu. O canto é outro nome para poema ou escrita. A suavidade que o “...canora...” implica entra em contrassenso com a “...passiflora...”, o “...em toada...” podia-se juntar e dizer entoada, que riqueza...

Da segunda estrofe destaco uma expressão “...os trevos ausentes...”. Gosto de trevos e azedas dão para mastigar o caule.
Os trevos, e os de 4 folhas são, como o número 13, um convite à superstição. Dão boa sorte, logo se ausentes determinam a sua falta. Belo.

A terceira estrofe começa como a segunda. A repetição do elemento primordial “...semente...” persiste.
Mas gostaria de destacar os seguintes versos que vou tentar ler:
“...Semente que respira, \ o ar fechado \ do espelho...”
Temos de fazer a leitura de trás para a frente.
Há um espelho que tem ar fechado.
O espelho é algo que serve para refletirmos e para nos refletir. Um olhar para nós mesmos. Uma alusão ao auto-conhecimento.
O ar é um dos elementos de vida( como a água). Estando fechado, estará preso? Ou guardado? Protegido?
Escolham.
E a semente já decifrada (parcialmente) respira esse ar.

Na última estrofe o poema acaba, em perda. Há quase um desinteresse que notamos quando “...esmorece...”. O poema como o futuro e como o tempo.
Do ponto de vista sonoro o “...palpita...” tem o efeito interessante de parecer um coração a palpitar, com os verso muitos curtos e leituras breves.


a semente na taça inventada



Germina no peito
uma semente.
Pousada numa taça inventada.
De pedra
ou de silêncio.
Por vezes, engana a razão.
Outras vezes, é como trigo imaturo,
ondula quando tocada.
Muitas vezes, abre em chaga,
em tremor oculto.
Leva dentro a passiflora,
em toada,
de canto de canora.


A semente tece
a rama do sangue.
É berço e é esquife.
Lugar de poentes sonolentos,
vive em conluio,
com os trevos ausentes.

Semente que respira,
o ar fechado
do espelho.
De paixão, nem sempre.
De dor
ou rosa em brasa, por vezes.

O futuro cava-lhe
o tempo, que velozmente esmorece.
Palpita...
Palpita...
Palpita.
Bate fundo e perece.






Criado em: 13/2/2022 8:03
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