Comentário a "Reis, princesas e infantes", de (Namastibet) |
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"Reis, princesas e infantes", de (Namastibet) Foge de mim um sonho Que é ter mando e ser rei Dos anfíbios e das charcas, Mas a chuva só cai longe Os barcos não me levam Onde há sapais e charcos, O meu grande desejo é Escutar de noite e sempre Infantas que foram agora Sapas e eu rei das poças Nem, quanto mais ouvi-los Coaxar às noivas-infantas Pedindo beijos nas bochechas Gordas e verdes, ranhosas Como sapos as têm, tolos Anfíbios das poças de lodo E eu nem rei nem bote Onde nem sapais há ou charcas, Foge de mim o sonho, Que é ter mando ou sorte De Reis, princesas, infantes … Percurso pessoal de leitura nº 4 (link) Quando me dedico à leitura de poesia, frequentemente sinto que resvalo um pouco para aquilo que Umberto Eco chama de "superinterpretação": uma entrega à "generosidade interpretativa" de cada verso que, inconscientemente, me orienta para caminhos de leitura que podem ser considerados um pouco exagerados, muito longe daquilo que o poema parece sugerir. Um bom exemplo desta tendência pessoal ocorreu com este poema. Assim que li o título, a minha atenção concentrou-se na primeira palavra, "Reis", e associei-a imediatamente ao Ricardo Reis de Pessoa. Certamente estarei influenciado por outros poemas de (Namastibet) que lembram o poeta dos heterónimos, sobretudo pela estrutura externa e pelo vocabulário aparentemente simples, bem como pelo "detachment" irónico que perpassa pelas suas diversas "máscaras". Todavia, ao continuar a leitura, me fui apercebendo de outras articulações com a obra pessoana, que procurarei analisar mais à frente. "Reis, princesas e infantes" é um título que aponta para o imaginário infantil e também para a tradição popular -- os contos de fadas estão cheios de príncipes valentes e donzelas em perigo. Associo também o título aos jogos que recorrem a figuras da nobreza, como o xadrez e as cartas. Como veremos, no final do poema, a ideia do acaso e da sorte próprio dos jogos associa-se perfeitamente ao universo onírico deste poema, que surge desde o primeiro verso. Podemos associar a palavra "sonho" a dois significados principais: um ligado ao momento de adormecimento e ao inconsciente; outro à ânsia de alguma coisa, a ambição de um desejo. No poema de (Namastibet), o sonho é o poder sobre os anfíbios e as charcas. Estes três conceitos -- sonho, anfíbios e charcas -- estão interligados através de algo a que eu chamaria a "condição de estar entre". O sonho é o estar entre a vigília e o mundo inconsciente, onde não reina a lógica, mas a imaginação. Quanto aos anfíbios, tanto podem viver na água, como em terra firme. Outra ideia afim desta é a das charcas. Sabemos que a água traduz a ideia de pureza e de purificação, mas nas charcas sobrepõem-se a sujidade e a opacidade. Com a chuva, acontece algo semelhante, pois estamos perante um dos elementos primordiais -- a água -- que se precipita através de um outro elemento primordial -- o ar. Na estrofe seguinte, temos os barcos que também estão entre dois mundos, atendendo a que são meios de transporte que permitem estar simultaneamente no solo (sobre o casco) e na água. O "eu" deseja todas estas ambivalências, o "estar entre", traduzindo simbolicamente a vontade de abarcar tudo e o seu contrário. Repete-o obsessivamente de estrofe para estrofe numa estrutura cíclica, com efeitos rítmicos e imagéticos fortes, com a finalidade de fazer com que estas ideias perdurem na memória, seja na memória do próprio "eu", seja na do leitor. Todavia, este desejo é negado por três vezes: o sonho foge dele, a chuva só existe na distância, o barco recusa-se a levá-lo. Se o sujeito poético não pode ser o claro monarca dos sonhos, resigna-se a, pelo menos, ser alguém que os experimenta indiretamente. Como? Escutando. "O meu grande desejo é / Escutar de noite e sempre". Escutar. Na escuridão, de todos os sentidos, é a audição que mais ordena. É com o poder de escutar que o "eu" enfrenta a noite assustadora, é assim que aceita a escuridão. Mais uma vez, vem-nos à memória Ricardo Reis: "Basta o reflexo do sol ido na água / De um charco, se te é grato." Desaparecido o sol, fica o reflexo da sua luz. Chegada a noite, tudo o que o sujeito deseja é ouvir esse cântico dos charcos, dirigido -- di-lo na estrofe seguinte -- às infantas. Antes de passar à terceira estrofe, perderei um minuto com um pormenor que não sei se será muito relevante: a alternância entre charco e charca. Parece-me que o poeta brinca com estas duas palavras mais por causa da sua sonoridade do que por causa do seu sentido. O charco será uma simples poça de água, nascida espontaneamente e de pequena dimensão. Quanto à charca, trata-se de um reservatório de água criado artificialmente pelo homem. Esta diferença entre natural e artificial terá alguma intencionalidade? Não a sinto como fundamental, mas fica aqui o apontamento. Chegamos à terceira estrofe. Já vimos que o desejo do "eu" é escutar as infantas, símbolo da inocência presente e passada em simultâneo ("foram outrora") -- a lembrar o "outrora agora" do poema "Pobre velha música" de Pessoa ortónimo, em que infância só é fruída verdadeiramente na/pela memória. Aqui, a delicadeza das infantas é associada ao desconcertante termo "sapas", uma inversão do célebre conto da princesa e do sapo. Será um momento de sátira dirigida aos sonhos do sujeito poético? A mim, lembra um pouco as figuras das "nursery rhimes", algo semelhante aos anfiguris portugueses, deliciosas homenagens ao absurdo. A propósito, Paula Rego -- cujas imagens aparecem por vezes associadas aos poemas de (Namastibet) -- publicou um livro mágico de ilustrações para "nursery rhimes", onde os sapos também têm lugar. O resto da estrofe tem uma construção de grande complexidade a lembrar (novamente) Ricardo Reis, e a exigir uma explicação lenta e uma leitura paciente. Há uma anástrofe de grande alcance, em que várias expressões estão subentendidas (pelo menos, é essa a minha interpretação). A sequência seria a seguinte: "os barcos não me levam" "onde há sapais e charcos" "nem" (subentende-se "onde eu possa") "coaxar às noivas-infantas", "quanto mais ouvi-las". Assim sendo, o "eu" vê-se não apenas proibido de escutar as noivas-infantas-sapas, mas também de ele próprio lhes dirigir a palavra na mesma língua (o "coaxar"). Afinal este rei dos anfíbios, consoante avança o poema, cada vez se torna menos monarca e mais sapo, um ser ridículo entre outros como ele: gordos, verdes, ranhosos, tolos, no meio do lodo... O "eu" reconhece que nada tem do que sonhou, corrompendo a conhecida expressão "nem rei nem roque", que se converte em "nem rei nem bote". Porquê "bote"? Talvez pelo seu significado habitual -- embarcação pequena, insignificante, mas determinante quando ocorre um naufrágio -- que remete para a redenção que se pressente que nunca chegará. Uma outra interpretação (mais arriscada) terá a ver com um significado que encontrei no Dicionário Aulete Digital -- a investida súbita de animal sobre a presa -- a lembrar o salto do sapo, a quem falta a energia para fugir ao destino que o cerca. Desse ponto de vista, o facto de o poema terminar com a referência à "sorte" (ideia subjacente ao título, como vimos no início) parece acentuar esta conclusão: de que há uma sina que se impõe ao sonhador, por motivos que ele desconhece, uma sina que lhe tolhe os sonhos, que o prende à sua condição, como uma personagem de um conto de fadas que deixou de esperar por um "viveram felizes para sempre...", que sabe que não poderá alcançar.
Criado em: 2/12/2021 17:31
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Re: Comentário a "Reis, princesas e infantes", de (Namastibet) |
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(Esta foi a origem, o rosto do título, o resto é um conto que contarei "aos poucos" e com gosto)
![]() “Frequentemente os textos dizem mais do que o que seus autores pretendiam dizer, mas menos do que muitos leitores incontinentes gostariam que eles dissessem” (Umberto Eco) Segundo Todorov, “Um texto não passa de um piquenique em que o autor traz as palavras e os leitores o, ou os sentidos” O embrião foi originado ou gerado num outro poema e acerca de uma pacata reflexão sobre o acto de criação e sobre algum simbolismo que possa existir nos gestos nossos, embriões de coisas, inacabados e contidos noutras margem da dimensão onírica, mítica .. Reis batalhas elefantes ... Acontece que vim com a nómada Profissão das aves, pernoito enfim Saudando a lua suavizando o vento Com o azul do céu quando há tempo ... Bom, acontece que vim ao sabor Do voo e das aves que tenho dentro, Sonho lugares comuns sendo senão Sons e sílabas com que convenço Os espíritos a consentirem que os abra Sem me ferir demasiado com Reis, batalhas, elefantes ... Joel Matos (01/2017) http://joel-matos.blogspot.com ![]() (e antes ainda, o percurso, a raiz da Terra que diz me ama e sou seu, por enquanto) Muito mais que estas raízes férreas, Tudo que é sagrado, penso ver No ar, que me move o pensamento Na direcção do céu, mais que raízes, Estas tão térreas, não que não seja Dum lugar sagrado, mas o desejo, É penetrar nos sentidos dos céus, Que me tiram o fôlego de madrugada, E ao sol deposto, pois tudo quanto Se move é sagrado e quando Está quieto é terra, e dizer que amo, Não chega, a Terra não entende Nem eu a entendo, (me desminto) Muito mais que estas raízes, Estático é meu corpo e certa A insatisfação deste pensar de pedra Feito mas sustenta no meu ar, As raízes que pensava caírem dos céus, Meu sustento aqui na Terra, Num desalinho total de raízes aéreas, E céus tão meus, mas tão distos, Quando da terra o céu me arrepia A pele, mesmo quando não há estrelas, E nem o céu fala comigo a noitinha, Dizendo que me ama e sou seu, Quanto mais estas raízes térreas, Tíbias e finas…efémeras, brancas… Joel Matos (18/08/2015 http://joel-matos.blogspot.com
Criado em: 2/12/2021 17:54
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Re: Comentário a "Reis, princesas e infantes", de (Namastibet) |
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A partilha destas histórias à volta da criação dos textos é de uma riqueza enorme para quem gosta de ler a sério poesia a sério :)
Como dizia Paulo Freire, a respeito do estudo (acho que podemos fazer a transposição para a leitura de poesia, mutatis mutandis): "Estudar seriamente um texto é estudar o estudo de quem, estudando, o escreveu."
Criado em: 2/12/2021 18:22
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muitas e muitas vezes penso nisso mesmo e até assusta que outros me conheçam melhor que eu próprio
![]() ![]() Dorota Mytych ![]() Paula Rego
Criado em: 2/12/2021 18:36
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Re: Comentário a "Reis, princesas e infantes", de (Namastibet) |
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Pois é
Criado em: 2/12/2021 23:25
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Até cordeiros tornarem-se leões |
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No outro Cada um de todos nós é todo'mundo, Arcaicos costumes me preenchem, cultos De outros, em todos nós ocultamos ex-votos Quotidianos de quem agora me não sei ser, Nem todos ou cada um e um só outro, Cada no mundo sou só eu, anónimo Grego, incubado Inacabado de alma, Falso devoto de mim próprio, permanente- -Mente descalço, infecundo, feito mudo face ao Que me falta, não me termino, me completo Nos outros, os outros não me prolongam Por fim, lastimo não ser eu todo o mundo, Se todo mundo meu me ignora ou não ser No fundo eu quem desconhece ser outros Ness'outros modos, estados d'alma puros, Quem me dera não ser eu apenas, um só Eu, todo eu e em tudo e em mais ninguém Nesta terra pouco larga, redonda achatada E defunta, morta para não dizer ferida de morte, Rachada a chamas, sem sorte a chamada veio Do bailéu e eu preso no veio da poita funda, Fundido em cobre, quem nasce em signo D’ pobre jamais se aceita nobre, caduco -Pleonasmo da má sorte, assim como Cada um ser um mundo e não aquilo Que se espera do tamanho com que Faz-de-conta cada, a noção de pouco Ser menor que nada, ou que um outro.
Criado em: 6/12/2021 17:37
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Criado em: 14/12/2021 12:27
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Re: Comentário a "Reis, princesas e infantes", de (Namastibet) |
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Prefeitos do amor e do pranto Assim somos nós hoje, predefinimos Quem somos em função da distância Do pâncreas ao estômago e esófago, As regalias são para nós o veneno Natural do corpo e da alma que nunca Doi, é muda de facto, traja a rigor Quando é feriado dia de santo, a hóstia Na eucaristia é o Santo Graal, quando O espírita responde ao físico segredando Acanhado que detesta sentir sentimentos Lavados, sentidos profundos conciliadores E o encanto do pão ainda quenta chuva Caída e a manhã fria, o agasalho, Privilégios, prazeres íntimos, gestos mornos, Que podem durar para sempre ou não, Preterimos amor e canto à jugular, à histeria. Degolada a Sereia resta o flanco salino, o réu, A hipocrisia do vegetal sem sabor a couve, Maçã verde não é “pão de rala”, mais doce. Quadrilátero é genoma fálico de abundância, Eufemismo é a desfaçatez com que bradamos E brandimos Moisés como Decanos às tropas, De Bizâncio enquanto exaltamos El Cordobés, Perfeitos no amor e no canto embora sejamos Um cancro e cancerígena a nossa pequenez Fálica, congénita
Criado em: 15/12/2021 0:06
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Charles the Third Took His Gun ? |
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Criado em: 24/10/2022 14:55
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